Chegou a hora de iniciar as visitas ao Parque Arqueológico de Angkor, no Camboja. Aqui estão as ruínas seculares do que foi este povo durante a Idade Média.
Seus ancestrais, os Khmer, tiveram aqui um império de dimensões amplas, que ia do atual sul da Tailândia até as fronteiras com a China. Dominaram o grosso do Sudeste Asiático continental. Sua extensão foi quase o dobro do que tiveram os Habsburgo da Áustria na Europa.
Os Khmer eram hindus. Não eram etnicamente indianos, mas antigamente o hinduísmo era uma matriz religiosa não restrita à Índia — embora aí tenha surgido. Bali, na Indonésia, dá até hoje testemunho dessa difusão hindu Ásia afora que levou ao surgimento de variedades próprias, como aqui no Camboja medieval.

O budismo, emergido da matriz religiosa hindu, também tinha passagem livre por aqui. Certos reis escolheram ser budistas, embora fossem minoria. Veremos disso também por aqui.
Estimam-se 2 milhões de pessoas nesta civilização medieval no seu apogeu populacional em 1150. Sua capital, Yasodharapura, ficava aqui. Com o tempo, vingou seu apelido de Angkor — “a cidade” na língua khmer falada aqui até hoje —, como o povo se referia ao que se destacava como cidade em meio a um mundo ainda muito rural.
Imagine aí o mundo daquele tempo com seus elefantes vivendo soltos entre as palmeiras e outra vegetação tropical; tigres à espreita; templos de pedra com suas velas e oferendas hindus; pessoas morenas, como estes asiáticos daqui são, em trajes coloridos e provavelmente pés descalços lá e cá; e a construção das grandezas que nos foram legadas até hoje, e que podemos visitar para ter uma noção breve do que era aquele mundo.
Esta visita é uma viagem no tempo repleta de atmosfera. Falaremos dos Khmer em detalhes ao longo da jornada.
Era hora de acordar, sair de Siem Reap, rodar 20 minutos em tuk-tuk com o meu motorista de camisa vermelha e chegar a este mundo arqueológico e cultural de outrora.

Era uma manhã fresquinha como são as manhãs dos trópicos. Seis da manhã, o sol já ascendendo no céu, mas nada ainda do calor que sabíamos que viria. Ainda aquele ventinho contrastando com a cama deixada para trás. Aquele frescor de um lugar com árvores e muita vegetação, como os começos de dia no interior.
Como as demais pessoas das regiões quentes do mundo, os cambojanos acordam cedo. Eu, hóspede, me levantei antes das seis para o café da manhã e já encontrei mulheres, homens e crianças a circular no avarandado da pousada. Meu tímido e risonho motorista a aguardar ao lado do tuk-tuk — na prática uma moto puxando uma carroceria pra dois —, mulheres à cozinha preparando os alimentos, e crianças a brincar descalças no chão.

Alguns me dizem que isto é “coisa de homem”, não sei, mas não caso com esse costume atual de se sair carregando mil coisas — chapéu, protetor solar, água, comida, remédio pra dor de cabeça. Eu sou um homem feliz se puder sair de mãos livres e, de preferência, sem mochila.
Aproveitei-me de que aqui há comida e água à vontade à venda in loco, então saí apenas com a câmera no bolso, dinheiro e minha disposição matinal.
Monges descalços saíam com ainda menos que eu, claro, embora levassem uma bolsinha — também laranja como seus mantos — carregando Deus sabe o quê.
Eu os via caminhar na beira da pista, chão de terra, onde algumas barracas de fritura e refrigerante também já operavam, puxadas todas por alguma moto para o(a) dono(a) levar pra casa de noite.


Passamos no centro de acolhimento ao visitante, no Apsara Ticket Office (a única bilheteria oficial, como expliquei no post anterior), e então seguimos para o parque. Às 6:30 da manhã, quase não havia outros turistas, só monges e vendedores.
Você nota como os antigos Khmer construíram canais de água rodeando suas cidades, que serviam ao mesmo tempo como defesa, fonte para irrigação, e reservatório. Entrando-se, cruza-se uma bela ponte com guardiães segurando longas cobras de um lado e do outro. São as mitológicas nagas, serpentes protetoras, que na mitologia hindu e budista formam pontes que levam do terreno ao sagrado.




Adentramos, e lá dentro nos dirigimos ao primeiro que visitaríamos numa longa sequência de templos.



Chegamos ao Preah Khan (“Espada Sagrada”), nome moderno do que foi um templo erigido a mando do rei Jayavarman VII (1122-1218) em honra de seu pai, o finado rei Dharanindravarman II. (Se você achou que o pai seria Jayavarman VI, lembre que é como os nomes dos papas: Bento XVI não necessariamente veio imediatamente depois de Bento XV. Este Jayavarman foi o sétimo do seu nome e, a propósito, talvez o mais poderoso dos reis Khmer.) Aqui eu preciso me deter um pouco para falar do rei que o construiu.

Jayavarman VII tem uma história bonita — e o veremos de forma recorrente ao longo destes posts, pois muitas das construções se deram durante o seu reinado.
Em 1177, ele já era um homem de seus 55 anos. Religioso, devoto do budismo ao contrário da maioria hindu, ele era casado mas dizem que ausente. Quando sua esposa falece, se segue o costume (encontrado também em outras culturas do mundo) de o cunhado ou a cunhada solteira tomar o lugar. (Imagine aí você viúvo ou viúva e então se casando com o cunhado ou a cunhada para substituir?)
Jayavarman VII casou-se com sua cunhada Indradevi, uma mulher de grande inteligência. Poetisa e professora, ela o cultivou ainda mais para o lado do budismo, e — dizem — influenciava bastante sua governança, quando ele finalmente ganhou proeminência e veio a governar já aos quase 60 anos de idade. (E eu tenho que aguentar meus amigos de 30 ou 40 falarem como se a vida tivesse acabado…)
Naquele ano (1177), os vizinhos do Reino de Champa, no atual Vietnã, navegaram o Rio Mekong e lançaram um ataque aos Khmer. Pilharam sua capital Yasodharapura e aniquilaram o então rei, o usurpador Tribhuvanaditya, que havia matado o rei anterior e tomado o poder a força.
Como Shakespeare nos diz no segundo ato de Romeu & Julieta e Westworld nos relembra, “Esses prazeres violentos têm fins violentos.” (These violent delights have violent ends.) O usurpador morreu nas mãos dos invasores cham, que por sua vez foram derrotados por um exército de reação liderado por Jayarvaman VII, que foi então coroado rei em 1181 aos 59 anos de idade. A sua vida política começava agora, o que seria um longo reinado de 37 anos até falecer aos 96, estima-se. A vida pode ser longa, compadres.
Jayarvaman VII deu início a um período de grande prosperidade entre os Khmer — e a um frenesi de construções. Dizem que ordenou a construção de 102 hospitais, assim como posteriormente de muitos dos templos hoje encontrados aqui no Parque Arqueológico de Angkor.
Budista da linha Mahayana, ele dizia ser seu propósito de governo aliviar o sofrimento das pessoas. Uma descrição de época sobre ele sugere que “Ele sofria das doenças dos seus súditos mais que das dele próprio; a dor que afligia os corpos das pessoas era para ele uma dor espiritual, portanto mais penetrante.” (O mesmo nível de empatia dos governantes atuais, não é?)
Preah Khan, originalmente chamado de Nagara Jayasri (“cidade sagrada da vitória”), foi construído em 1191 no local onde Jayavarman VII venceu a batalha final contra os invasores cham, daí seu nome.

Estas ruínas foram reencontradas por arqueólogos franceses no começo do século XX e “limpas” nos idos de 1920-1930, mas jamais restauradas. Isso significa que o que você encontra são as árvores crescendo em meio às pedras da edificação original. Um charme absoluto.

Quando cheguei ao Preah Khan por volta das 7 da manhã, tudo ainda estava relativamente quieto. Raros turistas somados a alguns cambojanos daqui faziam a rarefeita presença humana nestas extensas ruínas.
Era possível escutar os pássaros, assim como o vento nas folhas. As imagens por vezes pareciam mais presentes que as pessoas.





Repare que no alto desse portal por onde entra o menino de amarelo há figuras em alto-relevo com algumas carruagens de guerra e embates. É uma ilustração da batalha que aqui se deu entre as tropas de Jayavarman VII e os cham.
Por toda parte onde você olha, algum detalhe, uma minúcia perdida que você espera encontrar.








Você se sente um explorador de marca maior nestes arredores.
O que me agradou foi perceber estas ruínas ainda tão autênticas. Não um espaço gourmetizado ou cosmético, como são os museus modernos, mas um museu ao ar livre, com a natureza e as pessoas daqui ainda a rondar.


Perto daqui, passando uma ponte decorada novamente com serpentes de pedra, eu chegaria a outro dos templos erigidos durante o reinado de Jayavarman VII: o Neak Pean, ou templo das serpentes enroscadas.
Este, uma ilha num lago, foi um dos 102 hospitais que o rei mandou construir. Era um espaço místico de recuperação, como os primeiros hospitais da Índia, da Pérsia ou da Grécia antigas.
As águas daqui, que à época eram mais limpas que hoje, supostamente tinham propriedades curativas. Alguns historiadores sugerem que esta foi uma tentativa dos Khmer de replicar aqui o mitológico lago Anavatapta (o “sem-calor”), um lago nos Himalaias que se dizia ser capaz de curar doenças e sossegar paixões humanas de toda sorte.
Hoje, uma longa e singela ponte de madeira leva até o templo no centro do lago repleto de flores de lótus.










Era só o começo das andanças por aqui.
Uuuuuu. Meu jovem, que maravilha!… Magnifica essa natureza, espetaculares essas “ruinas” que mais parecem saídas inteiras do passado para nos brindar no presente, com sua imponência e grandeza. Só faltam falar e mostrar seu povo, sua vida seus costumes e hábitos do cotidiano. Impressionantes!…
E que história de lutas e de preservação da vida da cultura e da significação, apesar das agressões, apesar do tempo e das adversidades.!… Surpresa com tudo isso e com a população para esses idos seculos . Aqui no Ocidente nada é falado desses grandes e importantes povos. Que horror. Grande falha histórico-cultural.
Importantes essa viagens por tudo e também por dar visibilidade a povos tao interessantes.
Belíssimos esses templos e enormes!… magníficos. Impressionantes essas árvores a medrar dentre as paredes dos templos. Belíssimas. E que detalhes interessantes, que histórias que contam e com tamanha arte e beleza. Ímpares. Grandes artistas, e historiadores. Os tons esverdeados da pedra antiga são um espetáculo à parte.
Tudo isso sob o encantador e bucólico cenário da primorosa natureza tropical com seus rios suas delicadas flores de lotus suas verdes matas e seu lindo céu azul. Um colosso.
Que beleza. Um encanto de paisagem, linda região. Pena pela pobreza do seu povo. Mereciam eles uma vida melhor .
Valeu viajante. Obrigada por mais essa mostragem de uma linda e insuspeitada região. Parabéns pela escolha do lugar e pela linda postagem.