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Polônia

Poznan, a cidade onde a Polônia nasceu

Poznań às vezes parece computação gráfica com seu casario colorido, mas é real. É a histórica cidade onde a Polônia surgiu.

Todos os brasileiros sabemos do marco inicial que se convencionou ter de quando o “Brasil” como tal surgiu, no 22 de abril de Cabral. Já as outras nações, quando surgiram? Às vezes achamos que as nações europeias “sempre estiveram ali”, como comentei no post inicial em Gdansk, mas isso não é verdade. Claro que determinar qual foi o início é uma escolha social, política, pois o surgimento de um povo não se dá “do nada” como um Big Bang. As nações americanas tivemos Declarações de Independência para nos orientar; já os europeus, não.

No caso da Polônia, mui católicos, eles escolheram a data do batismo do seu primeiro rei cristianizado (Mieszko I) em 966 como surgimento do país. Isso se deu aqui em Poznan, onde o rei polaco tinha uma de suas fortificações principais. Eram tempos bravios aqueles.

Sejam bem vindos à cidade. 

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Ruelas do centro histórico de Poznan, Polônia.
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Nesta vizinhança é que o primeiro rei polonês teria sido batizado em 966.

Estamos no centro da Polônia, esta terra aonde os poloneses e outros eslavos vieram nos idos do século VI, migrando do leste pra cá. (Os eslavos até então viviam onde hoje são a Ucrânia e a parte europeia da Rússia.) Começaram a aprochegar os germânicos pelo oriente, e viveram com suas tradições pré-cristãs por séculos, até converterem-se às vésperas do ano 1000.

Os poloneses se tornaram uma das nações mais religiosas da Europa, em parte porque o catolicismo lhes foi — e é — uma fonte de identidade nacional, espremidos como foram entre os luteranos alemães de um lado e os russos (ora comunistas ateus, ora cristãos ortodoxos) do outro.

Antes que eu esqueça: Henryk Sienkiewicz, autor do romance Quo Vadis? (1895), que depois virou o aclamado filme, era polonês e viveu aqui em Poznan. (Um bocado de “Marcus Vinicius” espalhados pelo Brasil que nem sabem que a moda do nome veio desse romance…)  

Domine quo vadis
Domine, quo vadis? (1602), quadro do renascentista italiano Annibale Carracci. O pintor capturou uma passagem do documento apócrifo conhecido como Atos de Pedro, original do século II. Nele, o velho apóstolo estaria fugindo de Roma por suas pregações ilegais, quando deparou-se com Jesus à saída da cidade e, tomado de surpresa, perguntou “Aonde vades, Senhor?” (Quo vadis, domine?). “Vou para Roma ser crucificado novamente”, teria-lhe respondido Jesus. Pedro então, constrangido, retorna à cidade e é ele próprio crucificado — de cabeça para baixo, pois cria que não merecia a honra de morrer do mesmo jeito que Jesus.

O escritor polonês, que viria a receber um prêmio Nobel de literatura mais tarde, romanceou o caso. Tratou de Lycia (ou Ligia no original em polonês), uma jovem cristã que se apaixona por um patrício romano chamado Marcus Vinicius na época do imperador Nero (64 d.C.) Leiam, e/ou assistam ao filme de 1951 e suas outras versões. 

Como não era raro na época, já no século XIX, os livros às vezes saíam primeiro pouco a pouco nos jornais antes da publicação como tomo. E assim foi com Quo Vadis (1895-1896), que entre outros teve seus capítulos primeiro publicados aqui no jornal diário de Poznan. 

Pois bem. Eu vim a esta cidade, com propósitos mui díspares dos personagens da obra, a conhecer brevemente como a reconstruíram após a Segunda Guerra. Como Varsóvia ou Gdansk, ela foi bombardeada, mas você hoje pouco nota.

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O centro de Poznan, com sua encantada prefeitura na grande praça do mercado, a principal.
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Seu casario todo renovado. Você aqui percebe o encontro da casas compridinhas, nesta arquitetura vertical típica do norte europeu (como em Hamburgo ou Amsterdã), com o colorido típico das casas da Europa Central, que você já não encontra por aquelas outras bandas.
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Fontes e outras obras de inspiração renascentista estão por toda a cidade. Estávamos no apogeu polonês, idos de 1400-1700, tempo em que a coroa polonesa era das mais poderosas da Europa.

Eu chegava de ônibus desde Torun, e veria aqui muito dessas ruas pitorescas, herança religiosa polonesa — muitas igrejas em distintos estilos —, lendas medievais e um quê de legado gastronômico também.

Fiquei instalado algo fora do centro histórico, onde a cidade tem um ar às vezes bonito (com praças bem arborizadas, avenidas, e monumentos que parecem remontar ao período comunista), e lugares de ares modernos sem-sal. É de praxe na Polônia atual que esses ambientes de distintas épocas se encontrem.

A cidade é boa de andar, e embora com 500 mil habitantes a sua região central é pequena o bastante para se ver tudo a pé.

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Poznan às vezes me lembrou as cidades da antiga Alemanha Oriental (Leipzig, Dresden, partes de Berlim) com o seu misto de arquitetura modernista, construções mais antigas, e um cheiro ainda do tempo comunista deixado no ar e no seu urbanismo.
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Fonte num parque da parte moderna de Poznan.
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Monumento em honra aos levantes poloneses, sobretudo os protestos populares de 1956 (que tiveram Poznan como epicentro) contra o governo ditatorial comunista. O estilo artístico, entretanto, é bastante modernista e característico daquele período.

Se seguirmos cronologicamente, o início de tudo aqui — e da Polônia como país — é a Ilha da Catedral (cathedral island, ou Ostrów Tumski em polonês), uma ilha fluvial onde está a mais antiga catedral da Polônia, construída há mais de mil anos, no século X. 

O Rio Varta é o que passa por aqui, e naqueles tempos medievais era sempre mais seguro estar bem protegido de eventuais ataques. O pedaço de terra numa bifurcação do rio, que irá se reencontrar depois, pareceu à época o lugar ideal onde construir uma fortificação. Após o batismo do Rei Mieszko I em 966, aceitou-se então a vinda do primeiro bispo à Polônia, fazendo desta então a primeira catedral destas terras.

O cristianismo ainda levaria 400 anos para se consolidar na região. Havia duques e outros nobres — para não falar do povão — que preservavam suas tradições religiosas pré-cristãs, e Poznan chegou a ser atacada, destruída e reconstruída diversas vezes.

A Catedral de São Pedro e São Paulo foi, naturalmente, renovada e expandida do século X para cá. Ela hoje tem um charme algo gótico que data muito dos séculos XIV e XV, com toques neoclássicos posteriores. 

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O Rio Varta hoje é modesto, e você atravessa por uma ponte à Ilha da Catedral.
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A Catedral de São Pedro e São Paulo em Poznan, fundada em 968, a primeira da Polônia. A construção foi ampliada e renovada de lá para cá.
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Imagem de São João Paulo II à entrada da catedral. Ele, agora canonizado, foi o único papa polonês da História.
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Altar no interior da catedral gótica, embora os adereços sejam posteriores.
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Capela adjacente em estilo neoclássico.
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Teto com personagens cristãos (há mais de 12, então não são apenas os apóstolos)
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São Pedro e São Paulo nesta capela adornada em ouro.
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Uma das outras várias igrejas que agora há na Ilha da Catedral.

Como em outras cidades da Polônia, recomendo informar-se ao chegar sobre os tours gratuitos a pé (free walking tours) com guias locais. Qualquer pousada ou albergue lhe informa os horários atualizados, e você aprende muito sobre as historietas da cidade. Poznan é repleta delas.

Minha guia foi uma jovem polonesa alta, de rosto fofo e redondo, com óculos de armação grossa. Falou-nos, dentre outras coisas, do Croissant de São Martim, feito com sementes de papoula branca numa receita protegida por lei com certificação de origem protegida. Ou seja, só patisserias certificadas podem vendê-lo.

A proteção de origem é para preservar as tradições culturais de cada lugar e assegurar que não vendam gato por lebre e manchem o nome da iguaria — não tem a ver com o fato de levar semente de papoula nos ingredientes. Ela aqui é perfeitamente legal.

A papoula (Papaver somniferum) evoca à maioria dos Ocidentais a ideia de droga, já que seu látex é usado na fabricação de morfina, ópio e heroína mundo afora. Porém, ela tem uso medicamentoso desde tempos imemoriais, e suas sementes — que não deixam ninguém doidão — seguem sendo muito usadas na gastronomia da Europa Central.

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O croissant de São Martim é a iguaria mais respeitada de Poznan. Seu certificado de origem é protegido por lei em toda a União Europeia, e fiscais à paisana circulam padarias afora para verificar que não estão vendendo gato por lebre.

Se você tem interesse em aprender mais sobre — ou, melhor até, se quer literalmente pôr a mão na massa e fazer — o croissant de São Martim, pode visitar o museu dedicado ao quitute que há no centro de Poznan. (Busque por Croissant Museum.)

A receita foi inventada por um frade na Paróquia de São Martim em 1891, parte de uma campanha “Ajude seu vizinho a sobreviver ao inverno”. Os croissant, embora muita gente ache que são franceses pelo popular nome “crescente” na língua de Voltaire, é em verdade uma receia austríaca que se espalhou há séculos Europa Central afora.

O frade achou, contudo, de fazê-la mais no capricho: com calóricas camadas de açúcar, recheio de massa de sementes de papoula branca, e exatas 81 camadas de massa — é o que dizem, a receita não é pública e eu não tenho acesso aos segredos dos frades de Poznan. Ele deve pesar entre 200-250g e medir cerca de 14x10cm. Se o tamanho ou os ingredientes estiverem incorretos, os fiscais podem suspender o certificado da padaria.

Eu provei e — embora não houvesse quem me fotografasse no ato — digo que é um quitute bem-feito, saboroso, e deveras doce. Não saiam aqui sem experimentar.

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Ei-lo, o Croissant de São Martim (St Martin’s croissant, ou Rogal świętomarciński em polonês), cuja receita tem certificado de identidade protegida e somente padarias certificadas podem vendê-lo.

Nas várias paragens pelo centro de Poznan, a nossa guia mal continha sua animação para a todo momento nos falar de comida. Foi batata assada com queijo cottage, pepino e outros legumes que você queira; e particular empolgação quando nos falou da sopa preta de sangue de pato, iguaria da região. 

Receitas tradicionais de outrora que permanecem vivas, ao contrário do pato.

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Bodes símbolo de Poznan. (Também têm ligação com uma receita…)

Dizem que no ano de 1551, quando a Polônia era vistosa e rica, o cozinheiro do prefeito de Poznan estava a preparar um glamuroso banquete com gazela assada no pau, quando a carcaça do bicho acabou por cair dentro do fogo e ficar, digamos, um tanto chamuscada. O cozinheiro teve então a brilhante ideia de substituir a gazela por bode, e tentou afanar os primeiros que viu. Foi essa dupla, que no entanto era esperta — feito os peixes de Bolsonaro — e saiu correndo prefeitura adentro. Lá no alto na balaustrada, puseram-se a brigar uma com a outra à vista do prefeito e de todos os dignatários na praça. 

O prefeito e seus convidados acharam que era um entretenimento surpresa e ficaram admirados, chegando a depois perdoar o cozinheiro pelo episódio. Dizem que isso se deu mesmo, e até hoje o cuco do relógio da prefeitura cada vez que bate o meio-dia mostra miniaturas dos bodes saindo a lutar. Não deixe de ver.

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Prefeitura de Poznan.
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O relógio da prefeitura de Poznan, na praça principal, tem um mecanismo tipo cuco de onde miniaturas de bodes saem a lutar quando bate o meio-dia.
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As pessoas abaixo olhando.

Essas traquitanas datam duma época pós-medieval, do período renascentista e barroco, quando a Polônia ainda estava em seu esplendor antes de ser suprimida pelos germânicos e russos no século XVIII

Você aqui também verá belas outras igrejas dessa época, afora o casario. A mais estupenda delas é a igreja jesuítica da Santa Maria do Perpétuo Socorro, dedicada a São Estanislau. Foi construída entre 1649 e 1705.

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A Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, também dedicada a São Estanislau, o padroeiro da Polônia. Ela foi consagrada em 1705.
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De outro ângulo.
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Vista de frente, por entre as ruelas.
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Seu interior barroco, repleto de mármore rosa.
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O teto.
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Ala lateral da igreja barroca.
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Brilhante riqueza de detalhes.

É uma visita obrigatória essa igreja em Poznan, seja por motivos estéticos e/ou religiosos. Ela é uma das mais importantes obras barrocas de toda a Polônia.

Logo ao lado, se você quiser se refrescar, há uma sorveteria muito boa. Não experimentei a tal sopa preta de sangue de pato, mas há farturas de comidas polonesas simples ou sofisticadas (como o croissant de São Martim) a experimentar cidade afora.

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Vai um sorvete de frutos do bosque da Polônia?
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Rua no centro de Poznan, com um restaurante italiano ali. (Devido à filiação católica, você verá muitos italianos aqui.)
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Se procura uma das cantinas típicas polonesas (os chamados “bares de leite”, como expliquei anteriormente), o Apetyt é uma boa.
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Não tem wi-fi. “Falem uns com os outros. Ligue para a sua mãe. Finja que é 1993!”.

Ah, Poznan tem suas nostalgias!

Dadas estas voltas aqui, era hora de seguir rumo a outras paragens na Polônia.

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A menina com as jarras de água da fonte.
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O charmoso casario colorido, quase mágico, de Poznan.
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A histórica Praça do Mercado de Poznan, a principal desta cidade onde a Polônia nasceu.
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Seu casario.
Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

One thought on “Poznan, a cidade onde a Polônia nasceu

  1. Ihh que cidade encantadora. Cidade de boneca. Parece feita para se brincar hahah… Que fofinhas essas casinhas compridas e coloridas semelhantes à se Copenhague e de Amsterdam ; Belo colorido. Essa prefeitura parece de chocolate e saída da fábula de João e Maria da infância de uns 60 anos atras. lindinha. Ou de brinquedo de armar. Que lindinha essa cidade.
    Lindas ruelinhas, belíssimas igrejas tanto nos estilos arquitetônicos quanto nos magníficos interiores.
    Cada recanto florido que encanta os olhos. O verde com o bege forma um harmônico quadro, espelhado pelo belíssimo céu azul. Uma pintura.
    Interessante o Quo Vades. Segundo dizem, seria na Via Ápia, uma das saídas de Roma. O interessante é que o pintor colocou Jesus musculoso, como mandava o Renascimento Italiano. Filme famoso.
    Linda fonte. Adoro essas fontes. Lembram as de Roma e de outras cidades europeias.
    Essa parte moderna também é bem bonita. Parece mesmo com a arquitetura de cidades alemãs.
    A invasão,da Polônia e a reação russa à tentativa de libertação da Hungria, na década de 1950 abalaram o futebol e o e o Ocidente. Belo monumento em homenagem à resistência dos polacos e aos seus heróis.
    Belíssima essa região da ilha da Catedral. jardim maravilhosos e bem cuidado.
    Apesar de não gostar do estilo soviético de moradias, gosto muito da parte do urbanismo onde se pode ver belos e arborizados boullevares e belíssimos jardins, alem das suas largas vias. muito bonitas.
    Esses interiores são magníficos: ricos em detalhes, alguns revestidos a ouro e belíssimos. Os múltiplos estilos dão efeitos maravilhosos.
    Linda essa igreja em verde bege e laranja. Belo estilo. Elegante e charmosa.
    Curioso esse Croissant de San Martim e sua história. Gostei muito dos bodes briguentos ahahahaha
    Coitado do pato. Tao bonitinho. hahah Que horror.
    Lindinho esse cuco da prefeitura de chocolate branco haha .Creio que ha um cuco também em Praha, também envolto em uma historieta.
    Ihh que igreja linda essa rosa verde e branca. Nossa…. impressionante…uuuuu Que interior fantástico. Essa mármore rosa é incrivelmente belo. Extraordinário. Esplendoroso. Espetacular. Que maravilha e que riqueza de detalhes e jogo de cores e luzes. Belíssimo. Uma riqueza. Essa nave é impressionante.
    Amei. Deu vontade de ir la e conhecer essa joia polaca.
    Obrigada jovem viajante. Linda cidade, bela escolha ótima postagem. Valeu. Amei.

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