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Uzbequistão

Epílogo: Perrengues de trem e avião no Uzbequistão

A melancia enrolada em plástico figurava bonita no carrinho de aeroporto. Ao meu lado, a mulher uzbeque de lenço florido e dente dourado olhava transtornada. Estávamos todos preocupados.

Este post de encerramento das minhas viagens pelo Uzbequistão é pura experiência pessoal. Após uma semana visitando as lindas cidades da Rota da Seda no país — Tashkent, Samarcanda, Bukhara e Khiva — chegada era a hora de eu deixar o país, mas não foi tão fácil quanto eu imaginava. Já digo que nada teve a ver com imigração (que foi tranquila), mas com transporte.

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Na estação de trens de Khiva, uma TV ligada na sala da bilheteria mostrava vídeos de canções uzbeques que eu não sabia se eram atuais ou antigos. Moças vestidas à moda tradicional sorriam para a câmera como dançarinas do Faustão ou chacretes, enquanto um cidadão com ares dos anos 70 — que me lembrou os trajes do apresentador Raul Gil — cantava imóvel, às vezes mirando o telespectador. 

Aguardava-me a viagem de trem mais quente da minha vida, mas isso eu ainda não sabia. Seriam 16h de ferrovia desde Khiva de volta até a capital Tashkent, de onde eu tomaria um avião. Estávamos no começo da tarde após o almoço, uma tarde hediondamente quente neste oeste desértico do país. Eu chegaria a Tashkent às 06:50 do dia seguinte, para ir ao aeroporto e tomar um voo que partia às 10 da manhã. Audacioso, eu sei, mas meus problemas neste dia nada tiveram a ver com isso.

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As “uzbequetes” da TV em Khiva.
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Todos a bordo! Os ferros deste trem estavam quentes como o sol. Fazia 42 graus.

Suamos feito escravos no eito nesse trem #056. Ventilação (não vou chamar de “ar condicionado”) funcionava quando queria. Ou quando o condutor queria, o que dava na mesma coisa. Três outros homens uzbeques dividiram o compartimento para quatro pessoas comigo.

Um casal europeu do compartimento vizinho foi se refugiar no vagão restaurante, que lotou. O honroso filho da p*** do condutor ainda se arrogava a fumar na cabine ali próximo — o que a todos era proibido, mas ele gozava de sua autoridade a bordo. Coisas da tradição autoritária desregrada destas bandas (e da falta de educação).

Eu comprara uns macarrões instantâneos e sucos industrializados para tomar nas 16h de viagem. (É incrível a quantidade de porcarias alimentares infestando estes países pobres.) Porém, encontrei aqui neste trem de fabricação russa o que jamais se passou comigo em 3 meses de viagem na Rússia: um dispensador de água fervida (samovar) quebrado.

Pela primeira vez na vida, tomei sopa de miojo em que — depois reparei — havia areia, ou terra mesmo, no fundo. Que delícia. Pelo visto o dispensador não apenas estava sem aquecer, mas também sujo. Não tive nada, mas me deu receio de ter de repente um piriri, diante de uma noite de trem por vir e com banheiros menos que ideais.

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As “persianas” vinham fechadas para evitar que o sol encandeasse o interior e o tornasse ainda mais quente.

Estes trens soviéticos são funcionais, e na Rússia continuam em ordem, certamente tendo manutenção regular. Já aqui, eles parecem estar algo sucateados. Em cada um que eu fui havia alguma coisa quebrada: uma janela que não fechava direito, parafusos soltos, etc. Não faz uma viagem pandemônio; não chega sequer ao nível de condições da Índia; mas também é uma viagem algo mais precária que as da Rússia. Recomendo aos fortes e aos despojados. Quem se incomoda com essas condições, sugiro tomar um transporte particular de Khiva a Bukhara, e de lá tomar o mui confortável Afrosiyob a Tashkent.

Por incrível que pareça, chegamos pontualmente no horário. Ao raiar do dia estávamos lá em Tashkent, embora não tenha sido “a noite da minha vida”. Após o sol, a temperatura inverteu-se neste árido país e foram preciso cobertas. O basculante, entretanto, estava frouxo e abria-se sozinho a cada hora. Precisava um pontapé periódico meu para evitar o vuuuussssshhhhhh do vento entrando. (Após o quinto ou o sexto, os pontapés já eram com raiva.)

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Bom dia.

Cheguei estóico à manhã de Tashkent com minhas mochilas, contente em ter deixado pra trás aquela noitada. 30.000 soums [5 USD] me levaram da estação de trens Tashkent Yuzhny ao aeroporto internacional ali próximo. O taxista era um sujeito moreno que me lembrava uma versão mais nova do vetusto comediante Agildo Ribeiro — só que sem cabelo, mas com aquele mesmo olhar astuto.

Ficamos num toma-lá-dá-cá de 20, não, 30, 25, ok, vamos por 30. Ele queria esperar outros passageiros para lotar o carro, mas desistiu e fomos por 30. Às proximidades do aeroporto, para não dar uma volta muito grande ele me veio com conversa de taxista. “Está vendo ali a entrada? Eu deixo você aqui, está bom?”. Estava bom, mas meu ascendente em escorpião não deixa passar essas coisas assim gratuitamente. Pus a mochila nas costas, e por 1 segundo fiz que ia embora sem pagar. Foi o bastante pra o espertão tomar aquele susto e ficarmos quites.

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Adieu, Tashkent. Seu aeroporto tem um prédio anexo novo, que foi onde desembarquei, e um antigo onde os embarques ainda funcionam. Você passa por dois detectores de metal, e apenas passageiros podem ingressar no prédio. O “kiss goodbye” tem lugar do lado de fora, na rua. A vantagem para o passageiro é que o interior fica mais sossegado do que é o habitual nestes países em desenvolvimento da Ásia e do mundo árabe. Na Tunísia, por exemplo, os saguões ficavam lotados de famílias inteiras que às vezes vinham trazer um só passageiro, com gente no meio da fila que nem ia embarcar, às vezes tirando selfie com as estruturas do aeroporto, um negócio bem Família Buscapé (veja aqui se não viu).

Convenhamos que meu arranjo, no Uzbequistão, foi um plano ambicioso, mas eu cumpri a minha parte: cheguei ao aeroporto a tempo e ainda com energia para fazer uma viagem internacional.

O que nem Al-Khwarizmi contava é que agora teríamos um atraso de quase 12h no meu voo, sem qualquer satisfação nem compensação. Das 10:45 da manhã, às quais cheguei ainda com folga, para agora o novo horário às 22:00. Isto é, se realmente saísse.

As pessoas ao meu redor, em geral de aspecto de baixa renda, tomavam aquilo resignados como pacientes pobres da zona rural que escutam a secretária dizer que o médico hoje só chegará mais tarde.

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Senhora com unhas negras de trabalhadora do interior, atrás de mim, olhava o rótulo daquela versão vagabunda de Fanta que tomava.

No Brasil, um atraso desses teria provocado uma rebordosa no aeroporto, além de garantido por lei vale-refeição e até outras compensações. Aqui, nem tchum. Não havia sequer alguém da cia aérea ou do aeroporto para prestar satisfação. Não havia balcão de informações, e os poucos funcionários que falavam inglês e que eu parei limitavam-se a apontar para o grande visor e constatar o óbvio: “Olhe ali o novo horário.”, com aquele sub-tom de o que raios você quer?

Coisas da tradição autoritária e da falta de empoderamento das pessoas, além da falta de leis que protejam melhor o cidadão e o consumidor. O Uzbequistão está com essa cara bonitinha ao turista, mas não se iludam demais com essa apresentação de “desenvolvimento”. Nestas horas, é um Terceiro Mundo de tradição autoritária bem mais precário de direitos que o Brasil.

Coube-me esperar. Eu teria feito muito pouca queixa se tivesse que esperar 12h — mesmo cansado — num aeroporto amplo e moderno como Schiphol na Holanda ou Changi em Singapura. Mas não, o aeroporto de Tashkent é pequeno, tem só umas vendinhas básicas, uma lanchonete no piso superior, poucos lugares onde sentar, e não tem wi-fi.

Cogitei sair à cidade, mas os 40 graus de Tashkent durante o dia não me atraíram — eu já havia suado o bastante nas últimas horas. Além disso, havia usado de forma criteriosa a moeda uzbeque de modo que não me sobrasse; e, se possível, preferia não ter que trocar mais.

No andar de cima, fui à lanchonete ainda no fim da manhã comprar uns lanches. Duas moças atendiam ao balcão uns homens conversadores. Precisei quase sacudir a minha notinha para que viessem me atender, quando fui abordado por um dos homens.

Do que você está precisando?“, disse-me prestativo em inglês o uzbeque de barba rala e seus 45 anos, um ar matinal de quem havia bebido. Comentei que estava aguardando para retirar os lanches pelos quais eu havia pago. “Dasha!”, gritou ele de forma amigável enquanto segurava um copinho de café. “Eu sou o dono“, explicou-me ele com aquele sorriso confiante.

De onde você é?“, e fez aquele floreio habitual quando eu lhe disse que era brasileiro. Perguntei se ele era mesmo aqui do Uzbequistão, dado que falava inglês bem. “Eu morei um tempo em Dubai. Aquela moça ali é da Geórgia. E essa de cá… essa é russa.”, concluiu com um tom ordinário apontando para a moça loira perturbadoramente bonita — com aquele ar sisudo dos russos — que atendia ao caixa. “Se precisar de qualquer coisa me diga”, e retornou ao balcão onde adicionou uma outra dose de vodka ao café.

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A área de check in do Aeroporto de Tashkent. Não é feia, mas é pequena. A área quase toda é isto que você está vendo, com o bar/lanchonete aqui no andar superior. (Se você vier, dê um alô às moças e pergunte pelo dono. Diga que mandei um abraço.)

A maioria dos outros passageiros que eu vira de manhã (e que pareciam estar no mesmo voo que eu) havia sumido, já outros compartilharam a maçada aeroportuária comigo. Zanzei lá e cá, li, comi, fiz umas coisas offline, e dei um jeito de avisar à minha próxima pousada que eu chegaria atrasado. Eu havia acertado de eles me pegarem no aeroporto lá.

À noite, quando finalmente abriu o check in, quase soltei foguetes. Fui o primeiro da fila. Já havia cogitado em qual hotel me hospedaria se o voo não saísse, mas parecia que ia finalmente sair. Estávamos às 21h de um dia que havia sido por demais comprido. Minha roupa continha suor desde Khiva. A emigração foi tranquila, e finalmente eu via os funcionários da Somon Air

Eu sei, “Quem mandou pegar essa empresa doida?“. O preço de apenas 50 euros o voo até Dushanbe, e principalmente o fato de ela ser a única que faz esta rota. Tive que aturar dois indianos ou paquistaneses conversadores e metidos a engraçados do meu lado, mas o voo foi curto, e o avião era surpreendentemente confortável.

Perto da meia-noite, eu estava pronto para fazer os trâmites de imigração no Tajiquistão. Vejo vocês lá.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

One thought on “Epílogo: Perrengues de trem e avião no Uzbequistão

  1. Vilgen, que horror, meu jovem amigo viajante. Arrremaria… Quantas vicissitudes…
    Pelo visto o tempo do autoritarismo emplacou bem ai. O mal é que ao meu ver, mexe com aquele lado malvado do ser humano e ele como que gosta de se mostrar ´poderoso . Infelizmente. Ainda bem que pelas historias que conta nessas publicações já passou por ”poucas e boas”, como diziam os antigos, e já esta ficando” calejado”, hha. Ainda bem que passou.
    Apesar das dificuldades, as belezas fizeram valer o passeio. Parabéns pela bravura.

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