Quando os americanos chegaram aqui com seus helicópteros militares em 1955, o Vietnã já estava em guerra há pelo menos 10 anos. Resistiam aos franceses, potência imperialista que os havia dominado desde 1858. Perderam o poder com a invasão japonesa na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mas vencida esta, os franceses queriam o Vietnã de volta. Os vietnamitas disseram não.
O Vietnã foi uma monarquia independente durante quase 1000 anos, de 938 a 1858, quando uma França renovadamente belicosa com Napoleão III no poder resolveu expandir seu império na Ásia e na África. Aqui, subjugaram antigas civilizações do Sudeste Asiático para formar que passaria a ser chamada Indochina Francesa.
Tal qual a China imperial perante os britânicos nas Guerras do Ópio do século XIX, o Vietnã tampouco logrou resistir à “diplomacia do canhão” dos franceses. (Povo tão fino.) Como sempre há um pretexto, aqui foi a suposta perseguição dos monarcas vietnamitas aos missionários católicos franceses nestas terras.
Vivíamos a Dinastia dos Nguyễn aqui no Vietnã, país que era uma versão menor da China no seu modelo tradicional de governo: uma monarquia dinástica acompanhada por um corpo administrativo de mandarins. (Hoje, é ele uma versão menor da China comunista, mas disso a gente fala depois.)
O imperador Tự Đức — na pernóstica grafia latinizada cheia de acentos que os franceses implantaram para substituir os ideogramas chineses— foi o último soberano. Ele vivia com sua corte aqui na última capital imperial: Hue. Tecnicamente, escreve-se Huế, com tanto um acento agudo quanto um circunflexo. O som fica um mesclado de “Rué” e “Ruê”. Pratique em casa.




Como você há de notar, chovia. Não era uma chuva torrencial, mas daquelas chuvas que duram o dia todo — ou a semana toda, ou o mês todo. Disseram-me que aqui em Huế chove quase que ininterruptamente de novembro a março. De fato, eu não veria nem o sol nem o azul do céu por dias a fio.
Chegávamos de trem desde a capital Hanoi já debaixo de chuva, como mostrei no post anterior. Um lamaçal completo nos aguardava à estação e também às ruas. Já onde havia asfalto, as poças tomavam o lugar da lama.
Por sorte, aguardava-nos também o motorista do hotel, um sorridente rapaz alto munido de guarda-chuvas para todos. Ele parecia acostumado ao constante de água. À rua, as pessoas desfilavam capas plásticas de chuva em múltiplas cores, a pé ou de bicicleta. Até nas motos as pessoas iam meio que como personagens de Corrida Maluca, às vezes com uma capa por cima do veículo.





Mentira, eu não estava happy nada. A gente sempre se vira, mas eu já estava quase ficando com hidrofobia, de tanta água ao meu redor. Não bastasse a chuva eterna, eu olhava para o lado e ainda via o Rio Perfume (traduzido assim pelos franceses) com suas embarcações aparentemente afundadas (só que não). Água era inevitável, onipresente.

Por sorte², tivemos um hotel para lá de agradável — e que me sinto no dever de recomendar em solidariedade aos que porventura venham aqui: o Hotel La Perle. Foi realmente uma pérola no lamaçal. Bem limpo, com boca-livre de frutas tropicais, e pessoas extremamente simpáticas.

Você olha o Vietnã hoje e se pergunta onde está o ressentimento, onde está a angústia diante do que sofreram. Certamente existem por aí, e os vietnamitas não são nada bobos, mas tampouco são amargos. Sua história dura não os fez duros. Ou endureceram sem perder a ternura, talvez.

Certamente ainda há dentre os leitores muitos céticos a se perguntarem o que eu afinal vim ver aqui. Huế não é exatamente uma cidade pitoresca, ela é uma cidade “normal” — que acontece inclusive de ser onde nasceu o monge e escritor budista Thich Nhat Hanh —, mas alguns dos monumentos imperiais que há aqui são bastante especiais.
Tal qual seus pares chineses, a realeza vietnamita vivia isolada da população, numa reclusa cidadela imperial. A do Vietnã, construída nos idos de 1800, foi emulada na “Cidade Proibida” de Pequim, embora seja menor e receba menos turistas. Isso também quer dizer que você tem mais o lugar para si.
Você se perde ali por algumas horas, entre pavilhões, portais, muros e campos de grama alagada sob a chuva.


Fosse como fosse, marchamos de guarda-chuva e capa plástica debaixo de chuvisco, nos desviando das poças no asfalto, até avistarmos as várias muralhas concêntricas da cidadela.



O céu permanentemente branco e a chuva homogênea às vezes faziam eu me sentir como se estivesse num lugar surreal, imaginário. Talvez num sonho inspirado por algum video game ou filme de artes marciais.

À entrada com a bilheteria, alguns turistas, mas não muitos para a vastidão do lugar, cada qual com sua sombrinha e/ou capa por sobre aquele piso molhado.



Aí viveram os imperadores da Dinastia Nguyen, a última do Vietnã. Hoje, a cidadela é Patrimônio Mundial da Humanidade tombado pela UNESCO.
Quando construíram essa Cidadela Imperial, os Nguyen haviam acabado de reunificar o reino após lutas intestinas que perduravam desde 1527, quando o general regicida Mạc Đăng Dung matou o imperador Lê para tomar o poder. Isso deflagrou um período de caudilhismo no Vietnã, quando o imperador foi transformado em figura simbólica e famílias militarmente poderosas é que davam as cartas e brigavam entre si — como ocorreu em certos períodos também na História do Japão.
Nesse contexto, começaram a chegar cada vez mais missionários católicos ao Vietnã, sobretudo frades jesuítas. Tem-se notícia de romanos antigos aportando aqui já em 166 d.C. (o que seria o primeiro contato de ocidentais com estas terras), e Marco Polo teria também passado por aqui em 1292, mas a partir do século XVI com as grandes navegações é que a coisa ganha corpo.

O jesuíta francês Alexandre de Rhodes (1591-1660) é provavelmente a figura mais importante desse período, um missionário que viveu décadas junto à corte e às famílias poderosas vietnamitas e publicou em 1651 o Dictionarium Annamiticum Lusitanum et Latinum, com traduções do vietnamita ao latim e ao português.
Isso porque jesuítas portugueses, que andavam por Macau e pelas Índias há muitas décadas, já vinham preparando o que viraria a grafia vietnamita com o alfabeto latino.
Esse trabalho foi todo baseado no português, viu gente? Então sintam-se em casa para ler as coisas em vietnamita.
É por isso que você encontra til, acento circunflexo, e essas coisas comuns ao português. Só não me peçam para pronunciar o que ocorre quando aparece um em cima do outro. (O meu favorito é aquele que parece um ponto de interrogação por cima da letra.)

Com o progresso dos jesuítas na conversão de almas, os governantes vietnamitas começaram ver que as missões religiosas estavam por demais insidiosas. Ameaçavam solapar a sociedade — e quiçá a monarquia — com seus ataques às milenares tradições confucionistas, como o culto aos ancestrais, que os missionários cristãos viam como idolatria.
Formara-se em 1660 a Sociedade das Missões Estrangeiras de Paris, uma entidade formalmente não-religiosa, mas vinculada à Igreja e com fins proselitistas, que atuaria na Ásia de modo cada vez mais ferrenho. O ataque a seus membros seria pretexto no século XIX para a França atacar a China, a Coreia, e o Vietnã.
Quando a Dinastia Nguyen assume o poder aqui em 1802, as atividades missionárias francesas — que não raramente tomavam partido também em questões políticas e ajudavam a armar certos aliados — seguiam a todo vapor.

Os imperadores Nguyen alternavam-se entre uns mais tolerantes à expansão do catolicismo e outros mais linha-dura. Num caso que não escapou à atenção dos governantes (nem dos franceses), o frade francês Joseph Marchand orientou uma revolta para tentar derrubar o imperador instalar um católico no trono.
Não acabou muito bem pro frade — ao menos não aqui no Reino da Terra, lá no Reino dos Céus eu não sei. Ele foi preso e executado em Saigon em 1835, e depois canonizado por João Paulo II em 1988.




Chuva na Ásia é diferente de chuva no Ocidente. Parece mais espiritualizada. Ou talvez seja simplesmente a minha imaginação. De uma forma ou de outra, era pitoresco.



Eu, em verdade, já não sabia mais tão bem quais áreas eram espelhos d’água planejados e o que havia sido causado pela chuva. O molhado, porém, se tinha seus inconvenientes, tinha também o seu charme.

Havia painéis contando os fatos históricos do lugar, e uma exposição de fotos de época, como das que mostrei.
Passado um tempo, a fome apertou, e era hora de eu encontrar a loira (“saída” em vietnamita).

Achei a loira por detrás dos alagados, e fomos atrás de uns rolinhos primavera no molho de amendoim.
Em verdade, não foram bem rolinhos primavera fritos, do tipo habitual de qualquer restaurante chinês, mas dos rolinhos à moda vietnamita, que são com uma massa mole (e não frita) de arroz dando voltas no recheio. Esqueça aquele molho acre-doce rosado dos chineses, e dê as boas-vindas ao molho de amendoim dos vietnamitas.

Eu não sei bem onde estava com a cabeça ao me sentar em qualquer bodega de rua (notem a mesa de alumínio) e ir assim em molho de amendoim. Imagina a potência do efeito digestivo disso, no caso hipotético de algo dar errado.
Mais sobre a comida vietnamita eu falarei a seguir. Era o meu primeiro dia em Hue, aqui no Vietnã central. No dia seguinte, veria monumentos ainda mais impressionantes.
Uuuuu nossa…nao sei o que chama mais a atenção, se as belezas da arquitetura cultura e religiosidade da Cidadela imperial, a chuva e o alagamento constantes ou o senhor, meu amigo, dançando feliz na chuva na orla do rio Perfume hahaha; Impagável, a cena hahaha. Otima… Adorei . Brincadeiras à parte , é impressionante a beleza da cidadela Imperial. Charmosíssima. Imagine quando estava ativa. Deveria ser muito bonita.
Dei ótimas risadas com a confusão de acentos os mais estranhos nos diversos lugares, muitas vezes juntos na mesma palavra. Engraçadíssimo. Adorei,
Gostei muito. Valeu.