Era uma vez El Tunco, na costa de El Salvador, Oceano Pacífico. Não são muitos os brasileiros que vêm aqui em busca de praia, nem é esta uma praia qualquer.
El Tunco, como muito do Oceano Pacífico nas Américas, é mais uma praia de surfe, de ondas fortes e altas e águas frias. Contrasta com as praias do Atlântico a que estamos habituados. (O Pacífico, como eu mostrei na minha viagem à Polinésia, me parece mais agradável lá na Oceania que aqui pelas Américas.)
No entanto, aqui estava eu fechando esta travessia pela América Central. Após ver algo da Guatemala, Honduras e Nicarágua, eu retornava a El Salvador para tomar o voo de volta.

Em verdade, El Tunco não era exatamente onde eu planejava estar. Eu inclusive tinha uma reserva de acomodação em San Salvador (no mesmo albergue com o sósia de Gepetto) que acabei por cancelar quando soube que o shuttle — ou van particular, a forma mais rápida de se deslocar na América Central — parava aqui, que é mais turístico, e não na capital do país.
Quebrava o galho; era perto o suficiente. Minha amiga italiana, que fez este périplo comigo, teria seu voo de retorno a partir da Cidade da Guatemala. Ela seguiria no shuttle até Antígua, seu destino final, após eu descer.
A nossa odisseia lá da Nicarágua foi desde Granada, de onde primeiro tivemos que tomar um transporte coletivo a León, de onde o nosso shuttle internacional partiria à madrugada.
Se você viu o lado prestigioso de Granada no meu post sobre a cidade, saiba que há também o seu lado mais povão, onde a estação de ônibus fica.



Esta última foto acima foi já no entreposto rodoviário nos arredores de Manágua, onde se troca de ônibus para ir a León. A essa cidade chegamos já à noitinha. Foi só o tempo de tomar uma ciclo-carroça (ver abaixo) até o nosso albergue. Lá teríamos uma noite curta, para às 4h da manhã já tomar a estrada.
Seria pior do que eu pensava.

Isto era a véspera do dia do meu voo. Eu queria me certificar de que estaria de volta a El Salvador sem surpresas, no dia anterior à partida.
Normalmente, nessas vans particulares (shuttle) que fazem viagens de longa distância aqui na América Central — tomem nota — as coisas mais importantes são (a) o lugar onde você se senta e (b) suas companhias no veículo. Não dando para escolher quem viaja com você, procure ao menos ser dos primeiros a assegurar lugar.
Nesta viagem, não deu nem uma coisa nem outra. Ao que pretendíamos terminar de dormir no veículo, a van já estava lotada de gringos drogados. Era uma mistura de belgas, norte-americanos e outros rapazes — todos homens, uns dez — que pareciam ter acabado de sair da festa e pretendiam continuá-la dentro da van.
“Sério?“, pensou em voz alta e tom sóbrio a minha amiga italiana, uma ariana que se lançasse chamas era capaz de ter carbonizado ali a todos.
Todos os lugares da van já estavam ocupados com exceção dos dois piores, aqueles lá espremidos no fim do último banco. De repente, deu até saudade dos coroas nicaraguenses que vieram conversando alto as 10h de viagem desde San Pedro Sula até León alguns dias atrás.
Eu não costumo dar muita bola a como pessoas estranhas vivem suas vidas; mas estes você já os via começar a ter distúrbios neurológicos e tiques-nervosos de tanto beber e consumir sabe-se lá o que mais, com aqueles calções folgados e camiseta básica surrada digna de virar pano de chão, atravessando a imigração descalços e com aquele ar de perdidos no mundo. (Passam bem porque são brancos.)



Era o começo da tarde quando chegamos a El Tunco, após umas paradas breves por “pontos de apoio” para orinar e lanchar algo no caminho.
Havia chegado a parte mais difícil: despedir-me da minha amiga após um par de semanas viajando juntos. Depois de ela quase morrer com a pimenta na Guatemala ou as frituras em Honduras, voltaria à Europa repleta de aventura latino-americana.
Desciam comigo os junkies, meus companheiros de van, que por obra química ou divina dormiram no caminho após o alvoroço inicial.
Despedi-me de todos. Era hora de, com minha mochila, eu seguir minha caminhada.
Identifiquei o albergue onde eu havia feito uma reserva, me instalei e fui dar umas voltas iniciais. Eu estava de volta a El Salvador.


Em El Tunco havia, entre uma ruela e outra, esse calçadão com destino a uma praia de ondas fortes e pedregulhos negros, com uma areia negra. Um cheirão de esgoto misturado ao de mangue contaminava o ar.
Ainda assim, a praia era o que havia de belo aqui.


Já um tanto em clima de fim de viagem, optei por relaxar na acomodação antes de voltar à beira-mar para ver o pôr do sol. O Oceano Pacífico é, afinal, a oeste das Américas e proporciona belos ocasos sobre as águas.
Sentei-me numa varanda ampla do espaçoso albergue, que parecia uma pousada-fazenda, só que com dormitórios e surfistas jovens em vez de quartos privados e gente chique.
Camisinhas à venda na recepção e, ao que meramente me sento para olhar o Whatsapp, sonidos e gemidos de casal transando em algum quarto próximo. Cheguei a pensar que fosse alguém assistindo a filme pornô no celular (após aquela dúvida inicial de “eu estou ouvindo isso mesmo?“), mas era a coisa em si. Eram 3h da tarde, mas amor não tem hora.
Ainda aos sons do sonoro casal, chegou gritando “Banana! Banana bread! Pasteles de soya!” pelas varandas do albergue uma morena senhora vendedora de rua, daquelas bem típicas, conversadeiras. Eu, que estava ali com fome, me aproximei.
A senhora se pôs a conversar comigo. Deixou na cabeça o paninho enrolado onde equilibrava a bandeja de quitutes, pôr a bandeja na mesa e jogou-se para trás num daqueles bancos de madeira de varanda com recosto. Fazia uma pausa, como que a tomar fôlego. A gemeria vindo do quarto havia parado.
“Hay todo tipo de guloseimas. Eu conheço o dono. Eu sou a única pessoa autorizada a entrar aqui para vender“, observou ela com importância, aquela satisfação humilde de quem se sente valorizada com pouco.
“Despiertate, amigo! Levántate!“, eu de repente ouvia vindo do quarto depois que uma moça saiu ao banheiro e lá voltou. Eu não soube se ela se dirigia ao parceiro como um todo ou se a uma parte mais específica. A senhora vendedora, absorta em seus pensamentos, não dava atenção ao pano de fundo.
Eu perguntei à senhora como iam as coisas, puxando uma prosa casual naquele meio de tarde ainda quente.
— “Nós aqui vivemos tempos difíceis. Aqueles tempos da guerra, a gente passava na rua e via o sangue no chão“, comentou comigo como que de repente a refletir, em referência à Guerra Civil Salvadorenha, que perdurou até 1992.
— “Agora já está melhor?“, lhe perguntei eu.
Ela respondeu com uma careta fechada que dizia “que nada”.
— “Por toda parte esses “maras” [como são chamadas as gangues aqui em El Salvador]. Não se pode dar confiança. Eu nem falo com eles. Às vezes me perguntam, ‘E aí, vendeu algo?’. Eu digo ‘Sim, mas fiado’“, relatou ela suspendendo a cara, como quem não dava mesmo ousadia.
— “No Brasil tem muitos lugares mesmo assim também“, comentei eu.
— “Relógio, brincos… Se bobear, levam,” observou ela. “Estes brincos aqui são de ouro“, disse com a cara animada e a voz de segredo, de repente segurando com os dedos um dos brincos dourados que tinha na orelha. Simples, mas bonitos. “Eu digo a eles que é falso, que custa 50 centavos“, comentou ela rindo cheia de si, mas humilde.
— “Foi presente?“, perguntei eu entrando na onda, sorrindo.
— “Sim, de uma sobrinha minha que vive nos Estados Unidos“, comentou satisfeita.
— “Muitos salvadorenhos nos Estados Unidos, não é?“
— “Sim, aqui está horrível“, respondeu ela revertendo para a cara de desgosto com a situação.
— “E o governo, nada faz?“
— “Nem piu. Se prendem um, em três dias soltam. Não adianta nada.”
— “Antes, aqui isso não tinha nada. Era forno a lenha. Coisa gelada era com balde de gelo, quatro quintais de gelo num barril“, relatou ela com aquela imersão na história, típica dos idosos que gostam de contar coisa. “Cada peixe na grelha com brasa. Aqui não tinha nada disso que você está vendo hoje. É mais de uns anos pra cá. De 2013 melhorou o turismo.“
— “E tem sido bom para vocês?“
— “Ah sim, claro.” Disse ela em tom de certeza. “E esta parte aqui está mais segura. No se pasa nada, porque aqui hay la mano dura. De um ano e meio pra cá é que caiu mais o turismo.”
— “Por que?“
— “As más notícias. As pessoas ficam com medo. Mas eu mesmo eu gosto muito que vocês norte-americanos venham cá visitar.”
— “Eu sou sul-americano, brasileiro.”
— “Ai que ótimo, me encantam os brasileiros, tantos os rapazes quanto as moças, todos sempre lindos.”
“Banana bread, pasteles de soya!” Interrompia ela gritando pra anunciar seus produtos sempre que algum novo hóspede que ela ainda não havia visto passava. Um surfista argentino que já a conhecia de outras tardes se deteve brevemente. Comprou um pastel, conversou um pouco, e seguiu com sua prancha.
— “Bueno, um gusto“, e levantou-se ela dali a pouco, decidindo que havia descansado já o bastante. Rosy, seu nome.
Rosy reclamava do calor, e dizia que andava meio estressada estes tempos, mas continuava a rotina. Pela manhã fazia os quitutes, e pela tarde os vendia. Pegou os pratinhos sujos onde eu comi, devolveu a bandeja de quitutes à cabeça e, de fôlego tomado, seguiu.
A mesma mesa comprida de madeira da varanda amanheceria repleta de garrafas de bebida vazias, lixo, e cinzeiros com bitucas de cigarro. Na manhã seguinte, as caras amassadas. Acho incrível a inabilidade de tantas pessoas de serem felizes sem se entorpecerem.
Em tempo, apareceram os amantes. Saiu do quarto uma moça italiana algo pesada a fumar um cigarro, e depois surgiu de calção um careca branco (que se dizia guatemalteco) e que se pôs a tratar um peixe ali na cozinha da varanda.
Eu precisava ainda descobrir uma forma de ir ao aeroporto no dia seguinte. A tarde já caía, meu tempo diminuía, e eu ainda não sabia como iria. Queria evitar os 30 dólares que me cobrariam os táxis.
Fui sondar e finalmente ver o sol cair na praia de El Tunco.












Os bares começavam a movimentar-se mais e o calor diminuía, embora não desaparecesse por completo. (Esqueça jaquetas aqui.)
Jantei algo simples aqui na rua e retornei ao albergue, que nos brindava com música de rádio em alto e bom som. Em dado momento, foi maravilhoso quando tanto nós quanto o bar vizinho estavam tocando Side to Side de Ariana Grande, ambos ao mesmo tempo, só que em momentos diferentes da música. É de você ficar louco sem saber qual acompanha.
O “I’ve been here all night, I’ve been here all daaay” da música grudou em mim, meio que narrando a minha sensação com El Tunco.
“Como chegar ao aeroporto” ficou a definir no dia do voo. Eu acabei, pela manhã, me resignando e solicitando na recepção que agendassem um para mim à hora do almoço — embora eu, no fim das contas, não o fosse tomar.
Naquele dia seguinte, de mochila e cuia prontas, acabei indo almoçar umas pupusas com recheio de feijão e queijo, como que para me lembrar de que estava em El Salvador. Em meio ao papo com a vendedora dona da lanchonete, me queixei em voz alta do preços dos táxis, que cobravam de 30 a 35 dólares.
“Eu conheço alguém que leva mais barato. Peraí, deixa eu ver se ele está com o carro hoje“, e pôs-se a telefonar, aquela incerta coisa típica do mui disposto improviso latino-americano.

Cancelei o meu táxi e fui cá com este compadre que me fez por 20 dólares a ida. Trouxe minha coisas do albergue para cá, e sentado esperei. Apareceu uma gringa que circulava descalços pela cidade e, para a minha agradável surpresa, quem apareceu também foi Rosy a iniciar seu périplo de banana bread.
Rosy, que naturalmente conhecia a dona da lanchonete, assentou-se conosco um instante, como que a me esperar partir. Confessou, como um sonho secreto, a sua vontade de emigrar para os Estados Unidos. Trump não parecia dissuadir quem vivia a vida de El Salvador. Desviava a vista com aquele ar de “não diga a ninguém”.
Quando chegou meu carro, ganhei um banana bread gratuito de presente. Generosidade imbatível. Contenta-me ver essas pessoas que, mesmo sob adversidade, se mostram tão grandes.
Despedi-me de Rosy, da dona da lanchonete que me arrumou o carro, da gringa descalços e de El Tunco. Eu deixava a América Central para retornar à Colômbia.
Nossa, que aventura, meu jovem amigo!… entre engraçada e inquietante, curiosa e interessante, divertida e com suspense. Com as pitadas das realidades pessoais, seus dramas e suas generosidades, relatadas de forma leve e agradável, sempre dentro do contexto no qual se encontra. Maravilha. Adoro esse banho de imersão na realidade de cada lugar visitado. Muito interessante e incomum em outras narrativas de viagem.
Muito interessante a postagem com suas histórias, seus personagens ímpares e seus belos recantos.
Eita viajante corajoso hahaha. Ainda bem que consegue se sair a contento das enrascadas, hahah.
Que kiprokó essa parada ai hahah e que transportes hahah arremaria. Coitados dos senhores viajantes hahah.
Belíssimo esse mar azul. Lindíssimo cenário. Esse pôr de sol é magnifico. Parece coisa de cinema.
Só não se pode chamar muito de praia, como a conhecemos aqui sobretudo no NE do Brasil. Para nós praia tem que ter areia e muita e fina. As praias do Pacifico americano são pedregosas. Mas o mar ai é lindo. De um azul encantador.
Maravilhosos, o mar, o céu, o sol e as pessoas simples do lugar. Além da beleza da alma latino-americana simbolizada na generosidade e espontaneidade do povo simples, o ponto alto foi o deslumbrante pôr de sol!… Magnificat. Me alegro . gostei bastante . Valeu. joven viajero.