Ciência e religião estavam muito pouco separadas durante o Renascimento. As universidades, lembro-lhes, surgiram na Europa a partir da escolástica medieval dos monges cristãos e frades. Grandes pensadores como Newton e Copérnico eram definitivamente religiosos — e, no caso do inglês, perscrutava inclusive a alquimia e o esoterismo, como também o faria mais tarde o brilhante filósofo estadunidense William James. O próprio Charles Darwin, autor da teoria da evolução, era religioso e não via incompatibilidade alguma nisso. A separação de cientistas supostamente ateus de um lado, e religiosos fundamentalistas que nada querem ver com ciência do outro, é um fenômeno de 100 anos pra cá, tanto no islã quanto no cristianismo.
É por isso que, neste início Era Moderna polonesa, tínhamos Nicolau Copérnico (1473-1543), o homem que lançou as bases matemáticas e astronômicas do heliocentrismo — saber que a terra gira em torno do sol e não o contrário —, que dizem ter também se ordenado padre e dedicou sua obra Da Revolução das Orbes Celestes (De revolutionibus orbium coelestium) ao então papa Paulo III.
Bem vindos a Torun. Caso alguém não o soubesse, Copérnico era polonês, embora escrevesse em latim (a lingua franca da elite intelectual europeia na época). Nesta singela cidade ele nasceu, antes de fazer uns périplos pela Itália, aprender a ler grego antigo, e obter seu doutorado na Universidade de Ferrara.
Esta polonesa cidade medieval segue pitoresca, com suas igrejas de época, ruínas de um castelo erigido pelos Cavaleiros Teutônicos a partir do século XIII, e muitas tradições antigas — não apenas arquitetônicas como também gastronômicas, a exemplo do pão de mel, receita medieval que eu aprendi a fazer aqui numa oficina (ha!).



Eu vim de ônibus, a forma mais prática de deslocar-se na Polônia. (Seus trens são um tanto novelescos, mas dessa parte logística eu trato depois.)
Torun data do século VIII, e foi expandida quando os Cavaleiros Teutônicos instalaram-se aqui em 1233.
Torun é pequena, o que significa que com um dia inteiro você tudo vê. Meu amigo polonês em Gdansk havia me dito que você via tudo em 1h, mas é exagero. Alguns vêm como um bate-e-volta, de Gdansk ou Varsóvia, mas eu recomendo pernoitar. Foi o que fiz, instalando-me num albergue simples mas bem localizado no centro histórico. As muralhas da cidade seguem de pé circundando-o.
À recepção, atendeu-me uma coroa polonesa de cabelos prata e óculos de estilista que não sabia falar inglês. Explicou-me tudo direitinho sobre a cidade em polonês, e eu usei minhas breves palavras de checo (muito parecido) para entender o que pude (pouco). Se você acha que todo mundo no interior da Polônia fala inglês, ledo engano, mas tampouco terá necessidade de conversar demais aqui.
Torun data do século VIII, e foi expandida quando os Cavaleiros Teutônicos instalaram-se aqui em 1233. Esses cavaleiros, como expliquei num post anterior, foram uma ordem militar e religiosa formada no bojo das Cruzadas, assim como os Cavaleiros Templários e os Hospitalários de Malta. Só que os teutônicos foram uma ordem germânica. Enquanto ingleses e franceses digladiavam-se com árabes e turcos na Terra Santa, esses germânicos buscavam expandir a Cristandade sobretudo aqui no leste da Europa, ainda bastante pagão.
Seu castelo à beira do Rio Vístula segue ainda com estruturas de pé, ruínas que você pode ainda visitar aqui em Torun.


Os Cavaleiros Teutônicos aqui se instalaram a convite do monarca polonês da época, que sofria recorrentes ataques de tribos bálticas pagãs. Esses incursores eram os prussianos originais na costa do Mar Báltico, povo de origem comum com os lituanos, os quais junto com os letões são os últimos povos bálticos ainda em existência. (Lituânia e Letônia, portanto, falam línguas da família báltica, que não é nem eslava nem germânica.)


A Polônia, como eu lhes mostrei no post inicial em Gdansk, foi um reino rico e poderoso no princípio da modernidade — entre os idos de 1400-1700. Copérnico, nascido aqui, fazia parte da católica aristocracia polonesa. Era um estudioso religioso versado na investigação científica, como era próprio naquele tempo.
Copérnico teve receio do impacto que aquelas postulações teriam na sua religiosa sociedade e, sobretudo, diante da Igreja.
O heliocentrismo já havia sido postulado na Antiguidade pelo grego Arístarco de Samos (quase tudo no reino do pensamento chegou a ser postulado por algum grego antigo), mas não consta que Copérnico tenha tido acesso àqueles escritos. Foi então com múltiplas observações astronômicas e cálculos matemáticos que o polonês desenvolveu sua obra Da Revolução das Orbes Celestes.
Entretanto, Copérnico teve receio do impacto que aquelas postulações teriam na sua religiosa sociedade e, sobretudo, diante da Igreja. Teve então o esmero de dedicar a obra ao papa e evitar confrontos. Em verdade, relutou tanto em publicar a obra que ela só saiu em 1543, ano de sua morte.
Não sei se devido ao tato do polaco, mas a realidade é que a Igreja não reagiu à tese heliocêntrica por quase um século. Chegou, inclusive, a atualizar o calendário em 1582 com base nos cálculos de Copérnico. Naquele ano, adotou-se nova convenção quanto aos anos bissextos, e o chamado Calendário Gregoriano (em homenagem ao então papa) substituiu o Calendário Juliano. Em 1582, anoiteceu 4 de outubro e amanheceu 15 de outubro. Pularam-se 10 dias para ajustar.
(Essa é a razão pela qual, por exemplo, o Dia de Nossa Senhora de Guadalupe é 12 de dezembro. As civilizações mesoamericanas, conquistadas pela Espanha em idos de 1520, já faziam grandes celebrações no solstício de inverno do hemisfério norte — dia mais curto do ano e início dessa estação, que normalmente se dá 22 de dezembro. Porém, como aquele calendário europeu ainda não estava corrigido, o solstício estava acontecendo 12 de dezembro. Os católicos espanhóis, em vistas de associar suas entidades às locais e converter a população, fixaram a data da “Virgem morena” nesse dia. O calendário seria corrigido em 1582, mas a data — hoje o feriado mais celebrado do México — permanece 12 de dezembro. Agora você sabe por que.)



Seria somente com Galileu, que um século depois insistiu na tese heliocêntrica, que Igreja se aborreceria de fato.
Em 1610, Galileu Galilei deu seguimento à tese de Copérnico com seu tratado Sidereus Nuncius (“mensageiro sideral”). Em 1616, a Igreja declararia o heliocentrismo uma heresia, e em 1633 Galileu seria condenado pela Inquisição à prisão domiciliar perpétua. Ele morreria em 1642, e livros sobre heliocentrismo — incluso o original copernicano — foram postos no índice de livros proibidos (Index Librorum Prohibitorum).
Há um museu Casa de Copérnico em Torun, mas advirto-lhes que não é realmente a casa dele, apenas uma representação de como era uma morada de mercador rico na época. Umas voltas rapidamente lhe revelam a beleza de época desta cidade.






Como se trata de uma cidade de época na mui católica Polônia, não faltam igrejas belas a visitar aqui.














Há também um Museu da Cidade que é razoável, e gratuito às quartas-feiras. Mas o charme mesmo está em suas ruas e nesses legados que mostrei.
O vídeo abaixo dá uma palhinha breve da atmosfera do centro aqui de Torun, caso você queira sentir.
Por fim, termino como prometido com o pão de mel, iguaria medieval típica daqueles tempos aqui na Polônia como em muito da Europa. Eles aqui em Torun têm museus interativos onde você não apenas vê ou lê a respeito, mas literalmente põe a mão na massa e faz o pão de mel tradicional.


Todas as autênticas receitas medievais europeias de doces são com mel, não açúcar. O açúcar, na Idade Média, era uma raridade cara. Oriundo da Índia, ele foi trazido pelos árabes à Península Ibérica e, mais tarde, também pelos Cruzados cristãos que encontraram caravanas de mercadores desse “sal doce” pela Terra Santa.
O pão de mel leva farinha de trigo, mel quente, e especiarias: noz-moscada, pimenta do reino, cravo e canela.
O açúcar só apareceria de forma mais expressiva na gastronomia europeia a partir do fim do século XV e durante o XVI, após os ibéricos começarem a cultivar cana na Ilha da Madeira, em Cabo Verde e nas Ilhas Canárias, antes de introduzirem-na também ao Brasil no século XVI. (Não é à toa que a culinária portuguesa é tão rica de doces açucarados, muito mais que a maioria das demais culinárias europeias.)
Especialmente aqui na Europa Central, todavia, mantém-se muito forte a tradição dos quitutes feitos com mel, não açúcar. São delícias especialmente comuns no Natal, época em que os cristãos permitiam-se consumir das coisas mais raras e caras — especiais. Assim surge o costume, encontrado até hoje, dos pães e biscoitos de especiarias serem típicos dessa época — na Polônia, na Holanda, na Alemanha, por muitas partes.
O pão de mel (dito em inglês gingerbread, que literalmente seria “pão de gengibre”) leva farinha de trigo, mel quente, e especiarias: noz-moscada, pimenta do reino, cravo e canela.
Prestei-me a fazer um. (Vou virar quituteiro e largar o blog.)





É, gostei da experiência mas acho que vou seguir nas viagens. Fica a dica aos habilidosos na cozinha.
Apresentados estão à Torun do senhor Copérnico. Essas são as muitas facetas interessantes da Polônia de 500 anos atrás que você pode visitar ainda hoje. Eu seguiria agora a outras bandas país adentro.

Linda essa foto de abertura. A igreja com seu secular relógio e a figura garbosa de Copérnico. Maravilha. Gosto também dos tons dos tijolinhos. Lindinhos.
Curiosa essa união da Ciência e da Religião nos tempos antigos e preocupante, ao meu ver, essa dicotomia de hoje. Imagino entretanto a dificuldade dos cientistas quando os resultados e descobertas cientificas iam contra alguns princípios da fé tradicionalista. Que o diga Galileu.
A torre parece de jogo de xadrez. Adoro cidade com muralha. Belos portões ou portais ou pórticos. Lindo tom da muralha. Bela torre. e que bela foto essa do senhor, meu jovem com os canteiros floridos tendo como fundo o maravilhoso Vístula. Lindo. e o céu azul completa o belo quadro. Uma das mais belas da postagem.
Parece que você entra no túnel do tempo e desce no Medievo. Muito gostosa essa sensação. Falta sair um cavaleiro medieval de algum recanto. Belas e elegantes fortificações. que maravilha. Resistentes ao tempo.
Lindo o tom acastanhados dos tijolinhos. Com os telhadinhos vermelhos parecem os jogos de armar infantis. Lindos.
Paragens bonitas porem pelo visto pouco populosas. E curiosa essa torre inclinada.
Muito interessante essa ajuste no calendário e sua relação com as pesquisas de Copérnico. Estratégico o rapaz, oferecendo as descobertas ao papa. Curioso.
A igreja antiga sempre aproveitou os hábitos e costumes do povo para registrar seus feitos. Muito interessante isso sobre Guadalupe, e o solstício. Nesse contexto de uso de festas populares parece ter se integrado o Natal.
essa foto de Copérnico com a torre do relógio atras esta um deslumbre. As floreiras o verde das plantas e o Céu azul formam um quadro magnifico. Lindo
E que bela praça. Adorei a foto dos namorados e da menininha com a mamãe, na praça com os pombinhos. Lindinha. Parece uma bonequinha. Lindas ruelas.
Este calçadão tem algo de Viena, nos prédios.
Amei essa foto do cachorrinho com o chapéu do dono na boca. Fofíssimo. Essa historinha não chegou aqui ao Brasil. E que horror esse castigo. Tenho amigo que diz que a gente acha que hoje é ruim, mas que já foi muito pior. Pelo visto é verdade.
lindas essas igrejas e seus interiores. Adorei os tons suaves, lilases e a claridade. Belo estilo arquitetônico e bela mistura de estilos. Maravilha essa mistura de gótico barroco e rococó. linda.
Belíssima porta do sacrário, esses afrescos maravilhosos e esse Jesus árvore da vida são fantásticos.
Belissimo esse batistério rosa da Catedral. Lindíssimo. Histórico. Teve a honra de batizar um gênio.
Pelo video parece que se está esta numa cidade alemã.
Hahah o senhor quituteiro seria muito engraçado, data vênia, meu jovem. mas o pão de mel esta com a cara ótima. O que se conhece aqui não é muito bom. Muito doce. haha
Belo habito das flores a qualquer hora.
Gostei da cidade, da história e da postagem. Bela cidade, belo pais. Obrigada.