
Bem vindos ao Uzbequistão, a terra de Aladim.
Oi? Como assim? É isso mesmo. Alguém já reparou que, na história de Aladim, a sua mítica cidade de Agrabah fica “na China”? Como não há nada realmente da China na história, as pessoas passam batidas pela menção. Mas é que “China” era como os árabes e outros islâmicos na Idade Média se referiam a estas terras muçulmanas da Ásia Central, da Rota da Seda às fronteiras com a China.
Tais fábulas perpassavam todas as terras islâmicas do Oriente Médio e da Ásia Central. Não se sabe ao certo quando o conto de Aladim surgiu ou quem o criou. Ele por séculos foi transmitido oralmente, como eram todas as histórias, até o francês Antoine Galland registrá-lo por escrito no século XVIII. Ele o teria ouvido do sírio Hanna Diyab, um renomado contador de histórias. Esta, a bem da verdade, não constava no Mil e Uma Noites árabe original. Foi adicionada a partir do século XVIII, como “Aladim e a lâmpada mágica.” Reparem novamente na foto de capa para ver se não parece.

O Uzbequistão é o destino por excelência para conhecer esse legado estético, cultural e histórico. Estamos no miolo da Ásia Central, por onde as caravanas passavam entre o império chinês e as terras ocidentais, transportando seda e muito mais.
Aqui os persas desde a Antiguidade tinham sua fronteira com os nômades túrquicos que viriam a invadi-los. Um desses povos túrquicos foram os uzbeques, que você encontra hoje aqui. Ao longo desta viagem contarei a história inteira. Por ora, basta saber que todos eles — persas e turcos — na Idade Média se converteram ao Islã, e mesmo sem ser árabes fizeram parte daquele mundo muçulmano medieval de fábulas, sábios, palácios e sultões.
Acompanhem-me. O que vou lhes mostrar não é bem magia, mas a realidade e seu contexto histórico — que têm, sim, um lado mágico. Comecemos pela capital uzbeque, por onde eu cheguei.

Cheguei de avião a Tashkent, capital do Uzbequistão. Hoje é uma metrópole de 2 milhões de habitantes (dos 32 milhões que há no país), e a maior cidade da Ásia Central. Seu aeroporto fica pertinho do centro. Uma rápida corrida de táxi me trouxe em 10 minutos até minha acomodação após os trâmites de imigração que descrevi no post anterior.
A minha primeira impressão de Tashkent foi a de uma cidade grande, arborizada, de avenidas largas. Embora por fora a arquitetura seja toda moderna (soviética ou pós-soviética), por dentro os uzbeques continuam a gostar de seus tapetes e outros enfeites em estilo túrquico.
Recebeu-me no decorado albergue um animado coroa que não sabia falar inglês. “De noite vem o rapaz, que sabe tudo de inglês. Fala bem mesmo“, declarou-me ele apologético entre sorrisos amarelos e o russo básico que pude compreender. Ele soube bem, no entanto, me cobrar o preço certinho, e indicar com muitos gestos onde ficava o metrô mais próximo. “Aqui pertinho”, disse ele com o braço estendido. “Oybek“, completou numa dicção clara para que eu compreendesse o nome da estação a 2 Km dali.
Eu nunca aprendi o nome desse tio, mas em tempo conheceria também “o rapaz da noite” (um moleque que falava um inglês quebrado) e a funcionária da limpeza e da cozinha, uma senhora animada de dente de ouro na boca e lenço na cabeça, dessas que olham pra você como que já cogitam se você estaria solteiro para casar com uma sobrinha dela do interior.
Não se demora muito a perceber algumas diferenças claras entre o Uzbequistão e seus vizinhos mais ao norte, o Cazaquistão e o Quirguistão. Esses “stão” podem ser tudo a mesma coisa na nossa cabeça, mas na realidade estão longe de ser.



Vocês me permitem um breve momento para dar o pano de fundo histórico daqui? Vai ajudar a explicar certas coisas mais adiante.
Este lugar do mundo sempre foi uma salada étnica, cultural e religiosa, como deixei claro em posts anteriores no Cazaquistão e Quirguistão. Estamos, afinal, numa grande encruzilhada de civilizações. Os persas são os que estiveram aqui há mais tempo. Foram invadidos brevemente pelos árabes (que trouxeram o Islã) no século VIII, depois perderam espaço para os nômades túrquicos vindos das estepes mais ao norte e, mais tarde, aos conquistadores mongóis no século XIII. Os mongóis que aqui ficaram também se islamizariam a partir do século XIV.

Em 1336, nasceria aqui no atual Uzbequistão o último dos grandes conquistadores de antes da pólvora na Eurásia. As armas de fogo é que permitiriam — pela primeira vez na História — a soldados de infantaria enfrentar e vencer em campo aberto a cavalaria nômade. Timur, que os persas apelidaram de Timur-i-Lang (Timur, o Coxo, pois ele mancava de uma perna), passou em português como Tamerlão. Os uzbeques preferem se referir a ele como emir Timur (ou Amir Timur).
Como ainda não havia armas de fogo, Tamerlão expandiu-se tentando refazer todos os domínios de Genghis Khan — seu ídolo, embora não fossem da mesma família. Tamerlão era uma mistura de túrquicos e mongóis, e já islâmico. Suas campanhas o levariam até a Índia. Falaremos mais dele depois.
Com as grandes navegações e os impérios ultramarinos a partir do século XV, no entanto, a Rota da Seda diminuiu em importância e perdeu vigor econômico. No século XIX, os russos — com exército moderno superior — expandiram-se para cá e facilmente absorveram todos os sultanatos e emirados para dentro do seu império. Esse domínio de Moscou só acabaria em 1991, com o fim da União Soviética e a declaração de independência do Uzbequistão junto com seus vizinhos como novos países soberano.
Como a vida, a História dá suas voltas, e vocês agora estão presenciado uma delas: o ressurgimento destes povos centro-asiáticos reclamando sua independência após dois séculos de domínio russo. A abertura dos uzbeques ao turismo mundial conclamando ao mundo que venham conhecê-los se dá dentro desse contexto.

A minha impressão é que, quanto mais a sul na Ásia Central— isto é, mais distante da Rússia e mais perto do Oriente Médio —, menor a influência cultural russa e maior a influência do Islã na sociedade. Estamos aqui num lugar já bem diferente do Cazaquistão ou do Quirguistão.
O Uzbequistão foi, por exemplo, a primeira das ex-repúblicas soviéticas na Ásia Central a abandonar o alfabeto cirílico, usado na língua russa e imposto aqui pelos soviéticos em 1940. Usava-se o alfabeto árabe, e tal qual seus primos turcos da Turquia, os uzbeques abraçaram o alfabeto latino. Isso é para relacionar-se mais facilmente com seus parentes de Istambul, com o Ocidente, e também como afirmação nacional diante da Rússia.
De modo geral, os uzbeques me parecem mais túrquicos que seus vizinhos cazaques e quirguizes, estes mais mongolizados e russificados. Os uzbeques são algo mais reservados; as mulheres, mais recatadas; os homens, um pouco mais tradicionais. Aquela coisa mais do Oriente Médio mesmo, onde o tradicionalismo islâmico tem mais força, e com ele a segregação de gênero. Mulheres com seus lenços coloridos e os homens com seus barretes islâmicos na cabeça — aquele chapeuzinho circular de Aladim. São coisas que você não vê entre os quirguizes e cazaques.


Como vocês podem ver, eu dei minhas voltas pelo mercado para fazer exposição da minha figura. Isso foi à hora do almoço (com aquele calor gostoso de meio-dia). Eu antes já havia ido às mesquitas Khazrati Imam e Tillya Sheikh, vizinhas uma da outra, num complexo daqueles que são talvez os monumentos mais belos de Tashkent. Não podem deixar de ser visitados. Se for verão — como era aqui o caso — sugiro fazê-lo logo no início da manhã.
Era o princípio de um extenso dia, e Tashkent estava quente como o inferno. Aquele sol esplendoroso, de um calor que às 11h da manhã já estava aos 38 graus — e subindo. Mesmo sendo um calor seco, você transpira. Dá vontade de entrar em cada metro de sombra que há. (Essa é a realidade daqui em julho e agosto. Se quiser algo mais ameno, venha em maio ou setembro.)
Eu saí logo às 8h, quando a maioria dos outros turistas ainda rolava na cama.











Você em Tashkent se desloca de um canto a outro da cidade basicamente com o metrô.
As estações de metrô aqui são bem decoradas à moda soviética, embora não sejam tão profundas quanto as da Rússia ou da Ucrânia. A Kosmonautas, por exemplo, é tematizada com motivos siderais pelo papel que astronautas uzbeques tiveram no programa espacial soviético. E por aí vai.
Compra-se uma ficha plástica, como ocorre em outras cidades de herança soviética e ocorria em Moscou até alguns anos atrás, por 1.200 soms (R$ 1). Se a de Almaty é amarela, a daqui é azul. Acabei comprando uma demais da conta e não usando. Ou ao menos achei que não a usaria.





Após visitar aquele complexo de mesquitas e madraças pela manhã, planejei seguir dali a pé para o famoso Bazar Chorsu e depois abrigar-me da tarde quente dentro de algum museu. Eu vi foi coisa, e teve coisa também que eu não vi.
O Bazar Chorsu é um amplo mercadão, daqueles que extravasam ruas afora o que em princípio deveria ser só numa área. Há dois prédios cobertos — um em geral para hortifruti e outro para carnes —, rodeados por ruas e ruelas do que é um camelô enorme. É para quem gosta de povo. Não vi aqui muita coisa em termos de souvenirs nem lembrancinhas, mas mais de feira livre mesmo. O atrativo, pra mim, foi ver as pessoas no seu hábitat e os produtos típicos.












Como me disse certa vez uma tia minha que é phyna, “Eu não como essas coisas brabas aí não“. Tive que me virar. Dei-me conta de que aqui não acharia nada muito diferente disso, e o jeito foi encontrar um supermercado no caminho para o Museu de Artes Aplicadas (Museum of Applied Arts).
Mas, antes, dei uma parada nas mesquitas e madraças aqui próximo ao bazar — e que também recomendo a vocês.



Logo do outro lado da rua está a Mesquita Djuma, também linda.
Ao portão de entrada, um senhor islâmico de branco, da idade do Papai Noel, ficava dando esporro nos homens que entravam sem o barrete na cabeça. Não era preciso entender a língua uzbque, ele gesticulava e esbravejava — não poupou nem um funcionário. Eu, por via das dúvidas já que tenho cara de muçulmano e não pretendia tomar esporro do vô uzbeque, passei meio na surdina enquanto ele previsivelmente esbravejava com um trio que ia entrando sem barrete.


Eu daria com os burros n’água no Museum of Applied Arts. Depois de muito caminhar, achei-o fechado para reforma. Não souberam me dizer quando reabre.
O sol de começo da tarde estava torrando a cabeça; eu pronto a ter miragens no asfalto. Resolvi ir para o centro fechar meu dia em Tashkent.
O centro daqui não é um centro histórico, mas um centro de cidade soviética com seus prédios, museus, praças, e avenidas amplas. Embora antiga, Tashkent é uma cidade quase que completamente do século XX.

Dei uma passada no Museu Estatal da História do Uzbequistão, que é bonzinho, mas tem pouca informação em inglês. É um museu à moda antiga, aquele bando de coisas que vão desde rochas antigas a vestimentas de época, sem grandes explicações. Há uma cafeteria simples de pessoas simpáticas no andar de baixo, onde comi um baklava.
São 16.000 soum [2 USD] a entrada, aos interessados. Fotografar no interior custa 30.000 adicionais, que não paguei e não me arrependi, pois não senti necessidade. Há, no entanto, uma pessoa de talento que fez lindas pinturas de época.

Muito aqui versa sobre Tamerlão, ou Amir Timur como preferem os uzbeques. A praça principal tem seu nome, e há todo um outro museu aqui perto só dedicado a ele.
Uma curiosidade é que aqui ele é mostrado com claras feições túrquicas — nariz avantajado e nada dos traços mongóis, enquanto que a reconstrução facial feita a partir do crânio sugere uma aparência outra, muito mais mongol. Creio que pegaria mal um ídolo nacional com cara de conquistador estrangeiro, então andam fabricando isso. É curioso observar como esses mitos nacionais se constroem.
Isso aqui é puro nation-building, a construção de uma identidade nacional usando o poder do Estado. O Museu de Amir Timur é uma verdadeira hagiografia ao conquistador Tamerlão. Lembrou-me aquelas coisas que tinha nos anos 90: CDs com salmos, na voz de Cid Moreira.
Aqui é a mesma coisa: os feitos de Tamerlão, na voz de Islam Karimov, o primeiro Presidente da República (governou de 1991-2016, quando um infarto encerrou seu mandato). Não há a voz dele, mas há citações do finado ex-presidente por toda parte exaltando o quanto Amir Timur serve de modelo à nação uzbeque.
Não há tantas peças antigas, mas muitas pinturas não-datadas — suponho portanto que recentes — mostrando os feitos do conquistador. (16.000 soum a entrada também.)




Um “fiscal das obras prontas” com aparência física que me lembrava Deltan Dallagnol fica no museu abordando os fotógrafos e dizendo que se cobra um ticket extra para tirar fotos. “Uma, duas, tudo bem. Agora se forem várias….”. Adoro essas regras flexíveis. Não me dei ao trabalho de perguntar a ele a partir de quantas começava a contar como “várias”. Ele estava ocupado abordando os novos visitantes.

Entre um ponto e outro, eu já havia andado muitos quilômetros debaixo do sol de Tashkent hoje. Vi o principal. Resolvi tomar o metrô de volta e me dei conta da ficha azul extra que sobraria.
Já na minha rua, parei pra comer um sanduíche combo no Les Ailes, uma das muitas redes que imitam o KFC aqui. Tudo muito barato. 15 mil (2 USD) num sanduíche e 6 mil (1 USD) no copo de refrigerante, se você quiser economizar.
A caminhar de retorno ao albergue, passei por uma idosa que pedia esmolas na rua. A princípio dei-lhe uma moeda, e ela não fez cara de quem gostou muito. Eu seguia caminhando, mas fiquei com vontade de dar mais. Foi aí que me lembrei da ficha azul no bolso.
Ela pegou e olhou aquilo que não era dinheiro. “Metro!”, exclamou e riu aquela risada octagenária, aquela gargalhada gostosa que só quem já viveu muito consegue dar, com sua bengala e rosto enrugado. Um transeunte, que olhou pra nós também risonho, fez aquele gesto com a mão indicando que eu tinha afanado a ficha do metrô. Acabei deixando a velhinha rindo. Eita gargalhada boa. Valeu mais do que a ficha.
Estão apresentados a Tashkent. Na manhã seguinte, eu rumaria a Samarcanda, a maior das cidades históricas da Rota da Seda aqui Uzbequistão.
Ihhh que maravilha, que bela cidade. Que lindos e portentosos monumentos. Maravilha essa arquitetura islâmica. Há alguns pontos de semelhança com algumas do Marroco. Belíssimas linhas arquitetônicas, lindas decorações, e riquíssimos, em beleza e detalhes, os interiores. Adoro esses tons das cúpulas ou domos. Os espelhos d´água e a vegetação dão um belo toque de graça às paisagens.
Maravilha essa revisão histórica. Muito interessante, assim como certas observações como a criação dos mitos , o nacionalismo etc e tal.
Quem imaginaria que até a Índia sofreu a influencia da arquitetura islâmica como em maravilhas como o Taj Mahal.
Magnifica e importantíssima essa rota da seda, tao pouco abordada na Historia Universal dada aos estudantes através dos livros didáticos. Terríveis, estes. Defasados, superficiais e muito deles equivocados.
Amei o mercado, as frutas, o povo e seu jeito de ser. Muito interessante nessas postagens. Bom saber como se vive nos lugares, tomar seus transportes, ver suas atividades, sentir suas nuances, gostos e hábitos. Muito interessante.
Engraçadíssimas as histórias.
Curiosas essas decorações do metrô. Em Moscou também.
E que calor heimm? mesmo para um brasileiro, pelo visto o calor foi forte. Quase gratina o jovem viajante haha.
Bela região. Para mim desconhecida. E linda postagem. Mais uma vez parabéns, jovem viajante. Que venham mais belezas. Muito prazer,Tashkent, capital do Uzbequistao.