Bem vindos à Cidade Ho Chi Minh, antiga Saigon. Seu nome mudou em 1976, após a vitória sobre os Estados Unidos na Guerra do Vietnã, para homenagear o finado líder Ho Chi Minh (1890-1969), revolucionário que já havia liderado os esforços de independência contra a colonização francesa e, depois, contra a agressão norte-americana. Ninguém parece gostar de o Vietnã ser independente.
Estamos agora no sul do país, um lugar bem mais tropical que seu norte. Você já sente no ar, a suadeira tomando conta — como no Norte/Nordeste/Centro-Oeste do Brasil — a quase qualquer época do ano.
Se você imagina esta antiga Saigon um lugar pequeno e arruinado, reveja seus conceitos. Estamos na maior cidade do país (8 milhões na cidade em si, 14 milhões em toda a área metropolitana), o centro financeiro do Vietnã, e uma cidade de porte com largas avenidas e shopping centers iluminados.




Altos shoppings, prédios reluzentes. Amigos meus não-brasileiros que vieram aqui antes de mim disseram que a cidade era imunda, etc. Não achei. Eu não diria que é limpa, mas é o nível de sujeira de qualquer grande cidade brasileira. Nem melhor, nem pior. (Eu guardo o termo “imundo” para o que vi na Índia ou no Egito.)
Sendo o Vietnã, é claro, tem suas peculiaridades. Por exemplo, o hotel simples onde nos instalamos ficava nuns becos em meio às áreas centrais da cidade, onde a coisa se transformava rapidamente de um ar moderno-chique para um ar de periferia (como ocorre também em Bangkok ou em Kuala Lumpur e é típico na Ásia). Entre os vendedores e donos de bodega ali sentados conversando no beco, todos os dias se fazia presente também um altivo galo, empoleirado sobre uma das motos. Das coisas que você encontra.

Instalamos-nos num hotel/hostel familiar ali, onde ao final da calorosa manhã fomos acolhidos por uma simpática mocinha risonha, dessas com físico de boneca — também de vestido e pés descalços, como que para completar o fenótipo. (Tivesse tido ela outro humor, teria me lembrado alma penada de filme de terror asiático.)
Deixamos as coisas e fomos logo nos aventurar a um almoço, seguido de uma devida volta para ver o que há na cidade.
O nosso destino foi o Dinh Y, restaurante vegetariano sugerido pelo hostel (e cuja recomendação eu assino embaixo). Lugar simples, na área mais popular do centro, e boa comida.
Só nos esquecemos de que, tal como no Brasil tropical, às vezes se formam aquelas pancadas de chuva repentinas que vêm e passam.



Na área popular, estávamos com o restaurante já em vista quando a chuva engrossou. Adquiriu aquele calibre de toró, pé d’água, ou seja lá como você na sua região chame aquela chuva agressiva que parece que vai furar o asfalto.
Num momento de breve perda de força, corremos — ainda sob água — de uma loja de roupas populares onde havíamos nos abrigado até o restaurante. O mundo lá fora desabava.


Por sorte — ou por geografia —, essas chuvas fortes de próximo ao equador vêm e passam. Nada comparável à chuva permanente de Hue que eu deixara no Vietnã central.
À rua, os vendedores ambulantes safíssimos, sagazes, estavam ainda com sua lona plástica protetora na calçada. Brinque com os vietnamitas.



Você, turista, pode a esta altura estar se perguntando “o que afinal há para ver aí?”, dado esse jeito normal (e um normal à brasileira) da Cidade Ho Chi Minh.
Esta não é uma cidade turística por excelência, como já deve ter ficado claro. Ela funciona muito mais como coração econômico, e a maioria dos estrangeiros aqui são funcionários de alguma multinacional. Os turistas ocupam-se mais com Hanoi, Hue ou Hoi An, pelas quais eu já passei antes de chegar aqui.
Porém, a Cidade Ho Chi Minh lhe mostra um outro Vietnã, um Vietnã renovado, modernizado, e economicamente desenvolvido depois das agruras da guerra. Ho Chi Minh é o Vietnã que tem Starbucks e Hard Rock Café.
(“Ah, assim é bom ser comunista.” Os vietnamitas provavelmente concordam. Quem é que hoje quer ficar sem os confortos da vida e da tecnologia? Só os malucos na Coreia do Norte. O Vietnã segue muito mais o modelo da China, com economia de mercado e um sistema político de partido único. É que nosso dualismo conceitual herdado da Guerra Fria, de capitalismo ou comunismo, já não explica bem os híbridos de hoje.)

Dito isso, embora não haja aqui propriamente um centro histórico digno de nome, há casario colonial espalhado pela cidade e outras heranças do tempo do domínio pelos franceses (1858-1954), tais como igrejas. Vocês já conhecem a Notre-Dame de Saigon?
Esse é realmente o nome. Uma bela catedral consagrada em 1880, sob domínio francês e originalmente com um clero também francês, que a bem ou mal converteu parte dos vietnamitas ao cristianismo. Cerca de 6 milhões de vietnamitas, ou 7% da população, são católicos.


O gatilho para a perda do poder colonial francês nesta região foi a invasão pelos japoneses na Segunda Guerra Mundial. Como já comentei antes, os franceses após a guerra tentaram — por 10 anos — recuperar a colônia perdida, no que ficou conhecido como Primeira Guerra da Indochina (1945-1954).
Quando a França finalmente largou o osso, incapaz de sobrepujar o exército nacional de resistência (o Viet Minh), ela deixou para trás um Vietnã dividido: Vietnã do Norte (capital Hanoi) e Vietnã do Sul (capital Saigon, esta cidade que aqui vos apresento). Um tanto como o que ocorre até hoje na Coreia, houve um norte comunista patrocinado pela China e pela União Soviética contra um sul patrocinado pelo Ocidente.
Se você tem interesse por esse período, ou uma consciência humanitária global (e certo estômago para ver cenas fortes), não deixe de visitar o Museu dos Vestígios da Guerra (War Remnants Museum), talvez a principal atração de Ho Chi Minh. Não é uma visita alegre, mas é um pouco de dever cívico global para ponderarmos melhor as coisas do mundo — como quando visitamos Auschwitz na Europa.
Afora uma coleção de aparatos militares norte-americanos capturados, o museu conta bastante sobre a agressão estadunidense que trouxe 9 milhões de militares cá a este outro lado do mundo.


Foram vinte anos (1955-1975) de uma guerra que marcou toda uma geração.
Em linhas gerais, a França e os EUA apoiavam o líder Ngô Đình Diệm, um católico fervoroso e tão pouco representativo que — seguindo a tradição dos imperadores-marionete entronizados pelos franceses desde o século XIX — chegou a dedicar o país à Virgem Maria, para a estranheza dos mais 90% não-cristãos do Vietnã.
Mais importante que isso foi que ele reverteu toda a distribuição de terras que havia sido feita pelos Viet Minh na guerra de independência contra os franceses. Diệm trouxe de volta os senhores de terras e a cobrança de impostos aos camponeses, agora feita diretamente pelo exército.
Por fim, à là o que viria a ocorrer no Brasil durante a ditadura militar (só que em números bem maiores), já nos anos 50 Diệm iniciou uma campanha Denuncie os comunistas, na qual mais de 40 mil suspeitos foram presos e 12 mil, executados. A população vietnamita sentia-se cada vez mais alijada por esse governo capacho dos estrangeiros.


Ho Chi Minh e os comunistas no Vietnã do Norte, enquanto isso, apoiavam guerrilheiros rebeldes tanto no Vietnã do Sul quanto nos vizinhos Laos e Camboja. Em 1960, se formariam os famosos Viet Congs, ou a Frente de Liberação Nacional para derrubar o regime servil de Saigon.
Os EUA, que haviam basicamente tomado o bastão da França como potência estrangeira na região, estavam ainda com lembranças vívidas da vitória na Segunda Guerra Mundial e dos confrontos na Guerra da Coreia (1950-1953), e portanto mui dispostos a vencer na marra. Não daria muito certo, como se sabe, mas muita gente sofreria por essa arrogância.

Os presidentes Kennedy, Lyndon Johnson, e mais tarde Nixon aumentariam cada vez mais o efetivo estadunidense no Vietnã, com um número cada vez maior de convocados (draftees) que iriam se juntar aos soldados vitalícios (lifers).
Isso causou não apenas um grande descontentamento social nos EUA quanto também muitas críticas internacionais.
“Minha consciência não vai me deixar ir atirar no meu irmão, ou em alguma gente escura, or alguma gente pobre faminta na lama pelo bem da grande e poderosa América. E atirar neles por que? Eles nunca me chamaram de ‘preto’, nunca me lincharam, puseram cachorro nenhum em cima de mim, não me roubaram a nacionalidade, nem estupraram e mataram minha mãe e meu pai… Atirar neles por que? Como é que eu posso atirar nessa gente pobre?”
“O real inimigo do meu povo está bem aqui. Eu não vou desgraçar a minha religião, meu povo nem a mim mesmo me tornando uma ferramenta para escravizar aqueles que estão lutando por sua própria justiça, liberdade e igualdade”. – Muhammad Ali, 1968.

[O original: “My conscience won’t let me go shoot my brother, or some darker people, or some poor hungry people in the mud for big powerful America,” he said. “And shoot them for what? They never called me nigger, they never lynched me, they didn’t put no dogs on me, they didn’t rob me of my nationality, rape and kill my mother and father. … Shoot them for what? How can I shoot them poor people?”
“The real enemy of my people is right here. I will not disgrace my religion, my people or myself by becoming a tool to enslave those who are fighting for their own justice, freedom and equality…”]
Mais de 58 mil norte-americanos perderiam as vidas, e tantos outros retornariam aos EUA com transtornos mentais pelo que viram e fizeram.
Aqui, foram nada menos que 3 milhões de vietnamitas mortos (destes, 2 milhões de civis), afora os muitos outros nos vizinhos Camboja e Laos.
Eu vou poupá-los das imagens mais fortes do museu, e aqui mostro só uma palhinha.



Em 30 de abril de 1975, terminava o horror com a fuga de helicóptero dos últimos marines dos EUA e a captura de Saigon pelo exército do Vietnã do Norte, que agora re-unificava o país sob um único governo.
Ainda assim, dezenas de milhares continuariam a morrer dos efeitos das armas químicas ou das bombas não-explodidas e deixadas para trás. Mais sobre isso quando eu for ao vizinho Laos.
O museu segue em memória a esses anos difíceis, e é uma respeitosa visita ao sofrimento de um povo que ousa ser soberano.


Voltemos ao presente. (Se os vietnamitas conseguem, você também.)
Essa visita foi na manhã seguinte ao dia da chuva, após um belo café da manhã de sopa de macarrão com a família que me albergava. A mãe da recepcionista-boneca era uma senhora esguia e cordata, bem-arrumada feito personagem de novela mexicana.



Às vezes nem parece o mesmo país que foi arrasado há tão poucas décadas.
Há 30 anos a economia do Vietnã cresce 5-8% ao ano, bem mais que o Brasil, só para constar. Há certamente muita coisa por fazer aqui, especialmente no que diz respeito às liberdades políticas e a democracia. Mas não deixa de dar uma satisfação ver essa gente vivendo melhor.
Claro que, com o crescimento econômico desacompanhado de certos cuidados, surgem outros problemas. Por exemplo, ao contrário de Hanoi, há calçadas amplas em Ho Chi Minh, mas elas são rapidamente tomadas por enxames de motos que varrem as ruas tal como as pestes de gafanhotos das histórias bíblicas.
Falta-lhes um bom transporte coletivo (cadê o socialismo do país nessas horas? Parecem ter feito um “minha moto, minha vida” de locomoção individual que sufoca as ruas em vez de transporte público decente. Já vi um filme parecido.) Fiscalização nas calçadas também inexiste. Atenção.


Deixo o Vietnã com os vietnamitas e sigo o meu caminho. Prazer em conhecê-los de perto.
A quem desejar ver mais sobre a resistência dos Viet Cong, sugiro também visitar os Túneis Cu Chi (Cu Chi tunnels) fora da cidade, onde você pode adentrar os esconderijos onde os pequenos vietnamitas enfiavam-se para emboscar os soldados invasores e vencê-los, apesar da diferença de tecnologia. Fica a um bate-e-volta da cidade.
Eu revejo vocês no vizinho Laos.
Gente do céu que maravilha de postagem. Emocionante. Impactante ver essa resistência e resiliência desse povo tido como de segunda classe por nações desenvolvidas. Que povo corajoso, combativo e cheio de garra. Que habilidade de combater e vencer um inimigo tao poderoso e fazê-lo amargar uma derrota impensável para eles. Espetacular. E venceram mais de um já que retiraram os japoneses, os franceses e por fim os estadunidenses. Grande feitos, pequeno -grande povo.
E que maravilhoso depoimento de Ali. Na época acompanhamos esses eventos e estávamos do lado dele. Muita coragem.
Aqui no Brasil, a arte, sobretudo a MPB gritava contra esta guerra fratricida e desigual, que forçava os jovens a morrer sem razão. Ficou famosa aqui uma musica cujo titulo era ” Era um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones” e claro, morreu na guerra do Vietnam. Mais de uma geração gritou aqui contra essa guerra.
Terrível esse Museu. Os estadunidenses deveriam pagar uma indenização pela destruição da terra e do povo. Um horror.
Muito bonita a natureza. Essa vegetação esplendorosa é um convite aos olhos.
Imagino entretanto o calor e o auê com tanto furdunço, calor e chuvarada.
Meu jovem, a comilança me deu água na boca. Nao sei se já disse ao senhor, mas adoro comida asiática. As servidas aqui são péssimas. arremaria. So para quem nao conhece uma boa comida asiática.
De uma forma geral gostei de Ho Chi Minh. Nao me apetece muito o calor. Belas construções da época colonial.
Parabéns. Destaque para a garra dos vietnamitas, sobretudo o próprio homenageado com o nome na cidade. Merecido. Adorei a postagem. Estar na ásia é estar perto do Céu. hahaha
Ver a reconstrução do Vietnam, foi muito bom. Postagem Histórica. Mesmo sabendo que muito falta para o seu povo e para o desenvolvimento. Mas pelo porte da destruição e pelo pouco tempo de libertação, muito ja foi feito. Valeu, jovem viajante. Adorei.