Trondheim, lido Thrond-rráim, é aquela cidade escandinava que já soa Viking.
Antiga capital da Noruega medieval, pode-se dizer que é a cidade mais histórica do país. Hoje ela é sua terceira maior, após Oslo e Bergen.
Trondheim está, porém, muito mais ao norte que as outras duas, já aos 63ºN, meros três graus de latitude antes do círculo polar ártico. Isso lhe dá um toque remoto quase épico e todo especial.

Trondheim foi oficialmente fundada no ano 997, embora já houvesse habitação humana aqui há milênios. O povo Sami, parente dos finlandeses, já andava pelo norte da Escandinávia muito tempo antes dos Vikings. Estes, de origem germânica (daí as línguas escandinavas se assemelharem ao alemão) chegam ali lá pelo tempo de Cristo e empurram os Sami mais para o extremo norte, onde estes vivem até hoje.
A chamada Era Viking inicia-se na historiografia quando estes atacam os ingleses em 793. Daí é que ganha coro e difusão essa ideia dos nórdicos ferozes, cultuadores de deuses “pagãos” (Odin, Thor & cia), enquanto que os ingleses e franceses já eram em sua maioria cristãos.
Os Vikings, organizados em tribos distintas e mais tarde reinos, navegariam Europa e a Rússia adentro e afora, saqueando, guerreando, mas também fazendo comércio e por vezes servindo como guarda de elite, como aconteceu ao Imperador de Constantinopla, que a partir de 988 possuía sua chamada Guarda Varegue. Esta foi inspirada na Guarda Pretoriana dos antigos imperadores de Roma e consistia numa elite de guerreiros Vikings de origem sueca.

Toda esta parte da História Viking é bem difundida nos filmes, jogos, na literatura juvenil e na cultura pop do mundo anglófono em geral — que, herdada da Inglaterra, impregnou-se desse senso dos nórdicos como selvagens pagãos, e difundiu essa imagem ao mundo.
O que pouco se conta é que já por volta do ano 1000 este povo se converteu ao Cristianismo, e a segunda metade da Idade Média tomaria contornos algo distintos. A História não parou ali.

Conforme foram acumulando riquezas e poder, os Vikings se tornaram mais parecidos com os outros europeus mais ao sul. Logo surgiriam reis, uma aristocracia e um clero, estrutura social distinta da anterior formada por chefes tribais, homens livres, e escravos.
Sim, os Vikings tinham escravos, tanto da própria terra quanto arrancados de lugares estrangeiros e traficados em outros portos. Parte do terror europeu diante dos Vikings não era simplesmente de enfrentar inimigos ferozes em batalha, mas de terem suas filhas e mulheres da família levadas embora. Os Vikings as traficavam até no Oriente Médio, navegando os rios russos que vão do Mar Báltico até o Mar Negro e levam ao mundo muçulmano.

Foi Haroldo Cabelo Belo (Harald hårfagre em norueguês, 850-932 d.C.) quem primeiro uniu os Vikings desta parte da Escandinávia na atual Noruega sob um único reino. Ele aparece na série Vikings, caso alguém assista. Foi coroado aqui onde hoje é Trondheim por uma assembleia de homens livres, como era o costume.
Seu bisneto, Olaf Trygvasson (960-1000) seria o primeiro rei norueguês a se converter. Como sempre, há uma história pessoal por detrás.

Olaf perdeu seu pai ainda criança, assassinado por Haroldo Manto Cinzento e Erik Machado Sangrento em brigas internas pela sucessão da recém-criada coroa. Erik Machado Sangrento, apelidado assim porque era chegado a um fratricídio, usurpou o trono. A mãe de Olaf, Astrid, teve que fugir num barco rumo às terras bálticas levando o filho pequeno.
A ideia foi levar Olaf à corte dos Rus em Kiev, atual Ucrânia, próspero reino eslavo onde os Vikings tinham boas relações. Lá o irmão de Astrid, Sigurd, era alto funcionário do rei e certamente os acolheria.
Porém, o garoto Olaf o sua mãe foram capturados no caminho, na Estônia, e levados como escravos à cidade de Novgorod (hoje na Rússia). Seis anos se passariam até que Sigurd, quando foi à cidade coletar impostos para o rei, reconheceu um garoto de feições estrangeiras que ele acabou identificando como sendo o seu sobrinho. Olaf foi então levado à corte de Kiev, onde viveu até a idade adulta.
O Rei Vladimir de Kiev era cristão. Esta região da atual Ucrânia e dos primeiros príncipes russos já há tempos vinha sendo catequizada pelos missionários bizantinos de Constantinopla — razão pela qual os ucranianos e russos de hoje são cristãos ortodoxos e seguem o rito grego, não o latino dos ocidentais.
Uma vez adulto, Olaf deixou a corte de Kiev e viajou várias terras do norte europeu. Aliou-se ao Sacro-Imperador Romano Germânico Otto II contra os pagãos dinamarqueses. Casou-se com Geira, que quando morreu partiu-lhe o coração. Numa remota ilha inglesa, soube de um vidente e foi então ter com ele, que alguns autores creem ter sido o monge São Elídio. Ouviu detalhes de como seria próspero, e que então deveria se batizar.
Olaf retornou à Noruega e, com rebeldes que não aceitavam mais o ursurpador, retomou o trono como primeiro rei cristão da Noruega. Erik Machado Sangrento seria expulso à Inglaterra, onde viveria ainda um tempo até ser traído e assassinado por lá.

Não imaginem que o Rei Olaf era exatamente a Madre Teresa de Calcutá só porque era cristão. Sua alcunha de “santo” é obra dos hagiógrafos. Não faltaram decapitações e conversões forçadas.
Dentre os muitos convertidos por Olaf estava Leif Ericsson, o que navegou à Groenlândia e pode ter sido o primeiro europeu a pôr nos pés nas Américas, na região do Labrador no atual Canadá. Os vestígios da breve presença Viking na América do Norte por volta do ano 1000 são confirmados; eu só não sei se Leif foi realmente o primeiro a pisar fora do barco.
Olaf pretendia formar uma Escandinávia toda unificada e cristã, mas seus planos não se concretizariam. Ele pediu a mão da rainha sueca Sigrid, a Orgulhosa, fielmente devota dos antigos deuses nórdicos e que portanto o rejeitou. O cristianismo teria altos e baixos e ainda conviveria por séculos com a fé tradicional nórdica nesta região do mundo. A escravidão só seria abolida nos idos de 1300.
Quando eu pus os pés em Trondheim, chegado de trem depois de uma longa jornada desde Oslo, cheguei a imaginar que encontraria uma cidade medievalesca, mas não é bem assim. Trondheim é uma cidade deveras atual, universitária, com suas praças, ruas de lojas e o porto aqui onde o Rio Nid encontra o mar.
O colorido casario escandinavo de madeira dá o tom. É um “antigo” de séculos recentes, das casas de mercadores próximas à água, às vezes sustentadas por várias palafitas. Nota-se um lugar quieto, jovial, silencioso.
O que há de realmente medieval — e impressionante — é a Catedral de Nidaros, de construção iniciada em 1070 e que continua sendo onde os reis noruegueses são coroados. (A Noruega é uma monarquia parlamentarista tal como o Reino Unido, a Suécia, a Dinamarca, Holanda e a Espanha, dentre outros.)
Ela é o coração de Trondheim, e eu a visitaria na manhã seguinte à minha chegada.



No dia seguinte o sol abriu deixando tudo mais bonito.
A Catedral de Nidaros (Nidarosdomen) fica numa grande praça rodeada por cruzes e tumbas de um cemitério antigo em meio ao verde. Seu nome advém do tempo em que esta cidade também era chamada Nidaros, em virtude do Rio Nid. O nome mudou para Trondheim com o tempo, por ficar próximo ao fiorde com esse nome.
A Catedral de Nidaros é certamente a mais impressionante igreja gótica da Noruega, provavelmente de toda a Escandinávia, e uma das mais belas da Europa.




Por dentro, Nidarosdomen é ainda mais fotogênica.
É proibido tirar fotos no interior, e uma tropa de funcionários em longos hábitos vermelhos — com aspecto de jovens estudantes de Hogwarts da Casa da Grifinória — ficam de olho para assegurar que ninguém o faça, entre outras funções como acolher os visitantes e guiar tours em norueguês ou inglês várias vezes ao dia. Para subir à torre de 39m, pagam-se 50 coroas norueguesas (NOK), o equivalente a uns 5 euros.
Se fotografar do lado de dentro fosse permitido, cada passo seria um flash. O interior da catedral é ainda mais belo que seu exterior com estátuas de apóstolos e santos, incluso St. Denis, esculpido pelos franceses (além dos ingleses) trazidos para ajudar na obra, com sua cabeça carregada, da lenda de Monmartre em Paris onde ele se martirizou. Teria tido sua cabeça cortada pelos romanos, mas — segundo a crença — continuou a caminhar carregando a cabeça e pregando.
Uma rosácea maravilhosa decora o fundo da igreja, margeada pelos tubos cinzentos de um grande órgão. Tudo numa pedra escura, que cria uma autêntica atmosfera gótica que transporta você, talvez como nenhum outro lugar da Noruega, à época dos reis vikings cristianizados do medievo ou a alguma história de fantasia medieval.


Aqui os reis noruegueses são “coroados” desde os tempos de Olaf, que por sinal está enterrado aqui. Seu túmulo é a base do altar-mor. O “coroado” vai entre aspas porque hoje em dia, como o Estado se tornou laico, tecnicamente não se trata mais de uma coroação, mas apenas de uma bênção da Igreja Norueguesa a cada novo monarca.
A Igreja Norueguesa é luterana como a sueca. Durante a Idade Moderna, quando católicos e protestantes digladiavam-se na Europa, cada reino no continente adotou uma religião oficial. A população deveria obrigatoriamente seguir a religião do monarca. Foi assim com o catolicismo em lugares como Portugal e Espanha, e com o protestantismo aqui nos países nórdicos. Em tempo, a Igreja Norueguesa se tornou independente como a anglicana no Reino Unido, ainda que visualmente seja muito semelhante à Católica.
Você pode aqui ao lado visitar o medieval Palácio do Arcebispo, hoje um museu. A administração da Igreja Norueguesa, porém, continua sediada aqui, e ela segue tendo seus bispos e arcebispos — embora com menos pompa.



Uma das razões pelas quais você hoje já não encontra muito da cidade medieval foram os muitos incêndios ao longo dos séculos. Estima-se por exemplo que o de 1651 tenha devastado 90% da cidade, que era em sua maioria feita de madeira.
A catedral, de rocha, foi o que sobrou. A cidade seria então reconstruída já nos padrões do século XVII com avenidas largas sob influências francesas. (Lembrem-se de que estávamos aqui na época de Luís XIV, o rei sol, 1683-1715).
Há de pitoresco na cidade as suas ruelas com casario colorido de madeira dos séculos mais recentes, e que ficam de vivas de flores no verão. É uma outra atmosfera, mais escandinava moderna que Viking medieval. (Os nórdicos continuam até hoje a construir com madeira porque é muito mais barato, além de tradicional por aqui.)
Você ali pode visitar a dita Ponte Antiga (Gamle Bybro), construída após um outro incêndio em 1681. Pode também deter-se para tomar um café — este vício bastante corrente na Escandinávia do século XXI — em qualquer padaria de esquina.




Ao que parei para tomar um café com algo, acabei por me deparar com fotos antigas de como a cidade era antes das duas guerras mundiais. Você vê algo já bastante distinto daquilo que os épicos medievais dão a sugerir.






Mais tarde, eu lavaria a égua num bufê asiático “coma à vontade” num shopping aqui da cidade, algo agradecido que hoje os escandinavos aderem tanto às comidas da Ásia e que não ficamos mais restritos ao peixe-com-batata de outrora.
A capital norueguesa passaria a ser Oslo a partir de 1814 depois de um grande toma-lá-dá-cá de conquistas em que os reinos escandinavos subjugaram uns aos outros. Primeiro, a Dinamarca controlou a Noruega; depois, foi a Suécia quem a anexou como província. Só no século XX, e hoje nadando em dinheiro de petróleo, é que a Noruega despontou como rica e independente. (Alguns suecos arrependem-se de tê-la consentido a independência em 1905.)
Trondheim, ainda que não mais a capital, segue sendo o berço espiritual dos noruegueses. Ela talvez tenha pouco do antigo que eu e talvez você esperávamos, mas não deixa de ter seu quê singelo e pitoresco. É pequena, então duas noites me bastaram antes de partir novamente rumo mais ao norte.


Era hora de tocar o barco — ou melhor, o tomar o trem. Rumávamos agora ao fim de linha das ferrovias norueguesas: a cidade nórdica de Bodo, para além do círculo polar ártico, na jornada de trem chamada Nordlandsbanen. Revejo vocês lá.