Eis San Salvador. Não é todo dia que eu vou a algum lugar mais perigoso que as cidades brasileiras. Afinal, eu prezo pela minha vida e evito zonas de guerra (não esperem, portanto, relatos no Iêmen ou na Síria antes de daqui a uns anos). Em termos de cidades e países teoricamente “em paz”, são poucos os que alcançam o nível de violência das ruas brasileiras. El Salvador é um deles.

San Salvador, a capital desse país da América Central, a depender do ano facilmente alcança o topo da lista mundial de cidades com as maiores taxas de homicídio per capita.
A estatística pode não ser das mais entusiasmadoras, mas eu quis saber o que havia aqui — e descobri. Descobri desde heranças indígenas a comidas típicas de nome curioso, a santo martirizado por gângster, a um centro que me lembrou o Brasil, e outras coisas que mais me lembraram a América do Norte.
Estamos mesmo no centro das Américas, e é hora de conhecê-lo.

O Aeroporto Internacional Monsenhor Oscar Romero é até bom. Cheguei à noite vindo da Colômbia após visitar Cartagena das Índias, e ainda não sabia, mas apesar da distância relativamente curta eu aqui encontraria um ambiente latino-americano bem diverso.
“Aqui você tem que tomar a iniciativa, senão você nunca será atendido“, comentou para mim uma mulher norte-americana azeda na outra fila, após pessoas de filas adjacentes indevidamente passarem à minha frente na imigração, alertando-me para o meu aparente excesso de civilidade. De fato. Diminuí meu nível de polidez e tomei a frente.
El Salvador tem um arranjo imigratório curioso, no qual há isenção geral de vistos a quase todos — mas você precisa na chegada comprar um cartão turístico (tarjeta turística) no valor de 12 dólares (USD). É basicamente um adesivo colado a uma das páginas do seu passaporte — como se fosse um visto — e pelo qual você paga ao oficial de imigração.

Este espoliado país sequer tem moeda própria, usa dólares, então esta é de qualquer forma a moeda que você precisa trazer para cá.
À saída do aeroporto, que surpresa foi ouvir o som de maritacas por entre as árvores, como que a me lembrar da América Central tropical pitoresca de que tantas vezes nos esquecemos.
Quase tão sonoros quanto as maritacas eram os taxistas de araque se oferecendo a quem saía, por dentre os muitos carros que paravam ali naquela rua única de saída do aeroporto apanhando passageiros. Bom já ter o seu traslado organizado de antemão para evitar treta.

Senhor Armando Romero (sem parentesco com o arcebispo, que me conste) foi meu taxista, um salvadorenho de meia-idade e daquele estilo taxista polido, que mais parece um chofer.
Cobrou USD 30 — uma tarifa meio que fixa — para me levar do aeroporto à acomodação na cidade, uma jornada de quase 45 minutos pelos 50 Km de distância entre o único aeroporto internacional do país e San Salvador. Não imagine uma estrada velha. Pelo contrário, era uma rodovia melhor que as do Brasil. As coisas para quem tem dinheiro são até boas aqui, como é de praxe nestes países muito desiguais.
Por falta do que fazer, ficamos trocando generalidades sobre El Salvador e o Brasil — e tive que segurar o riso quando ele se referiu à Guatemala, país vizinho pouco mais extenso que Pernambuco, como um território “enorme”. Para vocês verem como muito é relativo. El Salvador, com um-quinto da extensão, é do tamanho de Sergipe.
Isso foi antes de eu ir “aos finalmentes” e cotar com ele um pouco os preços que cobraria por passeios pelo interior do país nos dias seguintes. Tomei um choque. Eu havia lido, por exemplo, acerca das cidades coloniais de Santa Ana e Coatepeque, não muito distantes, e com vulcões pitorescos a ver.
“Bom“, começou ele a apreçar depois de elucidar o quanto seria interessante aquele passeio. (Quando vejo o vendedor demorar a dar o preço, é sinal de que o preço em si não será encorajador.) “Por todo um dia de viagem, com visita a Santa Ana e Coatepeque, com combustível incluído, lhe cobro 75 dólares de ida, e 75 dólares de volta. Um passeio completo.“, completou ele em voz explicativa e gestos de ir e vir com a mão, como se estivesse me fazendo a mais razoável das ofertas. Eu nunca mais veria o senhor Armando Romero depois deste dia.
Eu depois faria o devido passeio a Santa Ana de modo independente por uma fração desse preço, mas isso fica para depois. Por ora, eu chegava ao meu albergue na dita Zona Rosa da cidade. É uma área boa onde ficar, tranquila, embora faça aquele estilo de longas avenidas com canteiros no meio e deslocamento à base de automóvel.
São influências norte-americanas, como se vêem também em Brasília. Como sair circulando a pé é algo a se fazer com comedimento aqui em El Salvador, eu mais me interessei pela relativa segurança, no fato de ali haver perto onde comer, e pela presença bem ali do escritório do TicaBus, uma das principais empresas de ônibus na América Central que eu sabia que iria usar dali a uns dias para viajar à vizinha Guatemala.

À recepção do albergue, o senhor italiano que me atendeu parecia uma versão confusa de Geppetto, o pai de Pinóquio. Seus 1,85m de altura, magro, cabelo por cortar, mais cinza que preto, e ar atrapalhado, daquelas pessoas que você em menos de um minuto percebe que o sujeito não gira bem. Fumava a cada meia hora, e tinha um tique nervoso de sempre coçar o queixo enquanto falava com você.
Havia gatos por toda parte, às vezes também no colo de Geppetto. Era uma casa ampla, de dois andares e salas grandes. Junto com o avarandado agradável, as grades no portão e a presença matinal de domésticas mais escuras que os patrões, tudo deixava inconfundível que eu estava na América Latina.
Como que para completar, havia no banheiro um daqueles chuveiros elétricos remendados com fita adesiva, do tipo que inspira confiança.
Vivo, eu na manhã seguinte faria uma devida visita ao centro de San Salvador, após ser agraciado com o café da manhã incluso do lugar.
A tradição culinária centro-americana pode não cativar a todos, mas como eu mato e morro por banana-da-terra frita, me deleitei aqui como se não houvesse amanhã. Eles as comem acompanhando quase todas as refeições — seja feijão com arroz ou o que for.

Um ônibus urbano comum me levaria dali a pouco até o centro de San Salvador. “Comum” entre aspas, pois esteticamente ele era uma loucura.
Tal como em Samoa e em alguns outros países pobres aos quais os EUA doam daqueles ônibus amarelos de levar crianças à escola, aqui eles também os recebem e redecoram toda a coisa com motivos alucinados.

Eu deixava para trás as ruas amplas da Zona Rosa para ir agora ao centrão. (Não confundir com o “Centrão” do parlamento brasileiro.)
Para imaginar, pegue aquelas partes mais muvucadas e odorentas da área de comércio popular do centro da sua cidade, e aí você tem o centro de San Salvador. Agora pontue isso com algumas bonitas igrejas e o Palacio Nacional, do final do século XIX, começo do XX, assim como a Plaza Libertad, embora liberdades eles aqui tenham de fato poucas.









Aqui eu me encontrava, senhoras e senhores, nesse ambiente urbano que por demais me lembrou as entranhas da minha nativa Feira de Santana — só que pior. Nem em Feira se veem guardas com rifles automáticos à entrada de farmácias como aqui. Eu aqui vi armas que até então só conhecia pelo cinema.
Adentrei a Catedral Metropolitana, relativamente recente (de 2001), para dar uma trégua e encontrei algumas pessoas simples lá e cá. Se na Europa as igrejas se tornaram mais atração turística que qualquer outra coisa, aqui este está longe de ser o caso.
No interior você vê um grande retrato do Monsenhor Oscar Romero (1917-1980), provavelmente a figura mais reverenciada de toda a História salvadorenha. Não deixe de visitar seu mausoléu na cripta da igreja, no andar de baixo. Em geral ele está aberto à visitação.

Oscar Romero foi arcebispo de San Salvador numa das épocas mais sociopoliticamente conturbadas da História deste país.
Se o Brasil sofreu um golpe militar durante a Guerra Fria, El Salvador experimentou ao menos dois: um em 1960 e outro em 1979, este seguido de uma guerra civil — a Guerra Civil Salvadorenha — que duraria mais de uma década.
Como alhures na América Latina e em outras partes do globo, chefes de Estado eleitos e dispostos a rever as injustiças estruturais do país aqui foram prontamente derrubados. Só que em 1979 o golpe militar deflagrou uma resposta armada de guerrilhas camponesas da chamada Frente Farabundo Martí para Libertación Nacional (FMLN). (Farabundo Martí foi um revolucionário comunista salvadorenho do início do século XX.)
Os militares salvadorenhos acharam que Dom Romero era crítico demais, e o assassinaram durante a celebração da missa em 24 de março de 1980. O executor foi um dos muitos treinados pela famosa Escola das Américas, nos Estados Unidos, um centro que desde 1961 treinava contra-insurgência e ajudou as ditaduras militares da América Latina.

A justiça [dos homens] é como a serpente, só morde os descalços — Dom Oscar Romero
O arcebispo disse que a Igreja não poderia permanecer em silêncio diante dos abusos militares contra uma gente em geral pobre e abandonada. Tido como “a voz dos sem voz”, ele era ferino: disse que “A missão da Igreja é identificar-se com os pobres. Assim a Igreja encontra sua salvação.“
Em 1980, essa voz de calou, e a partir de 1981 a junta militar governante fundou um partido chamado ARENA, a Alianza Republicana Nacionalista. (Até a criatividade para as abreviaturas parece limitada entre os golpistas latino-americanos.)
No entanto, só haveria “paz” a partir de 1993 com o fim da guerra civil. E, ainda assim, como dizia O Rappa, era “paz” sem voz, portanto não era paz: era medo.
(Vale comentar que os anos 1980 foram, aqui em El Salvador como noutras partes da América Latina, a década dos Contra, as forças contra-revolucionárias — que os EUA apelidaram de “Contra” assim em espanhol mesmo — e que chegaram a batizar video games populares dos anos 80 e 90. Comandos em Ação, Contras e outros aqueles joguetes de quando eu era criança eram nada mais que propaganda infantil do que os militares americanos propunham no exterior. Nunca nos perguntamos “contra” quem ou o que era a “ação”.)
O mausoléu de Dom Oscar Romero é ainda hoje um lugar algo triste, se marcante por sua coragem.



Eu voltava às ruas de San Salvador…

Esgueirando-me por entre estes becos e vias em San Salvador, o calor da uma da tarde naquele clima pós-pico da feira, quando os vendedores parecem que pausaram para ir almoçar.
Sendo janeiro, estávamos aqui no inverno na América Central. San Salvador tem uma latitude (13ºN) quase idêntica à sua homônima Salvador (12ºS) no Brasil, e o clima não é muito diferente. “Inverno” não diz muito. Fazia calor, e calor úmido, aquela umidade de meio de cidade, temperada pelos odores urbanos.
Dei-me com outra igreja, a singular e curiosa Igreja El Rosario. Em meio a esta barafunda de cidade, as igrejas eram no mínimo lugares tranquilos e seguros onde era possível sentar e respirar (aqui sem o tempero dos odores urbanos).
Como que coroando a obra, uma versão artística urbana das etapas da Via Crucis, com as cenas da Paixão de Cristo compostas com pedaços de metal.
A Igreja El Rosario é feíssima por fora, parecendo a entrada para algum galpão de concreto abandonado. Acho que ela, de fato, foi um hangar abandonado. Daí o transformaram numa igreja sui generis, um dos lugares mais curiosos (e bonitos) de toda a América Central.
Vitrais pelo meio das paredes de concreto do antigo hangar dão uma iluminação natural e colorida ao interior. Bancos longos de madeira ofereciam onde sentar-se diante de um altar, este à frente de uma parede de tijolinhos — daquelas sem reboco, típicas de prédio abandonado.
Como que coroando a obra, uma versão artística urbana das etapas da Via Crucis, com as cenas da Paixão de Cristo compostas com pedaços de metal. Até eu que não sou normalmente o maior fã desse estilo de arte achei impressionante.





Eu não sei se El Salvador ressuscitará ao fim desta via crucis. Por ora, parece estar ainda tomando quedas.
A ex-guerrilha FMLN viria a governar após os acordos de paz nos anos 90, mas sem conseguir mudar muita coisa. (A principal receita no PIB de El Salvador há muito são as remessas dos que foram viver nos EUA e enviam dinheiro aos parentes que ficaram aqui.)
Em fevereiro de 2020 — portanto após a minha visita e já em vésperas de pandemia — o novo presidente Nayib Bukele, o primeiro em décadas a não pertencer nem à ARENA nem à FMLN, teve a sagaz ideia de invadir a Assembleia Nacional acompanhado de militares e apontando ao céu, como que entendendo-se ali por encomenda divina. Já vi esse filme. Ele esteve próximo de decretar um auto-golpe.

Eu, por meu turno, estava na hora de encerrar a andança pelo centro. Ao contrário das pitorescas cidades da Europa ou do Oriente, este não é ambiente onde passear o dia todo nem esperar o cair da tarde. Eu não tinha o menor motivo para querer estar ainda no centro de San Salvador ao anoitecer.
Sentei-me ali apenas para um almoço tardio, num restaurante popular de prato feito por USD 2,50, onde tocava bachata ao fundo. Fiquei ouvindo e vendo a vida (dos outros) se passando diante dos meus olhos. Estava aquele clima de centro de cidade ao começo da tarde, quando a maioria dos clientes já foi embora e os funcionários finalmente começam a comer.
Os pratos-feitos aqui são com feijão com arroz, que eu erroneamente chamei de gallo pinto como em Costa Rica e a moça me corrigiu com o nome que eles usam aqui: casados. Lembra um baião de dois, aqui acompanhado de pupusas [leem-se pupússas], umas tortilhas de massa de milho semelhantes às mexicanas, porém mais espessas.

Eu retornaria de ônibus à Zona Rosa num desses ônibus maravilhosamente apertados, já que desenhados originalmente nos EUA para levar crianças à escola. Eu tive que me sentar com as pernas abertas para poder caber.
Encerraria o passeio visitando o simpático Museo Nacional David Guzmán, que ficava convenientemente próximo de onde eu estava hospedado.
Nesse museu você encontra muita coisa do tempo pré-colombino e da cultura indígena Maya, que dominava esta América Central no primeiro milênio depois de Cristo. Notei também muitas semelhanças com o muralismo mexicano. As fronteiras, realmente, são mais políticas que culturais aqui na América Latina.




Se gostarem da pedida, podem visitar também o Museo de Arte de El Salvador, que está bem cotado. Eu deixei para vê-lo quando retornasse à cidade depois de minhas andanças por outras bandas da América Central. Eu circularia bastante, mas o meu voo de partida estava marcado para sair daqui do mesmo lugar onde cheguei.
No dia seguinte, eu ousaria ir de ônibus ao interior de El Salvador, a conhecê-lo um pouco melhor.
Mairon,
Invejo muito suas viagens!
Achei o seu blog procurando depoimentos sobre a Transiberiana e desde então acompanho suas andanças pelo mundo, sempre com um olhar muito parecido com o meu e com o que procuro quando viajo também.
São pouquíssimas as pessoas que viajaram para El Salvador e olhando para o país da forma como ele realmente é, tentando se manter o mais neutro possível de nosso olhar enviesado e muitas vezes preconceituoso. Acredito que você faz isso muito bem!
Obrigado por compartilhar conosco!
Abraços,
Nilton.
Obrigado por essa mensagem tão gentil, Nilton! (E perdoe minha demora em responder.) Eu fico feliz que você siga estas andanças desde a Transiberiana e que encontre o que procura. O prazer em compartilhar com esse olhar realista é também meu. Seja sempre bem-vindo.
Grande abraço,
Mairon
Interessante, San Salvador, embora padeça dos mesmos males do resto da espoliada Latinoamérica. Caudilhismo, violências, militarismos, lutas civis fratricidas, intervenções estadunidenses que não se cansam de minar os poucos esforços de independência, de organização social e luta contra as desigualdades sociais e de livrarem dos indesejáveis.
Afora esses problemas históricos, pareceu-me que tem partes agradáveis e até bonitas. Há muitos pontos de contato com a cultura da meso-América mexicana.
Gostei muito da praça com a estátua equestre. Belíssima aquela arquitetura do antigo Palácio. Muito bonitas as linhas. Gosto desse estilo. O tom suave também me agradou.
Apreciei também essa Praça da Liberdade. Bonita. O tom bege claro, com cinza, com o verde dos arbustos e o céu azul combinaram bem. Ficou bonito o cenário. A cidade parece ter áreas verdes em quantidade razoável. Umas partes bem cuidadas. Simples e bonita a Catedral Metropolitana. e o interior me agradou muito. Prefiro esta simplicidade ao ouro e prata de algumas catedrais europeias. Acho deslocada
tanta riqueza para celebrar um homem pobre que viveu entre os pobres.
Belíssimo o interior dessa igreja ex hangar, Tem traços, embora rústicos, da catedral de Brasilia e da Igreja da Pampulha em BH. Ambas são mais sofisticadas mas usam os mesmos recursos dos vitrais para colorir e trazer a luz natural. Muito bonita e também chama a atenção pela simplicidade e bom gosto.
Lindas e elegantes essas colunas amarelas e os balcões em cima. Muito bonitas, assim como o casario ao primeiro andar de uma das ruas do centro. Muito bonito. Seus tons discretos e suas belas linhas arquitetônicas chamam a atenção.
Impressionante esse museu com belas e bordadas cerâmicas, com suas peças pré-colombianas e seu belíssimo mural. Muito parecido com o muralismo mexicano sobretudo de Rivera, embora com outra motivação. Vê-se, que a cultura não respeita limites políticos. Ótimo. Lindas cores, interessantes motivações e a presença da esperança no retorno do sacerdote com eles comprometido. São a face da identidade latino-americana. Muito interessante, mesmo. Uma riqueza.
Parabéns pela ótima reportagem! Muitas informações e dicas importantes para que quer visitar o país.