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Transporte na América Central: Uma jornada de Honduras à Nicarágua

Este post tem dois propósitos. O primeiro deles, muito simples, é informar sobre a forma mais habitual de se deslocar como turista pela América Central. 

Se você (como eu) fica tentando descobrir horários de ônibus, rotas possíveis por diferentes empresas etc., saiba que o esforço é honroso, mas não é assim que a maioria dos visitantes se desloca América Central afora. Tampouco de avião, cujos preços proibitivos parecem feitos para apenas viajantes de negócios.

As mais interessantes cidades turísticas na América Central não são as capitais.

A forma mais habitual de viajar entre as cidades de interesse turístico pela América Central é em shuttles, ou serviços de transporte privado. (Eles usam o nome em inglês aqui.) São vans ou microônibus organizados por agências de viagem ou acomodações nas cidades turísticas.

Como você talvez já tenha notado, as mais interessantes cidades turísticas na América Central não são as capitais. 

Nesta parte do mundo, não quebre muito a cabeça com o típico “Vamos ter que tomar um ônibus pra esta cidade aqui, daí…“. Pode fazer isso se quiser, mas os shuttles são muito mais objetivos — e rápidos — pois ligam diretamente uma constelação de cidades-chave entre a Guatemala, Honduras, El Salvador e Nicarágua.

Esses países formam o miolo da América Central. Costa Rica e Panamá, assim como Belize, são mais destacados do restante e se envolvem menos nesse fluxo, embora também contem com transporte privado — além dos ônibus regulares — a partir de cidades próximas (Ex. de Flores a Belmopan, em Belize; ou de Antígua a San Cristóbal de las Casas, no sul do México).  

Mapa America Central
Mapa da América Central. O principal eixo vai de León e Granada, as principais cidades turísticas da Nicarágua, até Antígua na Guatemala (próximo à capital), indo às vezes Copán Ruínas em Honduras (próximo a Santa Rosa de Copán), ou passando por El Tunco, balneário de surfistas na costa de El Salvador. Os shuttles focam-se mais nas pequenas cidades de interesse turístico que nas capitais, tome-se nota.

O lance é que não dá para prever muito os dias e horários de saída. Certa flexibilidade e um pouco de improviso lhe farão bem. Você caminha pelas ruas de Antígua ou León e vê tanto agências quanto hostels e pousadas com cavaletes ou quadros diante da entrada: “Shuttle para lugar tal!“, com o dia e horário da viagem.

Não é algo regular. Às vezes tampouco está escrito, e você precisa entrar e perguntar. Como você sabe, aqui na América Latina se descobrem as coisas conversando com as pessoas, não é tanto através de informação escrita.

Pesquise preço, pois eles variam um pouco, e diferentes acomodações ou agências organizam shuttles em dias e horários distintos. Em geral, para uma das viagens longas entre a Guatemala e a Nicarágua espere pagar ao menos 100 dólares por pessoa. Você não precisa ser hóspede ou cliente dali para se juntar. Normalmente, são vans particulares.

Como é a experiência? Este é o segundo propósito deste post: relatar minha jornada de Honduras à Nicarágua num desses shuttles, desde Copán Ruínas até León. 

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Domingo“, respondeu casual Fernando para a minha sorte. Era sexta-feira e eu, em Copán Ruínas, queria saber como ir à Nicarágua. Cogitávamos tomar um ônibus a Tegucigalpa e pernoitar, mas o shuttle oferecido ia direto até León. Por sorte, era exatamente no dia que eu queria.  

Seriam 14h de estrada, uma verdadeira maçada. De vez em quando, a gente aguenta. Eu já fiz dias e dias em trem, mas trem é incomparavelmente mais agradável que ficar preso ao seu assento num transporte na estrada.

Despedimos-nos do tranquilo recepcionista Fernando, que nos havia ajudado com o embrulho estomacal da minha amiga italiana. Eu disse que voltaria aqui quando reaparecesse por Copán. “Somos amigos“, respondeu ele em espanhol com a casualidade habitual.

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O nosso motorista saindo de Copán pela manhã se chamava Williams (assim com s mesmo). Um homem ligeiramente pesado, bem branco, olhos azuis, cara de gringo mas sotaque e atitude de hondurenho que era. Na carona ia outro hondurenho, um moreno mais típico. Minha amiga italiana e eu íamos no banco de trás. Era um carro comum.

Williams, malgrado o ar algo machão e prático de caminhoneiro, chupava balas coloridas e pirulitos a todo momento. Segundo ele, o ajudam a ficar acordado.  

— “E aí, como anda Honduras depois de Zelaya?“, perguntei-lhes eu, sempre interessado em colher uma opinião política local nos países aonde vou.

A quem não se lembra, em 2009 o então presidente hondurenho Manuel Zelaya sofreu um golpe militar e foi retirado do poder à força, quando então se asilou na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa. 

O álibi dos militares para a sua remoção forçada teria sido sua tentativa de instalar a reeleição, que não existe em Honduras. Alegadamente foi “para se perpetuar no poder”, disseram seus críticos, mas se soube que na real Zelaya estava começando a mexer com a mui sólida e desigual estrutura socioeconômica de Honduras, onde uma pequena elite comanda tudo e o povo fica à miséria do país que é considerado o mais violento das Américas.

Manuel Zelaya
Manuel Zelaya foi presidente de Honduras de 2006 a 2009, quando um golpe militar o retirou do poder. Ele foi exilado na República Dominicana e depois pôde retornar. Hoje é parlamentar na Cidade da Guatemala do Parlamento Centro-Americano, uma organização supranacional como o Parlamento Europeu ou o Mercosul.

Eu na época o achava curioso, sempre de chapéu, incluso em reuniões e ambientes internos, mas percebi aqui que é hábito contumaz aqui da maioria dos homens hondurenhos. 

— “Pior“, respondeu-me Williams sobre como estava a situação agora. “Não fazem nada. Só cuidam de si próprios.” 

— “Zelaya, sim, fez algo pelas pessoas“, observou em tom conclusivo o outro hondurenho, como quem acabava de avaliar a situação. 

— “Por isso que tiraram ele de lá“, comentou Williams meio cínico.

O lugar por onde passávamos era assim.

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Pelas estradas de Honduras. Rumávamos a San Pedro Sula.
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Cidadão à beira da pista.
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Algumas plantações, como no Brasil.

— “Aqui neste pedaço morava uma família envolvida com os narcos“, comentou Williams com familiaridade. “Empregavam muita gente. E pagavam bem! Mas o governo pegou, e agora está tudo aí assim.”

— “E o povo, no que ficou?“, perguntei eu.

— “Sem trabalho.

— “O governo não os manteve?

— “Não. Pararam tudo. Daqui a pouco agente vai passar por um hotel inacabado que estavam construindo e ficou sem terminar.”

Minha amiga italiana observou que no sul da Itália é a mesma coisa: a máfia, essa estrutura de poder paralela ao Estado, garante empregos e seduz a população para a sua esfera de poder ao mesmo tempo em que os controla.

Há quem prefira a máfia ao Estado, como há aqui certamente os que prefiram essas famílias narcotraficantes “benfeitoras” que o ausente Estado hondurenho. São questões complexas.

— “Por aqui depois tem temporada de #%¨#$”, comentou Williams usando uma palavra que eu não compreendi.

— “O que é isso?

— “Briga de galo. No Brasil tem?

— “Tem, mas lá é proibido.”

— “Por que?“, perguntou Williams com genuína surpresa.

Eu confesso que, em algumas situações, me acho com preguiça de explicar as coisas a quem eu não acho que irá entender.

— “Porque sim. Pra não perder os galos“, respondi eu sem apetite para entrar num debate ético.

— “Mas rodeio tem?“, questionou ele com o tom de quem esperaria que houvesse “ao menos isso”. Ao que parece em Honduras, fora da exploração animal não há diversão.

Rinha de galo é ilegal também em Honduras, mas aqui — como você deve imaginar — legalidade conta pouco. A única época em que as rinhas de galo são permitidas é na Semana Santa. (“Coitado de Jesus com esse povo”, teria-me dito a minha avó.)

— “Às vezes eu aposto aí“, disse Williams acerca das brigas de galo da Semana Santa. “Mas quando começo a perder mais de 5.000 lempiras, eu paro.” (Isso equivale a uns 200 dólares, aos curiosos.)

Já chegávamos ao nosso primeiro destino.

Eu supunha — pelo mapa — que tomaríamos uma rota muito mais direta, mas que nada. Como sempre, a infraestrutura nem sempre acompanha a geografia aqui na América Central.

Esta primeira “perna” da viagem só nos trouxe até San Pedro Sula, onde outra van nos apanharia para fazer as 10h restantes de viagem até a Nicarágua.

Como de costume, estamos na América Central e as cidades são esta coisa de pistas com redes de fast food norte-americanas e um miolo urbano algo mal-acabado (e perigoso), como eu vira em San Salvador. San Pedro Sula não me pareceu muito diferente. 

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Umas beiras de estrada como no Brasil.
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É claro que há os carrões de quem tem dinheiro, a elite local em geral colonizada até a alma pela cultura de massa dos EUA — mas não pelos seus valores cívicos e democráticos, o que é uma pena.

O nosso ponto de apoio para troca de vans foi um Burger King, onde almoçaríamos. 

A minha amiga italiana ficou estupefata com a noção. A quem não sabe, a maioria dos europeus têm ojeriza a essa mania americana de fast food, como que algo de gente sem cultura e que não sabe o que é comida.

De certa forma, eu nisso lhe dou razão, ainda que tenha ficado menos chocado por já conhecer como a América Latina se embebe dessa cultura de massa dos EUA como se fosse algo muito nobre e fino. Eu muito teria preferido parar numa bodega de comida local e bater um prato hondurenho de feijão com arroz, pimentas e banana-da-terra frita.

Ela saiu beira-da-pista afora e reapareceu depois com um abacaxi pelado comprado de algum vendedor. Eu me resignei com um sanduíche.

Depois de algum tempo esperar — e de alguns telefonemas de Williams ao celular enquanto palitava os dentes com a outra mão — a nossa van apareceu. Transferimos a bagagem, e se juntou a nós um quarteto de nicaraguenses gordos de meia idade — daquele perfil “tiozão” acaba-churrasco. Quatro. Conversariam entre si quase ininterruptamente pelas quase 10h seguintes em alto e bom som com aquele tom típico do “papai sabe tudo”.

Shuttle tem dessas coisas. Você nunca sabe quem mais irá no carro. Pelo menos, se certifique de ser dos primeiros a entrar e ir sentado num lugar bom. Eu tive esse consolo e fui com minhas pernas bem esticadas.

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Lugares onde paramos no caminho. Não é muito diferente do Brasil.
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Só que aqui a influência dos Estados Unidos é mais presente. Vimos uns ônibus escolares amarelos neste posto onde paramos à tarde.
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O cair da tarde pelo interior pobre de Honduras, rumo à Nicarágua.

Já havia anoitecido quando finalmente chegamos à fronteira. Cruzamos Honduras de ponta a ponta, saídos de Copán Ruínas lá do outro lado. 

O posto de fronteira de Guasaule entre Honduras e a Nicarágua é, de longe, o mais vagabundo pelo qual eu já passei na vida. Algumas delegacias de periferia conseguem ser mais arrumadas.

Prédio administrativo velho, daqueles com a parede pintada até a metade de uma cor e branca da metade para cima, imundas de sujas, com vendedores ambulantes em barraquinhas como no lado de fora dos postos de saúde lotados.

Cachorros de rua circulavam, entravam e saíam à gosto. Aproveitavam-se dos basculantes de vidro completamente arrombados que iam do teto ao chão e faziam “portas” nas paredes, alguns como se tivessem sido explodidos a bomba. Os cachorros dormiam nos corredores numa boa.

No teto, lâmpadas brancas compridas, uma funcionando e outra não. Por detrás de um balcão com janelinhas tipo delegacia, oficiais nicaraguenses atendiam você com vagareza, papeando uns com os outros. Meninas com caixinhas de balas e pirulito vinham oferecê-los a você enquanto esperava na fila, aquela expressão suada e mortificante das crianças que trabalham vendendo na rua até cansarem-se.

Isso é o subdesenvolvimento.

Apesar desses pesares, a Nicarágua se revelaria um país mais seguro e de melhor infraestrutura que os que eu havia visitado até então. (Por que esse dinheiro parece não chegar ao posto de fronteira, eu não sei).

Brasileiros ou portugueses não necessitam de visto, mas é preciso pagar USD 12 como tarifa de entrada. O próprio motorista da van assessorou a coisa toda, mas não há nada além do costumeiro. 

Já dentro da Nicarágua, tínhamos ainda 2h de viagem até León.

Ainda antes de chegar, à noite nessa estrada esbarramos na cena surreal — que parecia ter sido tirada de alguma peça teatral de comédia — de um fiscal de obras sentado no meio da pista, numa cadeira de plástico dessas de igreja evangélica, com os pés esticados por cima de outra, e falando ao telefone.

Atrás dele, as barreiras cor laranja se iluminavam com os faróis da nossa van. Ele parecia não estar nem aí, entretido que estava ao telefone. Nosso motorista desceu e aguardou até que ele terminasse a conversa, que ainda durou um belo minuto cômico. O motorista lhe disse algo que eu não pude ouvir, e depois de alguns minutos de prosa entre eles o fiscal levantou-se para retirar os cones do caminho. Seguimos viagem.

No término do trecho que estava em obras, víamos os veículos em fila que vinham no sentido contrário e tiveram que parar, sabe-se lá por quanto tempo ou se pela noite toda, os motoristas já fora dos seus veículos com ar de impaciência.

Ei, está fechado!“, esbravejou um dos fiscais que estavam deste outro lado, um trator e alguns homens trabalhando ali perto.

Não havia ninguém do outro lado“, respondeu com fingida inocência o nosso motorista. Passamos.

Até mais, Honduras. O que encontrei em León, cidade histórica da Nicarágua, eu relato no post seguinte.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

One thought on “Transporte na América Central: Uma jornada de Honduras à Nicarágua

  1. Nossa Senhora, que aventura!… que andanças… ave maria. Uma verdadeira peregrinação… coitado do viajante…quantos ossos tem esse maravilhoso oficio… hum hum hum. Que falta faz um bom transporte público!… Pobre povo… triste subdesenvolvimento….Quel’hourreur. Que viagem !…
    Muitas coisas parecidas com a realidade do Brasil. As mazelas são parecidas. Esses pontos de beira de estradas aparecem ao longo das rodovias brasileiras de norte a sul. Essas beiras de estrada aqui no N NE são comuns. Às vezes são conhecidos pelo Km.. “É ali no 100”.. hahah. A vantagem é que aqui a vossa amiga iria comer comida boa pois aqui nessas regiões rurais predominam as comidas tipicas e regionais. O que os pobres e os carreteiros comem. Esses tais maus hábitos estadunidenses não há. Só nos grandes centros. Aqui ela comeria uma boa comida nordestina ou da região do meio norte, e iria adorar. Bom também que não haveria os horríveis ônibus amarelos estadunidensens hahaha tenebrosos…
    O senhor, meu jovem amigo, por favor não me fale dessas rinhas nem desses rodeios tenebrosos. Tenho horror a ambos. Não consigo entender como as pessoas podem se divertir com o sofrimento dos animais. Acho dantesco.
    Amei esse mapa da America Central. Bonito, bem colorido e explicativo.
    Hahaha surreal esse fiscal no meio da pista esparramado em cadeiras, a telefonar e o trafego a esperar hahaha olhe meu amigo hahaha,,, cômigo hahaha… só Mairon Polo para presenciar e registrar tamanho disparate hahaha. Histórias de viajante hahaha
    Provavelmente a cidade de destino dos senhores se chama Leon em homenagem ao Ponce de Leon.
    Ainda bem que chegaram em paz.
    Buena llegada joven viajero.

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