O Vietnã por muitos séculos foi um império. Pequeno, mas esmerado na classe e tradição dos chineses. Os mausoléus dos seus últimos imperadores, do século XIX, estão aqui no Vietnã central, ao lado da molhada cidade de Huế. Chuva talvez combine com mausoléus (vocês daqui a pouco dirão).
Diante do eu fotógrafo, o caudaloso Rio Perfume (Hương), assim batizado pelas flores que dizem cair nele na época de chuva, trazendo consigo o odor dos pomares na correnteza.
Estávamos aqui na época chuvosa, mas eu não sentia cheiro algum que não fosse o de mato molhado pela chuva tropical (nada contra). As boas maneiras me pediriam para responsabilizar minha limitada capacidade olfativa, mas acho que se trata é de degradação ambiental mesmo. Muita água rolou desde que o rio ganhou o sobriquete de “perfume”.

Atrás estava o Pagode Thien Mu, uma estrutura de sete andares dedicada à “senhora celestial”, a aparição de uma velha que, em vestes vermelhas e azuis, teria aqui profetizado a vinda de um poderoso senhor — e desaparecido em seguida diante dos olhos dos aldeãos.
A profecia era de que aquele a erigir aqui um pagode, essas auspiciosas edificações orientais que apontam para o céu, seria um senhor a trazer prosperidade para estas terras. O lorde da família Nguyen, poderosa aqui no Vietnã central, tratou logo de ser ele o profetizado e erigiu o tal pagode da velha. Isso se deu em 1601.
Se por coincidência ou não, os Nguyen se tornariam a família imperial do Vietnã dali a um tempo. Porém, também a última. Seus mausoléus em intrincada arquitetura tradicional vietnamita são dos monumentos mais impressionantes que há no país.


Era mais um dia de chuva em Huế quando viemos conhecer de perto estes muitos antigos monumentos imperiais do Vietnã. Há sete tumbas, ou mausoléus, nos arredores de Huế. (Eles aqui em inglês dizem emperor tombs ou royal tombs, caso você precise se comunicar.)
Elas não ficam todas num mesmo lugar, então a menos que você permaneça um tempo na cidade, é preciso escolher. As tumbas mais bem quistas são as dos imperadores Minh Mang, Tu Duc, e Khai Dinh. São normalmente as inclusas nos tours, que qualquer acomodação lhe arranja de véspera, e que costumam incluir também o Pagode Thien Mu, a tradicional casa de jardim An Hien (An Hien Garden House), e o passeio de barco pelo Rio Perfume com almoço incluso.

O nosso guia foi um sujeito esperto, desses matutos com aquela ladinagem breve de vendedor de camelô. Os vietnamitas são sociáveis, mas cuidado com os espertões. Não desligue o seu latino sensor de malandragem.
O barco não era exatamente de um cruzeiro “romântico” como dizem enganosamente alguns sites e agências por aí, aproveitando-se da lírica alcunha de “perfume” do rio. Tenha em mente que a atração serão as tumbas. Ao menos nesta época do ano (outubro-março), o trajeto de barco nada mais é que um transporte.


Tínhamos café a bordo, e isso era o que importava. (Malgrado que isso causasse ida ao banheiro também a bordo depois, mas não era pra agora.)
O Rio Perfume exibia-se cheio, com suas águas turvas e barrentas tal qual muitos rios brasileiros na época de chuvas.
A chuva, falando nisso, não dava trégua; no máximo alternava entre chuviscos e pancadas mais generosas. Guarda-chuva e capas de chuva eram nossa indumentária.
Boa parte do caminho estava enlameado, o que francamente me fez pensar de início que eu havia entrado numa furada com este passeio. Depois é que as experiências me corrigiriam. (Perseverai!)
Atracamos numa margem de terra meio alagada para a primeira visita. O meu sapato quase que fica preso no lamaçal quando procurei andar. Diante do apuro visível de alguns, o guia — sonso como é frequentemente o caso aqui na Ásia — fazia aquela cara de paisagem de normalidade.

A casa de jardim de An Hien, nossa primeira parada, talvez fique mais bonita na primavera ou no verão, embora tivesse seu jeito singelo — meio que pitorescamente triste — sob a chuva.




Foi no retorno ao barco — desta vez cuidando ao pisar — que fui ao banheiro nos fundos da embarcação e tive a oportunidade de ver a goteira como pingava no arroz que nos seria servido no almoço. Procurei evitar olhar muito ao redor daqueles fundos, para não descobrir nada que me tirasse o apetite. O que o olho não vê, o coração não sente.
Mais 15 min e pararíamos novamente, agora para ver o Pagode Thien Mu com que iniciei a postagem. Afora a construção em si, há um charmoso pátio com templo budista e impressionantes bonsai de diversos tipos. (A quem achar que isso foi adquirido dos japoneses, saiba que foi o contrário: a técnica surgiu primeiro aqui na Ásia continental, sob o nome chinês de penzai ou penjing, e depois é que foi adotada no Japão.)


Aqui no Vietnã, essa técnica milenar de poda das árvores para deixá-las em miniatura desenvolveu-se no chamado Hòn Non Bộ, que é a elaboração de pequeninas paisagens reduzidas, junto com as árvores diminutas.


Como eu disse, o passeio ia ficando interessante.
Por ora, retornávamos ao barco para almoçar. Tive meu reencontro com o arroz, daqueles em que você finge que é a primeira vez.

À tarde, já de barriga cheia, retornaríamos à chuva para finalmente visitar as tumbas dos imperadores, a começar por Minh Mang (1791-1841).
Os imperadores vietnamitas da Dinastia Nguyen tinham o presciente costume de eles próprios planejarem suas tumbas e começar a construí-las ainda em vida, o que outros talvez achassem meio agourento.
Seguia-se aqui também a milenar tradição de se terem imagens de guerreiros junto à tumba, como que para guardar o monarca no além. (Como no mais famoso caso dos Guerreiros de Terracota de Xi’an, na China.)


Eu preciso dizer-lhes que mais fenomenal destas tumbas não são as tumbas em si, mas o ambiente ao redor. Todo o complexo de jardins, fontes, e pavilhões.








Minh Mang (1791-1841), para não dizer que eu não falei de quem ele era, foi o segundo imperador da Dinastia Nguyen. Reinou num período conturbado, em que parte da população ainda mantinha lealdade à dinastia anterior (a Dinastia Lê), e os missionários católicos franceses causavam cada vez maiores transformações — e inquietações — sociais.
Lembrem-se de que estávamos aí nos albores do imperalismo europeu sobre a Ásia. Britânicos, estadunidenses e franceses tentavam abrir ao comércio os isolados, e a esta altura tecnologicamente atrasados, reinos asiáticos como o Japão, a China, o Vietnã, e a Tailândia.

Minh Mang, pouco se dando conta do que poderia estar por vir, rechaçou as ofertas de abertura comercial dos ocidentais, e foi duro na repressão aos missionários católicos.
Como França e Inglaterra estavam ocupadas digladiando-se nas guerras napoleônicas até 1815, e os EUA ainda eram pequenos, nada muito grave ocorreu.
As gravidades maiores ocorreriam dois reinados seguintes, sob Tự Đức (1829-1883). Os missionários católicos haviam tentado dar um golpe em seu pai, e ele então redobrou a pressão sobre esses que espalhavam a “doutrina perversa” europeia, aqui sobretudo franceses. Em 1858, a França mandou as tropas.
Sua tumba foi das outras que visitamos.


Se você bem notou, o imperador Tự Đức não morreu com a invasão francesa. Ele ainda viveria 25 anos sob a tutela estrangeira, mantido como fantoche — como é de praxe as potências imperiais fazerem.
A França adquiriu inicialmente províncias no sul do Vietnã, estabelecendo o que ficou ali conhecido como Cochinchina. Obtiveram que em 1862 os vietnamitas permitissem a atividade missionária católica e ainda pagassem uma indenização milionária aos franceses. (Você fica aí achando que hoje é que as coisas estão duras?)
A França tampouco se deteve, e dali até 1887 conquistou todo o Vietnã. Não satisfeita, entrou em guerra com a Tailândia em 1893 (a chamada Guerra Franco-Siamesa, pois a Tailândia a essa época era conhecida como Reino de Sião, ou Siam. E, sim, os nomes “gato siamês” e “irmãos siameses” vêm daí.) Não conquistou a Tailândia em si, que permaneceu oficialmente não-colonizada por ninguém, mas adquiriu para si os atuais Laos e Camboja, formando o que ficou conhecido como Indochina, ou Indochina Francesa.


A terceira e última tumba das que visitamos aqui em Hue pertence ao imperador Khải Định (1885-1925), que “governou” em parte desse período de colonização francesa.
Ele, em verdade, era mais leal aos franceses que a seu próprio povo. Foi quem em 1919 oficializou a adoção do alfabeto latino para a língua vietnamita; e em 1922 chegou a ir pessoalmente como convidado à Exposição Colonial de Marselha. O futuro líder revolucionário Ho Chi Minh o chamava de “o dragão de bambu”, pois parecia muito nobre mas era oco, e não comandava nada.
Antes de morrer de tuberculose aos 40 anos em 1925, Khải Định ainda autorizou que os franceses aumentassem os impostos sobre o povo vietnamita, já paupérrimo. Parte da renda foi, justificadamente, para construir o palácio decorativo da sua tumba.






Aí vem a parte um tanto estranha, pois o imperador resolveu que queria um palácio sepulcral inspirado nos palácios franceses. Lá no alto encontra-se o resultado.



Os franceses segurariam o poder até a invasão japonesa da Indochina em 1941, no âmbito da Segunda Guerra Mundial. Vencidos os japoneses em 1945, os franceses quiseram voltar, e os vietnamitas disseram “não”.
Eclodia a chamada Primeira Guerra da Indochina (1945-1954), quando os vietnamitas — liderados por Ho Chi Minh — tiveram de expulsar os franceses a força.
Em 1954, os franceses se retiraram após sofrerem severas baixas. Os vizinhos Laos e Camboja adquiriram independência, e o Vietnã ficou partido em dois: um Vietnã do norte, governado por Ho Chi Minh com apoio internacional comunista, e um Vietnã do sul, em que o então imperador Bao Dai mantinha-se formalmente no poder, agora sob tutela dos EUA.
E eu já estava encharcado apesar dos meus melhores esforços para me manter seco. De volta para o hotel, reencontrei a simpática tropa de funcionárias baixinhas e descalças vestindo blazers e sorrisos, ou às vezes uma havaianas no pé. Eu tive que ficar da mesma forma enquanto, sem muita fé, tentava secar os sapatos e as calças com o secador de cabelo no banheiro.
No dia seguinte, finalmente partiríamos de Hue.
EPÍLOGO
Eu ainda tive que sair à noite para buscar comida, pois não serviam jantar no hotel. Saí mais uma vez sob a chuva, agora um pouquinho mais fraca enquanto anoitecia.
Passei por uma menininha de seus três anos chorando na frente de casa. A senhora com ela ainda tentou consolá-la apontando pra mim e dizendo-lhe algo, que deve ter sido algo tipo: “Olha ali o Ocidental”, como quando se quer distrair a criança com algo curioso. Mas não deu certo; ela me acompanhou com os olhos, mas o berreiro seguiu firme.
Eu ainda não mostrei direito pra vocês a comida típica vietnamita, mas ela encanta mais aos meus amigos que a mim. Muitas sopas de macarrão com pedaços de carnes e ervas, sobretudo coentro, que eles atiram aos montes.

Talvez o mais típico de tudo seja uma sopa assim chamada de Pho, mais líquida e com esse macarrão feito de arroz. Desliza que é uma beleza no pauzinho.
Como eu não como carne, pedi um sem numa bodega a uma simpática atendente que entendia inglês. O pho sem carne, todavia, acabava sendo uma sopa líquida de macarrão com ramos de coentro dentro. (Ou um pé inteiro de coentro, talvez.)
Saindo mais satisfeito com o atendimento que com a comida da birosca, avistei uma vendedora ambulante de sanduíches. Senhora de rosto asiático humilde e sorridente por debaixo do capuz da sua capa de chuva, que ia andando lado a lado com seu carrinho de vendedora ambulante. Seus olhos se iluminaram quando viram o meu interesse por um. Ou melhor, dá-me logo dois.
Ovo mexido com pão, molho de pimenta e — é claro, em se tratando do Vietnã — ramos de coentro dentro do sanduíche. Veio enrolado num pedaço de papel impresso com alguma coisa agora sem valor, no melhor estilo do lanche de rua. Quem entender vietnamita que me diga.
Uuuuuuu, quantas emoções…. Meu jovem, que situação periclitante essa de passear no molhado e ainda com lamaçal de segurar o sapato…arrremaria. Olhe que o senhor se mete em cada enrascada, e ainda mais num barco velho, que mais parecia uma arabaca, em meio a um melado matagal, e num rio que não me pareceu nada perfumado, apesar do nome, e admitindo a pouca habilidade olfativa da qual o senhor diz ter. hahahah. Deus me livre. So o senhor, Mairon Polo dos 7 mares, vários ares e um sem numero de terras e lamas navegados hahah. E ainda comendo arroz de goteira hahah. Hilárico. hahaha
Mas deixando esses pequenos detalhes de lado, a parte cultural, arquitetônica, simbólica, religiosa e histórica é mesmo maravilhosa e vale a pena os sacrifícios. Belo passeio. Lindo cenário. Mesmo sob a chuva. Linda arquitetura, colorido arrojado e muito interessante. Manifestação cultural significativa. Curiosa a informação sobre os bonsais. Pensei que tinham origem no Japão.Interessante a história dessas tumbas e do proprio Vietnã. Destaque para o grande Ho Chi Minh. E esses europeus não se emendam. Mudam de nome mas a abordagem é sempre a mesma: explorar, tirar, aproveitar, se dar bem e por ai vai. Apesar de ter ficado entre divertida e penalizada com as agruras do jovem viajante, adorei a postagem e admirei bastante as obras de arte do lugar. So nao gostei da chuvarada hahaha. Valeu, viajante.,