Gdansk por muitos séculos fez história, e continuou a fazê-la em décadas recentes. A magnífica cidade que comecei a mostrar no post anterior também foi palco de capítulos históricos contemporâneos de grande importância.
Aqui teve lugar o grande movimento Solidariedade (Solidarnosc em polonês), liderado pelo vencedor do prêmio Nobel da Paz Lech Walesa, um movimento operário que contribuiu para a redemocratização da Polônia e o fim da dominação soviética na Europa.
Fala-se muito da queda do Muro de Berlim, evento mais simbólico, mas que esteve longe de ser o começo das transformações. As transformações na verdade tiveram início aqui na Polônia, meses antes. Vamos que eu lhes conto, e falo mais das minhas voltas por aqui.

Eu chegava novamente à Polônia para conhecer mais do país após já ter dado umas voltas aqui no passado, pelas suas cidades principais (Cracóvia e Varsóvia). Desta vez, eu começava pela cidade portuária de Gdansk, que já foi a Danzig dos alemães, e que trocou de mão muitas vezes na História, chegando até a ser uma “cidade livre” internacional por muitos anos.
Estamos hoje diante de uma moderna cidade portuária polonesa de meio milhão de habitantes.
No post anterior eu dei o pano de fundo; contei como esta cidade à costa do Mar Báltico foi polonesa até 1793, quando então a Prússia germânica a tomou. Não houve mais Polônia por mais de um século, até 1918 com a formação de um estado nacional polonês. Milhões de pessoas foram deslocadas durante e após a Segunda Guerra (1939-1945); alemães derrotados fugindo para oeste, e poloneses outrora massacrados agora reocupando territórios alemães.
Quase todo mundo que mora em Gdansk hoje veio para cá após 1948, muitos deles expulsos de terras que eram polonesas e foram tomadas pela então União Soviética. (Aquelas são terras que atualmente pertencem à Lituânia ou à Ucrânia, e que ainda têm expressivas minorias polonesas remanescentes).
Estamos hoje diante de uma moderna cidade portuária polonesa de meio milhão de habitantes.





Muita solidariedade aqui em Gdansk.
Eu chegara num setembro, teoricamente ainda fim de verão, mas já com cara — e temperatura — de começo de outono. Uns 15 graus fresquinhos, que alternavam entre sol e chuvas, algumas mais passageiras que outras, como é característico aqui das costas do norte da Europa.
Instalei-me num albergue gerenciado por uma moça emigrante ucraniana, Olga. Deveria ter seus 38 anos. Alta, forte, aquele jeito de mulher que resolve tudo em casa — e bela, com seus cabelos escuros. Como são também as mulheres russas não-princesas, ela oscilava entre um grande calor humano e uns rompantes quando se enraivecia. (Um turista chinês tomou um esporro como poucos que eu já vi.) Por debaixo daquela rispidez sisuda das ruas, os ucranianos e russos frequentemente são passionais assim, para bem ou para mal.
Desde as convulsões políticas na Ucrânia em anos recentes, cerca de 1 milhão de ucranianos já vieram cá à vizinha Polônia. O movimento de populações parece irredutível nesta região da Europa.
Sabendo-me na Polônia, não me demorei a procurar — e encontrar — uma das guloseimas polonesas de que mais gosto: queijo da montanha defumado e coberto por geleia de cranberry. É uma guloseima de rua. O queijo lembra um provolone, mas é polonês. (Cranberry, sendo uma fruta temperada, quase não goza de tradução — ou existência — no Brasil. Chamam-se oxicocos ou arandos em português, mas no Brasil acabam sendo misturadas a sabores artificiais no que se convencionou aí chamar “frutas vermelhas”. Aqui na Polônia, e noutras partes da Europa, você encontra a verdadeira.)


Tem uns bons free walking tours (tours gratuitos a pé, à base de gorjeta), que recomendo muito aos que entendem bem inglês. Há, inclusive, mais de um: a Gdansk clássica (onde aprendi muito do que lhes expliquei no post anterior) e a Gdansk contemporânea, com sua história recente.
Foi no segundo deles que, com um guia ligeiramente corcunda e de olhar curioso, fomos explorar o que se passou aqui da metade do século XX para cá. Escreve-se o nome da cidade em polonês com um acento no n, Gdańsk (tive que localizar como escrever isso, pois meu teclado não queria), e soa algo como se fosse “Gdânhsk”. Esse guia o pronunciava com particular dedicação, como se fosse um feitiço que precisasse ser dito com máxima precisão.

Gdansk tem uma história curiosa de ter sido o início oficial da Segunda Guerra Mundial — o primeiro tiro —, assim como o início do fim da Guerra Fria.
Vamos aos fatos.
Todo estudante de Ensino Médio aprende que a Segunda Guerra Mundial teve início com a invasão da Alemanha à Polônia em 1939. Pois o primeiro combate se deu aqui, quando um navio de guerra alemão que estava estacionado em visita de repente abriu fogo contra as guarnições polonesas da Cidade Livre de Danzig. Foi a primeira batalha da guerra, a Batalha de Westerplatte. Isso fica a alguns Km do centro, nos arredores da cidade, e hoje lá há um monumento.
Na cidade, você encontra um sinistro memorial aos funcionários dos Correios executados pelos alemães já em 1º de setembro de 1939. A parede onde eles deram as costas para o pelotão de fuzilamento segue em pé, e você pode pôr as mãos onde as deles estiveram. (Se você acha estes e outros memoriais soturnos na Polônia, deve-se ao tanto pelo que eles aqui já passaram.)


A Alemanha perderia, e perderia junto com a guerra uma grande parcela do seu território para a Polônia, como descrevi no post anterior. À época, a Cidade Livre de Danzig que voltava ao controle polonês — e a se chamar Gdansk como na era medieval — teve sua população praticamente toda substituída. Os alemães, que formavam 90% do povo aqui, fugiram ou foram expulsos com a derrota.
Os poloneses trazidos do interior do país, e de áreas de onde foram expulsos pela União Soviética na atual Ucrânia, não sabiam nada de pesca nem de embarcações.
O curioso é que os poloneses trazidos do interior do país, e de áreas de onde foram expulsos pela União Soviética na atual Ucrânia, não sabiam nada de pesca nem de embarcações. Suas famílias não eram de marujos, então eles aqui ficaram atrapalhados. Foram se dedicar a outras coisas, como as grandes fábricas que o novo governo polonês comunista erigiria. Construiu-se já em 1946 um estaleiro que seria palco de importantes movimentações.
Sob patrocínio da União Soviética, Gdansk tornou-se um importante pólo de indústria naval. A vida aqui seguia o ritmo que também tinha no restante do bloco comunista.




Em 1970, houve greve e manifestações de rua contra o aumento dos preços e a inabilidade da população em pagá-los. (Você acha que protesto por aumento de tarifa é coisa de hoje?) Os manifestantes foram reprimidos, e 42 morreram. Daí nasceria uma ideia e prática que viriam a ter forte ressonância com o Brasil: a ocupação de fábricas como protestos durante regimes autoritários.
“Saindo nas ruas nós ficamos vulneráveis e o movimento acaba em poucas horas, e há mais riscos de confrontos“, observou um sindicalista polonês na época. Quando novas greves e protestos eclodiram em 1980, queriam-se evitar os conflitos com a polícia ou com a milícia comunista que haviam ocorrido uma década atrás. Agora o protesto era parar as fábricas-chave para o regime, como faziam os sindicalistas brasileiros no ABC paulista durante a ditadura. Em Gdansk, você ainda hoje encontra, como registro histórico, as demandas dos operários escritas à mão numa placa de madeira à entrada do estaleiro que hoje é um museu.

Em 1980, era fundado com sucesso o movimento Solidariedade (Solidarnosc em polonês), o primeiro sindicato livre no Bloco Comunista. Breve, quase 10 milhões de operários Polônia afora associariam-se a ele. O líder era Lech Walesa, um mero eletricista. Correspondia-se com Luiz Inácio da Silva no Brasil, o torneiro mecânico.

Em 1981, a resposta a essas liberdades civis foi um golpe militar dentro da própria ditadura comunista polonesa, que levou ao endurecimento e aplicação de lei marcial nas ruas. O Solidariedade virou uma organização clandestina, apoiada aqui e ali por outros críticos ao regime comunista polonês, como vossa santidade Karol Wojtyla, já Papa João Paulo II desde 1978 em Roma.


Em 1989, a Polônia é o primeiro país a começar a quebrar a cortina de ferro que havia caído sobre a Europa do leste e central. Em junho, eleições semi-livres elegem dezenas de candidatos do Solidariedade ao congresso. Breve as peças do dominó foram se derrubando. O exemplo polonês seria seguido, como na Hungria, antes mesmo da queda do Muro de Berlim (em novembro), evento mais famoso, mas que não foi exatamente o início da mudança.
Aqui, embora o chefe de estado continuasse a ser um general, sua posição já não era mais sustentável. Breve, Lech Walesa seria eleito então o novo presidente da Polônia, em 1990.
Você hoje pode ver e conhecer detalhes de todo este legado civil polonês no excelente museu do estaleiro de Gdansk, o Centro de Solidariedade Europeu. A visita está recomendadíssima.
Há um outro museu muito bem quisto na cidade, este sobre a Segunda Guerra Mundial, mas dizem que aqui o governo nacionalista-populista anda fazendo revisionismo histórico para entortar alguns fatos, como esconder que houve colaboracionistas poloneses. Não me consta que tenham posto as mãos no museu sobre o Solidariedade (ainda).
(No Brasil, em 2013, o ex-deputado Paulinho da Força, hoje condenado por improbidade administrativa e com os direitos políticos cassados, fundou um partido homônimo, presidido por ele, chamado também de “Solidariedade”. A indigna referência foi inspirada no digno movimento polonês.)






Eu, por meu turno, daria minhas voltas por entre essas instalações industriais e as mais pitorescas ruas antigas de Gdansk, por entre os prédios de diversos momentos desta sua longa história.
Reencontrei um amigo polonês morando aqui, e fiz amizade com uma trupe de jovens mochileiros (10 anos mais novos que eu, pra eu começar a me sentir um mochileiro velho) no albergue. Um rapaz belga, um alemão, e uma garota alemã maratonista profissional e mais alta que eu — todos ainda a realizar suas primeiras viagens internacionais. Fomos comer uns pierogis (lê-se “pierógui”), uns bolinhos de massa com recheio típicos na Polônia.
À luz de velas naquela noite do outono que se aproximava, trocamos histórias. Eu tinha muitas a contar, mas tinha muitas ainda também a experimentar. Breve, tocaria meu barco. Minha próxima parada aqui na Polônia era Torun, a histórica cidade de Nicolau Copérnico. Veja vocês lá.



Maravilha. Adorei. Adorei essa Gdansk mais moderna que já me era mais conhecida. Acompanhamos aqui no Brasil essa epopeia do Lech e ele era um herói aqui. Seus esforços para democratizar as relações trabalhistas e abrir o cinturão de ferro da URSS chegavam a todos os recantos e balançavam a cortina de ferro. Com razão acho que a queda da cortina de ferro começou com ele. Eramos solidários com ele, até porque padecíamos aqui com a ditadura militar que podava tudo e a todos aterrorizava. Famosa a resistência dele e, ao meu ver, merecido o Nobel. E ele era carismático, falava bem e simpático. Contava com a adesão e simpatia do Ocidente e de muitos da própria Europa do Leste. Pena que não conseguiu como governante, realizar tudo que pensava de bom para os trabalhadores poloneses mas sua atuação foi histórica. Grande líder.
Adorei a postagem. Obrigada, viajante. que venha mais.