A Córsega é aquela grande ilha francesa no Mar Mediterrâneo, um lugar que a maioria das pessoas conhece apenas de nome. No caso dos brasileiros, poucos ainda são os que a incluem no roteiro.
Estamos aqui num lugar especial, de imenso regionalismo e que muitos sequer consideram fazer realmente parte da França — embora isso seja curioso, pois foi na Córsega que nasceu um dos maiores ídolos nacionais franceses: Napoleão Bonaparte.
De Napoleão eu falarei mais depois, quando visitar a sua cidade natal, Ajaccio, capital da Córsega no sul da ilha. A minha chegada foi por Bastia, a outra grande cidade, no norte, e sua capital antiga.




Vir à Córsega é simples, de avião (opção mais cara) ou num grande e tranquilo ferry (opção barata) a partir de Nice. Você paga menos de €40 se comprar as passagens com antecedência, de preferência algumas semanas antes e direto no site da Corsica Ferries (note as muitas opções de idioma caso francês não seja o seu forte). Escolha a opção “sem veículo” para obter esses preços melhores. Viajar com carro é possível, mas custa mais.
Foi numa dessas que eu resolvi aliviar os muitos meses de isolamento social da pandemia. Tomar um sol, ver o Mar Mediterrâneo depois de quase todo um semestre na Escandinávia, onde moro.
Meses trabalhando de casa na Suécia deixaram-me com muita “vontade de viajar, né meu filho?”, no que já virou um bordão inspirado nas conversas de Drauzio Varella. Tirar o atraso, doutor, fazer uns revenge travelling para dar o troco no tempo preso em casa.
Eu sei que sou privilegiado de poder continuar ter minha renda independentemente da pandemia (você pode ler mais aqui caso queira saber o que eu faço da vida), mas isso não quer dizer que não haja seus custos. O pessoal da saúde mental vai logo demonstrar um milhão de coisas que vêm acontecendo. Meu remédio é viajar.
Busquei aquele azulzão do Mar Mediterrâneo, e sentir dignamente o calor do verão europeu (que na Escandinávia é meio xoxo, pois raramente esquenta muito). Estar em novas terras, em mares nunca dantes navegados por mim, reacenderam-me a alma.
Ao longe desde o ferry, os contornos da paisagem corsa começavam a se apresentar por detrás do mar após tranquilas 5-6h de travessia. Estávamos chegando.

Os ferries franceses, que recomeçaram em 1º de julho, voltaram a funcionar como de hábito: com restaurantes funcionando e tudo. Distanciamento social, na prática, foi para o espaço. Novidade apenas a obrigatoriedade do uso de máscara a bordo, e a onipresente disponibilidade de álcool gel — que em francês tem o elegante nome de gel hydroalcoolique.
Seguramente uma quantidade menor de viajantes que no verão passado, mas ainda assim vários turistas franceses, holandeses, belgas, e também italianos — meu ferry estava longe de estar vazio.
Eu me via ali talvez como o único brasileiro no navio, a capa do livro de João Ubaldo Ribeiro que eu lia (“Viva o Povo Brasileiro”, leitura atrevida nestes tempos… ) a talvez denunciar minha nacionalidade. Não vi ninguém fugindo de mim por isso.


Era hora de marchar até o hotel, para no dia seguinte descobrir propriamente o que é que a Bastia tem.
Bastia, que os franceses leem Bastiá, é um nome originalmente italiano (Bastiglia). “Bastilha” não é apenas o nome da notória prisão medieval parisiense cuja tomada marcou o princípio da Revolução Francesa (1789), mas é antes de tudo um nome genérico para designar fortalezas, ou “bastião” em português. A parisiense era originalmente conhecida como Bastilha de Santo Antônio, e depois é que seu nome foi encurtado.
A Córsega foi por muitos séculos um domínio genovês antes de fazer parte da França, então não estranhe se aqui se sentir quase como se estivesse na Itália. A ilha carrega aquele charme desta região do Mediterrâneo, com seus prédios amarelos, pêssego e rosa, e que ignora onde a fronteira entre França e Itália se encontra.



A Córsega se revelou um híbrido entre França e Itália, com suas raízes mais italianas que francesas.
Curiosamente, embora tão aqui no seio do Mediterrâneo, não foi um lugar de expressão na Antiguidade, embora tenha rastros de pequenas comunidades por aqui. Pelo contrário, era tão desimportante que foi usada com lugar de exílio, o que ocorreu ao pensador Sêneca por uns anos.
Chegou a ser tomada pelos árabes na Idade Média, os que também estavam em Espanha e Portugal, mas as então poderosas cidades italianas de Pisa e Gênova os expulsaram e passaram a controlar a ilha. É dessa época que vem um dos símbolos aqui da Córsega, e que você avista por toda parte: a cabeça de mouro.

Muitos italianos acabam por emigrar para cá durante a Idade Média sob a proteção das cidades-estado italianas, daí o idioma corso hoje se assemelhar ao dialeto toscano da Itália.
Do ponto de vista italiano, a ilha foi portanto dividida em duas partes: a chamada banda di dentro e a banda di fuori. (É sério!) As habitações principais ficavam na costa leste, voltada ao continente, enquanto que a costa oeste, remota, era tida como uma área mais selvagem. Daí Bastia, que está na banda de dentro, ter se tornado sua principal cidade — e, em tempo, a sede de governo.

A partir dos séculos XIV e XV, Gênova toma conta da situação e passa então a desenvolver a ilha como um de seus territórios ultramarinos — se você usar a palavra “colônia”, um corso vem puxar seu pé de noite na cama.
Em 1380, o nobre genovês Leonello Lomellino estabelece a “bastilha”, o castelo fortificado que se tornaria o Palácio do Governador, hoje um museu. Por detrás, o domínio era administrado pelo famoso Banco de São Jorge, o braço financeiro genovês que na prática era quem mexia os pauzinhos.




Voltaremos ao senhor Paoli mais tarde. Por ora, era por uma longa rua com o seu nome — a mais importante de Bastia — que eu caminhava desde o meu hotel até parte histórica da cidade.
Na larga Place Saint-Nicolas, de frente para o mar, uma notável estátua de Napoleão, outro corso de nota. A prefeitura havia instalado uns pula-pula e outros brinquedos para as crianças no verão.




Aqui é curioso, pois os corsos têm um certo jeito de gente do interior.
Rende daquelas situações curiosas, típicas de interior, de haver aquela turma endêmica que habita os bares da cidade, sobretudo aqui em Bastia. A cidade me pareceu algo mais comercial do que se revelaria Ajaccio em seguida.
As pessoas encaram quem vai passando, como fazia a minha avó em Feira de Santana na porta de casa acompanhando os transeuntes com o olhar. Até que aqui, como lá, ou você (o olhado) ignora que está sendo observado ou retorna o olhar, o que geralmente se sacramenta com um “bonjour” iniciado por um ou por outro.
Cansei de assistir à minha avó trocando “bom dia” com gente estranha que ela olhava na porta e que a olhavam de volta, e aqui me vi recebendo os olhares curiosos, até que o breve desconforto gerava um “Bonjour”, “Bonjour”. Era engraçado. Nunca vi tão isso em nenhuma outra cidade francesa onde eu tenha andado.


Os corsos gozam de certa má-fama na França que talvez não seja de todo justa. É preciso saber que os parisienses em geral desgostam do povo do sul do país. Há aí uma série de preconceitos. Os corsos, em especial, são vistos como turrões, agressivos, teimosos.
Movimentos separatistas, sim, houve, e continuam a existir certos sentimentos de independência. “Frequentemente conquistada, jamais submissa” é uma espécie de mote aqui da ilha, mas está longe do que se vê, por exemplo, na Catalunha ou na Escócia. A coisa aqui é mais modesta, ainda que os corsos tenham mesmo muito orgulho de sua identidade própria.
Um rapaz de Paris certa vez me falou, quando lhe perguntei sobre os corsos: “São um pouco como os russos: não ferre com eles.” (Ele na real usou outro verbo que também começa com F, mas com o mesmo sentido). Há causos e mais causos de franceses do continente que compraram casas e terrenos de verão aqui na Córsega, para no verão seguinte encontrá-los arrombados, carros com placas de fora sendo riscados ou com pneu furado, estas coisas. Não sei ao certo com que frequência realmente ocorre, mas são os rumores.
Na prática, na verdade, eu aqui os achei mais simpáticos que os franceses de Paris (o que não é difícil, convenhamos) ou mesmo de outras grandes cidades francesas do continente. As pessoas me pareceram, sim, mais rústicas, aquele jeitão meio do interior, devidamente franco, porém mais abertos e menos pretensiosos, ainda que orgulhosos do lugar de onde são. Mas algo mais simples, para os padrões franceses. Achei-os melhor no trato que aqueles franceses cheios de si — agora, de fato, como muitas pessoas do interior mundo afora, pareceram-me bons de trato mas não faça provocações.
Puxei papo, é claro. Adoro ficar de prosa com vendedor, e aqui não faltam lojas de coisas típicas corsas — boa parte delas, comida.
Eu não falo corso (parece mesmo um dialeto italiano), mas todos aqui falam francês. Pareciam assim me tomar como alguém “do continente”, como eles aqui dizem, quiçá algum francês com sangue das ex-colônias árabes, mas não faziam caso.

“Minha mulher e eu fazemos os biscoitos, e o meu colega é que cuida da parte das frutas“, comentou um rapaz simples da minha idade que me vendeu o doce. Depois, noutra vinda, eu encontraria o das frutas a me falar de como faziam licores e geleias — sobretudo de clementina, um híbrido de tangerina com laranja.

Eles aqui inclusive fazem o clemoncellu, que é como um limoncello, o célebre digestivo do sul da Itália, só que de clementinas em vez de limão. (Quando à grafia, no idioma corso muita coisa fica com u no final, até ele próprio que aqui se chama de corsu.) Comprei para provar, mas ainda não abri.
Outros produtos bastante típicos aqui são as castanhas-portuguesas (chestnuts, ou châtaignes em francês), até sabor de sorvete, além de quitutes. É boa. Não a vi assada, como se encontra na Europa Central, mas talvez no inverno. As castanheiras foram introduzidas aqui sob ordem legal genovesa, obrigado todas as famílias a terem pelo menos uma dessas árvores para acabar com a fome na ilha.
Há inclusive uma polenta aqui — que eles devidamente chamam de pulenta, assim com u — feita marrom com farinha de castanha.

Eu circulei numa tarde pelas ruelas do tempo genovês, com o seu casario ainda rosa, roupas estendidas nos varais dos prédios como na Itália. O lugar, porém, estava deveras quieto. Não sei se é sempre assim ou pela pandemia. Sentia-se a brisa do mar que fazia corredores de vento, e em certos pontos se via a imensidão azul lá adiante.



Você tem duas principais igrejas históricas que merecem ser visitadas nessa região, a Catedral da Assunção de Santa Maria, de 1495, e a capela ou Igreja da Santa Cruz, de 1542, feita no chamado estilo barroqueto, que alguns comparam ao rococó.





Fazia calor nesse interior. Não sei a edificação foi projetada para o verão, pois eu suava sozinho num destes bancos quando entrou um gato. Depois apareceria um casal de turistas.
Eu saí e fui ter, neste calor, com o simpaticíssimo Jardin Romieu, um breve parque à muralha da cidadela, conectando-a ao porto e à moderna cidade baixa. Tem um toque romano, daquele de pedras bege e flores coloridas.
Achei até que eu pudesse encontrar Sêneca ali sentado. Não o achei, mas vi uma ou outra moça a tranquilamente ler sob as árvores.


Descendo, olhei outras lojas de produtos típicos. Afora o que já mencionei, muito do típico aqui é charcutaria — embutidos de carne de porco, como chouriços, etc. A loja, francamente, fedia a cachorro molhado. Olhe que eu gosto de cachorros, mas aquele cheirão é pesado.
Acabei indo parar no Velho Porto (Vieux-Port) após esgueirar-me por umas ruelas onde via grafitti de protesto, de memórias de nacionalistas corsos mortos, e umas estranhezas.




No Velho Porto, as pessoas comiam sushi e toda sorte de coisas ao fim do dia. O lugar é hoje mais cênico que qualquer outra coisa, já que os grandes barcos param no porto moderno, e apenas pequenas lanchas de passeio ancoram aqui. O lugar é circundado por restaurantes com preços turísticos, mas a atmosfera social é animada.




Quando entrei ali, havia apenas um jovem quarteto de visitantes aparentemente franceses, duas moças e dois rapazes talvez mais jovens que eu.
Conversaram algo baixo, sentaram-se em dois dos bancos, e de repente após uma troca confidente de olhares puseram-se a cantar em harmonia. Acabou se revelando ser do típico canto polifônico corso, de que acabei tendo uma inesperada palhinha aqui e que mostrarei melhor a vocês em Ajaccio.
É para lá, a capital da Córsega, que eu iria de trem já no dia seguinte. Ainda não disse tudo que tenho para dizer ou mostrar desta ilha. Deixo vocês com algumas fotos e a dica do site oficial da cidade, útil sobretudo para o calendário de programas culturais e concertos musicais típicos no verão.
Volto com as andanças seguintes por esta França que parece a Itália.


Ihhh que maravilha. Meu jovem amigo viajante, o Mediterrâneo é impar. Tem personalidade própria, impressionante, encantador, e cheio de lugares encantados também. Que delicia, contemplar o azul diáfano desse mar divino, refletindo seu também supremo céu azul; seu belo relevo, com as marcas indeléveis das grandes civilizações, que abrigou e abriga, com sua história monumental, e fascinante legado cultural. Amo o Mediterrâneo. Gosto de tudo nele e de todas as suas margens históricas, com suas historias humanas e divinas. Magnifico, soberbo, impassível diante das turbulências humanas, perante tão bela e azul natureza. Foi e será sempre o Mare Nostrum, expectador dos dramas da raça humana de ontem e de hoje.
Belissimo e pujante. Um encanto, e muito bem mostrado messa postagem. Merece os versos do querido poeta baiano, abolicionista, Antonio Frederico de Castro Alves, ao saudar, com sua palavra eloquente o Oceano Atlântico no seu belíssimo e dramático poema ” Navio Negreiro” ” E no mar e no céu/ A imensidade”. E sua amiga aqui toma a liberdade de acrescentar como numa musica brasileira: ”azul até demais’. Obrigada, meu jovem por registrar tanta beleza.
Ahhh.. viajar…conhecer o mundo…” novas” terras, ”novas”culturas, pessoas, é uma das atividades que mais agrada a essa sua amiga aqui. Volto a ser criança!… hahaha… uma delicia…
Encantadora esse cidadezinha franco-italiana, pelo visto mais italiana que franco haha. É a cara da Itália haha.
Belíssimo esse casario, nos padrões da cultura italiana, com suas ruelas tortuosas e estreitas lembrando o outro lado do Mediterrâneo com suas Medinas e Ryads. Amo esses tons italianos, e claro essas ruelas e casarões. Há muitos pontos semelhantes à Grécia e suas ilhas.
Os templos e seus interiores são mesmo uma beleza à parte. De uma riqueza de detalhes , de estilo e bom gosto, ímpares. Maravilhosos. Por mais que se aprecie sempre ha algo não percebido. Um primor. Adoro esses tetos pintados e trabalhados. Lindos.
Se esse porto falasse contaria velhas e importantes histórias.
Amei esse jardim, essas escadinhas que parecem ir até o infinito, essa cara da Grécia, essas flores divinas, essa ar gostoso do mediterrâneo. Fascinante, Mágico.
Lindas essas pracinhas com o belíssimo azul do Mediterrâneo e diante do também azul e divino Céu de anil. Cenário de paraíso. Espetacular.
Coitado do Senhor do Bomfim da Bahia, hahah que injuria!… Bracelete quel’hourreurrrr haha
Ihhh que maravilha!.. os licores as geleias e outros doces caseiros italianos são famosos e deliciosos.
Lindos monumentos. Napoleão está um charme, imponente!..
Belo museu. Imponente arco e belíssimas, muralha e cidadela. Que banho, de Idade Media culta, rica, cheia de arte e de beleza. Reescrevam- se os livros de História!… que se dê visibilidade ao que houve de grandioso na Idade Media. Que seja banida a alcunha que lhe foi dada de forma injusta de” idade das trevas”.
Bela cidade, instigante região, linda postagem. Obrigada, jovem viajante. Se não podemos viajar e apreciar as belezas ao vivo e a cores, temos o prazer e a alegria de as ver nessas gostosas postagens. Parabéns .