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Camboja

Angkor, Camboja (Parte 3): Budismo e Hinduísmo no Mebon Oriental, Pre Rup, e Banteay Kdei

Chegou a hora de nos elevarmos um pouco. Digo literalmente. Hora de subir um pouco para sentirmos melhor o tamanho do que foi construído aqui.

Os Khmer, a civilização ancestral dos atuais cambojanos, prosperou aqui entre os séculos IX e XV como descrito em detalhes no post anterior. Eles fizeram os maiores templos hindus do planeta. Curioso que eles não estejam na Índia, mas nesta civilização vizinha. 

O hinduísmo, preciso dizer, é uma certa colcha de retalhos. Não é uma religião tão estruturada quanto são o cristianismo ou o islã. Ele é muito mais um termo guarda-chuva — como seria, digamos, se falássemos numa “religião Tupi” dos indígenas brasileiros. Haveria pontos comuns, mas muita diversidade regional de mitos, deidades, e rituais. Assim é com o hinduísmo nas várias regiões.

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Om, na escrita indiana (devanagari), um símbolo geral do hinduísmo que remete à realidade espiritual universal.

O hinduísmo tem os vedas, upanixades e demais escrituras ancestrais, mas isto não impede a grande diversidade regional. Como qualquer indiano lhe confirmará, o hinduísmo do Rajastão não é o mesmo dos Tâmil no sul da Índia — nem idêntico ao que tinham aqui os Khmer. 

Os cambojanos hoje são budistas, e agora fazem usos budistas destes seculares templos (como veremos), mas são originalmente hindus estas edificações que vos mostrarei aqui hoje.

Voltemos às andanças, em seguimento à Parte 1 e à Parte 2.

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Estávamos já à metade da manhã na visita ao Parque Arqueológico de Angkor. O sol tropical começando a subir e com ele o calor. Não muito diferente do Brasil.

Turistas começavam a dar as caras em maior número sobretudo a partir das 9h, quando nos dirigíamos ao terceiro templo, o Mebon Oriental (East Mebon).

“Mebon” é como os antigos khmer aqui chamavam os templos erigidos como uma ilha rodeada de canais. Imagina-se que a água servisse à irrigação ou como reservatório, mas certamente tinha virtudes estéticas também. Alguns canais permanecem, embora este tenha secado. Imagine-o aí nas fotos abaixo rodeado de água.

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Aqui havia água ao redor, senhoras e senhores. Imaginem a elegância do visual.
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Meandros. Esta edificação é do século X, dos princípios do esplendor khmer.

Este templo foi consagrado pelo rei Rajendravarman, no ano 953, em honra aos seus pais e ao deus Shiva.

Seguindo a longa tradição hindu-budista, todos os templos aqui tinham a entrada principal voltada para o nascente. Os budistas às vezes sugerem que isto é porque Buda estava voltado para o leste quando atingiu a iluminação; mas na verdade esta é uma prática mais antiga, hindu, por considerar a direção de onde o sol nasce a mais auspiciosa de todas, a fonte de luz.

Os khmer eram também obcecados por simetria. Você ainda hoje vê os pares de leões a guardarem a entrada, e os antigos elefantes postos em cada um dos cantos do terraço do templo. 

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Templos erigidos na elevação do Mebon Oriental. (Quem já viajou à Ilha de Java, na Indonésia, e visitou o contemporâneo templo Prambanan lá, notará a semelhança de arquitetura, pois havia troca de influências entre os hindus de lá e de cá no século X.)
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Na ampla base, um elefante em cada um dos cantos. Note o sol e a sombra.
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Leões guardiães às escadarias, e os templos.
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Olha o solzinho já começando a pegar!

Não sei se vocês se dão conta: o leão é um animal essencialmente africano, mas ele está por toda parte na iconografia destas religiões antigas do Oriente.

Os leões são símbolos ancestrais nas religiões asiáticas (aqui como também na China com seus desfiles de gente fantasiada) porque antigamente havia leões de verdade aqui na Ásia. A caça predatória e destruição de habitats é que praticamente extinguiu os leões asiáticos ao longo dos séculos. Hoje o majestoso animal ficou quase que exclusivamente restrito à África Subsaariana.

(Os cristãos dentre vocês sabem que as escrituras bíblicas, oriundas da Ásia Menor, também fazem menção a Leão de Judá, etc.)

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A decorada entrada de um dos templos. Não sei o porquê dos furinhos nos tijolos — talvez no passado houvesse um revestimento ali encaixado. Mas notem os detalhes da fachada de estuque (ou stucco no nome original italiano), esse desenhado em massa.
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Mais de perto para ver melhor as figuras sacras. No centro está o deus Indra sobre sua mitológica montaria Airavata, um elefante de três cabeças.

Depois você tenta fazer em casa, com gesso, para pôr em cima de sua porta. As visitas vão comentar.

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Hoje, alguns dos interiores são mais modestamente usados por fiéis budistas.
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Ali, naquele meio, tomando já um sol na testa. (Aquele hábito, do cara lá atrás, de suspender a metade da camisa é muito comum entre os homens na Ásia. Tenho amigas asiáticas que acham o costume um irremediável baixa-tesão.)

Daqui fomos ao quase adjacente Pre Rup, um templo contemporâneo do Mebon Oriental, construído sob o comando do mesmo rei (Rajendravarman) cerca de uma década depois, por volta do ano 962. 

Pre Rup significa “vira-corpos” (não confundir com Viracopos), o que advém da ideia de que naquela era os defuntos eram cremados dentro dos templos e gradualmente virados às quatro direções. Onda que onda?

Aqui, temos novamente a estrutura piramidal com plataformas, estátuas de animais simetricamente dispostas, mas uma elevação muito maior que o Mebon Oriental. O Pre Rup chega a 35m de altura na plataforma mais elevada. Cuidado nas escadas, minha gente.

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Opa.
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O esplendor do Pre Rup, do ano 962.

Cada um daqueles nichos que você vê continha altares e imagens sacras, onde oferendas de flores e incenso eram dispostas.

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Subindo.
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Imagem milenar hindu ainda preservada lá em cima.
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A vista lá em cima para os arredores repletos de vegetação.
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Subir é relativamente fácil, descer é que fica um pouco complicado nestas escadas íngremes de degraus lisos erodidos pelo tempo.

Depois de tanto tomar sol, subir e descer, eu com o passar das horas já estava quase começando a ficar com fome, quando retornamos ao tuk-tuk. O motorista na emblemática camisa vermelha aguardava fácil de avistar, pois por alguma razão (ou razão nenhuma) parecia ser o único com essa cor naquele dia.

O caminho tratou de nos mostrar um dos reservatórios d’água que remanescem — um baray, como eles chamam aqui no idioma khmer. A vista para a água combinava com a umidade tropical que começava a se manifestar com o calor, tornando a brisa contra o movimento do tuk-tuk cada vez mais bem-vinda.

A caminho do Banteay Kdei — “cidadela das câmaras” — víamos também ao lado um barracal de instalações de pau armado, sombreiros plásticos unidos ao lado de telhados de folhas de alumínio cobertas com palha, e onde alguns se em cadeiras plásticas daquelas de empilhar. Em mesas de madeira, os vendedores cambojanos expunham suas frutas e demais comidas.

Parecíamos ter chegado a uma área popular onde crianças passeavam de bicicleta e adultos transitavam de moto, com o ocasional carro a descarregar algo às barracas. As árvores tropicais emolduravam tudo.

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Barracal sobre aquele chão avermelhado e batido, como em certas partes do Brasil.
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Um baray que não é de cigano, um reservatório d’água do tempo dos antigos khmer ainda com uma breve palmeira e ruínas seculares dos templos a lhe fazer companhia.

O Banteay Kdei é bastante posterior aos templos que acabamos de visitar. A distância temporal que os separa é maior que aquela entre nós hoje e a Revolução Francesa em 1789 (!). 

Daí você estima a longevidade desta civilização Khmer. Se aqueles templos anteriores datam de meados do século X, este agora é do início do século XIII, sob o reinado de Jayavarman VII, o qual lhes apresentei anteriormente.

Ao contrário do Mebon Oriental e do Pre Rup, o Banteay Kdei é budista como o rei que ordenou sua construção. Seu nome significa “cidadela das câmaras” ou ainda “cidadela dos quartos dos monges”, pois o nome se refere às múltiplas acomodações monásticas que aqui havia. Sim, este era uma espécie de mosteiro.

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À entrada do Banteay Kdei. Notem acima do portal a face tranquila e ligeiramente sorridente de uma figura búdica.
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Avalokitesvara é o bodisatva ou iluminado associado á compaixão. Na China, o ser passou a ser visto mais como uma figura feminina chamada Guanyin ou, como os jesuítas que vieram aqui em 1600 a apelidaram, “deusa da misericórdia”.

Desculpem complicar um pouco, mas essa figura não é o Buda histórico, o Sidarta Gautama que se iluminou etc. Há muitos seres iluminados ou bodisatvas na crença budista, boa parte deles figuras mitológicas advindas de escrituras hindus.

Essa figura tão reverenciada pelos khmer era o Avalokitesvara, uma deidade búdica cultuada da Índia à China, passando aqui pelo Camboja, o bodisatva associado à compaixão.

Pronto, agora podemos seguir.

O Banteay Kdei é como um pequenino labirinto repleto de imagens talhadas nas paredes. São guardiães celestiais, dançarinos, e as já habituais esculturas dos animais em sentinela.

Note que o budismo hoje, sobretudo na sua versão ocidental algo gourmetizada, tem por vezes essa aparência de ser exclusivamente meditação & auto-conhecimento. Isto é em parte por nos ter chegado mais o budismo chan ou zen, de linha chinesa-japonesa com foco em introspecção. (Em parte também porque isso casa com a cultura individualista do Ocidente atual).

Porém, nem todo budismo é assim. O do Dalai Lama, tibetano, já é bem diferente e fala mais na prática (interpessoal, social) da compaixão que em qualquer outra coisa. O budismo do Sri Lanka ou do Sudeste Asiático também é repleto de cunho social e coletivo. (Neste post na Tailândia eu comentei isso em maiores detalhes, desfazendo o mito de que budismo não seria religião. Neste outro, no Vietnã, eu tratei do  chamado “budismo engajado”.)

O budismo tem seu corpo mitológico e de crenças, e à época dos khmer não lhe faltavam dançarinos nem festejos místicos.

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Dançarinos talhados nas paredes deste antigo mosteiro do Banteay Kdei.
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Imagens femininas nas paredes.
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Guardiães nas ruínas do século XIII do Banteay Kdei.
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As árvores que belamente emolduram tudo aqui.

Como hoje os cambojanos são em sua maioria budistas, há altares budistas atuais aqui dentro, com imagens trazidas recentemente. 

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Altar budista atual dentro do Banteay Kdei, com as bandeirolas de enfeite e uma senhora em meio aos incensos.
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O Banteay Kdei.

Agora era oficialmente (pra mim) hora de almoço — e quem tem fome tem pressa.

O motorista estava me enrolando com negócio de “Eu conheço um lugar. Vamos ver mais um templo primeiro, aí depois a gente vai lá.”  Só que eu sou viajante independente demais para ficar esperando determinação do “guia” sobre quando eu irei almoçar. 

Arrumei-me na barraca mais próxima com um belo — e imenso até demais — prato de arroz temperado, acompanhado de uma caneca de café com leite condensado para ajudar a descer e a dar um gás (no sentido energético da palavra).

Estas nem Indiana Jones nem Lara Croft você vê encarar, aqueles exploradores nutella. Eu gosto da coisa de raiz, e estava pronto agora para todas as raízes que veria adiante no templo Ta Prohm, o templo de Tomb Raider, famoso pelas raízes gigantes que crescem por entre as portas e pedras. É a próxima parada.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

One thought on “Angkor, Camboja (Parte 3): Budismo e Hinduísmo no Mebon Oriental, Pre Rup, e Banteay Kdei

  1. Nossa que as belezas continuam!… Que majestoso esse guardião. A olhar sobranceiro sobre as árvore como a perscrutar algum perigo no horizonte. Bela foto de abertura. A copa das árvores nos da uma bela visão diante do céu tropical. Aqui as construções ganham um tom amarronzado tendendo para o ocre e amarelo queimado. Imponentes!…. Belo cenário.
    Belíssimo esse templo de um intenso tom amarelo queimado. Certamente deveria ser mais bonito ainda nesses áureos tempos ai dos quais o senhor fala, Mais ainda se pensarmos que as águas seriam mais puras e, portanto mais belas.
    Continuam as charmosas criativas decorações, as deslumbrantes pedras esverdeadas, fazendo um ton sur ton com a vegetação, associadas aqui aos diversos e belos tons do marrom, amarelo queimado e ocre e as curiosas portas e escadarias nas mesmas posições, e que dão ideia da amplitude das soberbas construções. Belíssimos e charmosos os guardiães. Amei ver os elefantes e leões gigantes guardando os templos. Lindos. Divinos. Incrível como podem ter se mantido tao bonitos e conservados através dos tempos e com tao poucos recursos científicos na época da sua construção.
    E que escadas perigosas. Longe de mim. Gosto muito pouco de subir e descer escadas hahah.
    Curiosos os furinhos mesmo. Parece que algo se desprendeu dali. Talvez uma placa com as decorações.
    Parque magnifico. Belas paragens. O bucolismo continua dando o tom no parque. A natureza esplendorosa é uma festa para os olhos e o coração de quem a ama.
    E que altura!… Uau…. Soberbas essas fotos das ruínas. Magnificas, Maravilhosas, de todos os ângulos. Um primor. Verdadeiro tesouro esse parque. E a foto do senhor, meu jovem, diante de uma delas está antológica, permita-me dizer. Haaahaha. Gostei bastante.
    Estou encantada com as postagens desse país, que para min só era conhecido pelas disputas e guerras e que através delas, descubro tão rico em cultura, arte, beleza e simbologia. Valeu meu jovem amigo viajante, Que venha mais. Eia Ásia bela e desconhecida,

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