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Tanzânia

Pelo interior rural da África: Rumo ao Serengeti

Estamos no interior da África, e embora tenha suas precariedades ele é mais abundante do que muitos imaginam. Bem-vindos nesta breve parada na cidadezinha tanzaniana de Karatu, a 500 Km do Oceano Índico.

Esses jornalistas estrangeiros vão à África e saem procurando a vila mais pobre que houver na zona rural, pra ir lá e fotografar gente miserável“, dizia indignado um amigo meu de Uganda, país aqui vizinho.

Os africanos se sentem insultados se você chegar com aquela visão do senso comum de que a África é um lugar pobre, sem nada, coitada, de gente miserável e faminta.

A internet gosta de pintar a África com foto clichê de abutre ameaçando criança desnutrida, mas aquilo não é representativo do geral. Aquela clássica foto do menino raquítico de cócoras — o menino já deve ter morrido, reencarnado, e as pessoas ainda circulam aquilo.

É claro que há problemas de insegurança alimentar em muitas partes do continente, mas não são uma fome e privação generalizadas como muitas vezes os estrangeiros pensam. Os africanos costumam prontamente lhe relatar — com orgulho — a abundância e variedade de alimentos que têm, e lhe apontam que quase todo mundo tem sua rocinha de subsistência mesmo quando não possuem emprego formal.

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Há pobreza, mas há comida — muitos alimentos naturais e diversos. Garanto que se alimentam melhor que muita gente da cidade. (Depois eu conto o que é aquilo ali meio branco.)

Querem um vaticínio? É preciso fortalecer a diversa produção local dessas pessoas e sua cultura alimentar, não usar a pobreza como álibi para transformar isso em plantação de milho transgênico controlado por alguma multinacional e mandá-los todos para a cidade — como fizeram no Brasil dos anos 70 para cá, resultando no inchaço das periferias.

Pois bem. O relógio aqui na África sempre parece estar numa época diferente. As pessoas ainda vivem na zona rural, e rural é muito deste interior da Tanzânia por onde passávamos.

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Num povoado rural.

No longo caminho até o Parque do Serengeti vindos do Lago Manyara, nos detivemos aqui em Karatu para resolver algo.

A viagem seguia muito bem, mas eu tinha duas queixas que começaria a resolver aqui hoje. A primeira foi a de estarem me servindo “comida de turista” (coisa industrial britânica ou norte-americana) nas acomodações, e eu passando batido sem conhecer por toda a cultura alimentar tanzaniana.

Segundo, foi que eu percebi o safári algo muito isolado. Talvez muitos estrangeiros temerosos prefiram viajar assim de forma asséptica, mas eu, não.

Eu já sentia falta de um maior contato com a população local, como costumo sempre fazer aonde vou. Aqui, eu estava a todo momento dentro do carro, e meu contato interpessoal era quase exclusivamente com Ally, meu guia e motorista.

Insisti com ele que já estava farto desse negócio de comer panqueca americana com manteiga de amendoim e feijão britânico de manhã. Mandem-me os aipins, inhames, batatas-doces e o que mais vocês de verdade normalmente comem. Comidas africanas, venham. Se as pousadas não as servem, iremos comprá-las e pedir ao cozinheiro que as preparasse. Ally me disse que era possível. (A África tem destas flexibilidades.)

Em vez de simplesmente passar ao largo de Karatu a caminho do Serengeti, resolvemos tomar a rua de chão e entrar. Logo desceríamos.

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Bem-vindos a Karatu.

Pôr os pés ali no chão me deu uma alegria inenarrável. Saltar do nosso jipe e pisar aquela terra vermelha do interior da África foi a sensação quase de um ritual. Você sai do mundo privado do seu veículo e adentra o mundo público das gentes.

Eu sentia o ar fresco do fim de manhã nesta altitude moderadamente elevada (1.558m), que prevenia muito calor. O céu cinzento deixava que todo o colorido viesse da terra — das cores das roupas das pessoas, dos alimentos, e do chão rubro.

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Acho que minha cara revelava a satisfação incontida.

Eu escutava o bafafá de pessoas ocasionalmente interrompido pelo motor de alguma moto ou carro que passava. Logo me viriam uns cheiros de tempero, de feira.

De um lado da rua ficava o açougue, que eu evitei. Do outro, os legumes, raízes e verduras. Talvez pelo entorno mais aberto, não havia aquele cheirão mais forte — às vezes demasiado — comum de encontrar em feira. Era ar circulando, e por vezes algum cheiro de tempero se apresentando.

Circular na rua aqui na África tem seu lado intimidador, mas saiba que isso é maior na sua cabeça que na realidade. Sobretudo se você não for negro, logo se sobressai e todo mundo o olha. Se for negro, eles também percebem por suas roupas e linguagem corporal que você é de fora.

Não demora a algumas pessoas o abordarem, mas eu estava com o motorista ali, então não me preocupei. Se bobear, você corre mais risco na feirinha do seu bairro que aqui. Na Tanzânia, a insegurança é um problema mais das grandes cidades que da zona rural.

Um rapaz de seus 20 anos e com uma mochila não demorou a me abordar, sorridente. Revelando sua mochila repleta de souvenirs e lembrancinhas, daquelas tipo de um dólar.

Eu agradeci e disse a ele que não queria. Ele também se convenceu e ficou contente em apenas conversar um pouco, dizer de onde vinha e perguntar de onde eu era. Ao contrário de outros lugares do mundo talvez mais marcados pelo turismo, aqui as pessoas ainda são genuínas.

Dirigimos-nos às barracas de frutas e raízes, nosso objetivo de compras hoje.

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Um dos lados do mercado nesta rua, com muitas raízes e frutas.
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Alguns tubérculos: inhame (nativo da África) e batata-doce (nativa da América do Sul)
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Na feira em Karatu, Tanzânia.
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Às vezes é tudo vendido assim, no chão. Além de batata-doce e mandioca/aipim/macaxeira ali adiante, aquela senhora de véu vermelho também vendia algumas folhas. Não sei exatamente quais nem para que serviam.

Duas jovens moças de não mais que 25 anos nos atenderam. Meu guia lhes falava em swahili, a língua franca aqui da Tanzânia e parte dos países vizinhos aqui pela África Oriental. Há mais de uma centena de outras línguas para as mui distintas tribos — como eles próprios chamam suas etnias. Swahili, originalmente da costa, é aquela língua adicional que quase todo mundo aprende. Para a maioria aqui, o inglês é a terceira língua. 

Como de praxe em muito da África, elas usavam lenços coloridos na cabeça — independentemente da religião. Uns saiões somados a moletons simples compunham o visual. Conversavam entre si um língua que eu nem sabia qual era, mas falavam inglês no nível de brasileiro que fez curso.

Melhor dizendo: uma delas falava, pois a outra ficava me dando umas olhadelas sem dizer muito. Não demora muito a entender que rola uns cochichos.

She loves you“, entregou-me jocosa a que falava conosco. A outra ficou encabulada.

Nossa, foi rápido!“, respondi eu entrando na brincadeira.

As pessoas aqui na África são muito objetivas.

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Aqui neste cesto tínhamos da boa e velha pititinga, aqueles peixinhos miúdos, trazidos do litoral.

Despedimos-nos das moças, e saímos daqui carregados aos quilos. O resultado nós depois veríamos. Era preciso retomar o caminho ao Serengeti para lá chegar com tempo.

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Karatu.
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Na venda.

Caso alguém esteja curioso para saber o que mais eu exatamente encontrei aqui, vi melancia, mamão, abacaxi, banana, laranja… mas não encontrei nenhuma fruta diferente, que eu nunca tivesse visto ou que não se encontre no Brasil. Pelo menos até o momento. Além da batata-doce, inhame e mandioca, vi também cana.

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Arroz de várzea. A mulher, lá de vermelho e branco, em destaque na paisagem verde e marrom.
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Melancias para dar e vender.

Retomávamos a rodovia rumo ao Serengeti, e o ambiente mais rural por ora dava lugar àquele ecossistema peri-urbano subdesenvolvido de “beira de estrada”, com gentes nas margens da pista.

Chão de terra com barracas, ambulantes, vendas, bichos, e pessoas que você não sabe o que exatamente estão fazendo ali. Por vezes, um esgotinho a céu aberto passando perto, e lixos coloridos pelo chão — ainda que, segundo comentam, bem menos do que era antes do banimento das sacolas plásticas.

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Mulheres a vender coisas do outro lado da vala. Os barzinhos não são muito diferentes daqueles no interiorzão do Brasil — só muda o nome da marca de cerveja. Até o design é parecido.
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Mamoeiros e bananeiras casualmente ali, lembrando-me o Brasil.
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Aquele ali olhava o celular. Muita gente aqui tem daqueles modelos analógicos do ano 2000.
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O ambiente ia aos poucos se ruralizando de novo.

As vans-lotação picadas de gente que víamos antes iam aos poucos ficando mais rarefeitas. Porém, ainda havia algumas lojinhas de telas pintadas e souvenirs — o que eles aqui na África Oriental comumente chamam de curio shop, pelas curiosidades.

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Algumas lojas são vastas assim, com muitas pinturas expostas (muitas delas já deterioradas pelo tempo).

Se você se pergunta por que expõem as telas ao tempo do lado de fora, é porque os vendedores não têm espaço interno suficiente. Do lado de dentro, há souvenirs de madeira, pedras etc., tudo no escuro e com um cheiro úmido de mofo. Quando chega um cliente, eles acendem a luz. No meu caso numa das lojas, a lâmpada estava queimada.

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Tanzanita, rara pedra preciosa que só se encontra aqui na Tanzânia.

Na Tanzânia, não demoram nada para começarem a lhe oferecer tanzanita, uma pedra lilás típica daqui. Tiram do bolso assim como se fosse caramelo e rolam na mão como se fosse gude para lhe mostrar.

O preço não é barato. E o mais difícil é saber se você está mesmo diante de tanzanita ou alguma ametista mais barata — ou outra pedra. Pode ser uma boa oportunidade de fazer um negócio da China, mas recomendo apenas a quem se garante identificando pedra. Não sendo o meu caso, saí sem adquirir das pedras roxas. 

Uma curiosidade nestes curio shops é que muitas vezes eles dizem o preço só com o número, e deixam que você interprete qual a moeda. “Esta é 85.” São 85 mil xelins tanzanianos, o que dá uns USD 40. Fica por sua conta se você entender que eram 85 dólares, pechinchar para USD 60, e ainda achar que se deu bem.

Peguei uma tela para pôr nas minhas já-tomadas paredes de casa (não cabe mais quase nada, mas eu não resisti), e retornei ao carro. 

A paisagem agora, neste noroeste da Tanzânia como que rumando ao centro da África, se tornava cada vez mais seca. Faziam-se cada vez mais presentes os Maasai, povo longilíneo de costumes pastorais semi-nômades que vivem tanto aqui quanto no vizinho Quênia.

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Pastores de cabras. Estes são do povo Maasai, de quem depois tratarei melhor. Eu os encontraria mais de perto em seguida.
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Garoto Maasai correndo na paisagem africana.
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O nosso almoço hoje foi no meio do nada, dentro do carro.
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Os africanos cozinham bem. Superaram minhas expectativas, eu ignorante que era acerca dos temperos daqui. Hoje, muitos legumes, molho bem-feito, e arroz.
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Como há influência (e imigração) indiana há séculos aqui na África Oriental, eles também comem muito chapati, estes indianos pães chatos feitos não no forno, mas na chapa com óleo. (Às vezes ficam um pouco gordurosos, mas faz parte.)
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As paisagens secas e savanas conforme nos aproximávamos do Serengeti à tarde.
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Olha, uma girafa.

O Serengeti vinha aí.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

One thought on “Pelo interior rural da África: Rumo ao Serengeti

  1. Ihhh que maravilha. Que beleza de zona rural. Tem pontos de contatos com a zona rural do NE do Brasil. A terra aqui é por vezes mais clara, principalmente na região do Agreste, mas no sertão às vezes pode ser assim avermelhada. Depende da constituição do solo.
    Os produtos parecem ser os mesmos que são comuns no NE, com algumas variações. Belos inhames, batatas doce, cebolas, bananas e melancias. Não sei se tem o mesmo sabor.
    Esse movimento de beira de estrada é comum no interior do NE e de outras regiões do Brasil.
    Muito agradável tratar com as pessoas da zona rural. Costumam ser mais espontâneas, abertas, simples e agradáveis que muitas das cidades. Seus produtos são de qualidade e em geral os preços são mais accessíveis. E usam mais adubos orgânicos naturais, embora já haja alguns com outros adubos. Falo pelos do NE do Brasil. Não sei os dai. Isso para os pequenos produtores/comerciantes. Pelo NE do Brasil eles se reúnem em feirinhas, ruas. em geral, como esses que o senhor visitou ai. São simples, de famílias numerosas e de baixo poder aquisitivo. Costumam, ser sociáveis e simpáticas.
    Pelo visto o senhor está muito feliz ai com o povão. Hahah e deu 1 x 0 nas comilanças de turistas hahah. Pois é.
    O povo africano que veio para o NE do Brasil é muito bom de tempero. As comilanças são cheirosas e saborosas. E também sabem muito sobre ervas e usos medicinais. essa comilança do senhor parece apetitosa.
    Gostei muito das vestimentas vistosas. Muito bonitas.
    Linda essa região de pastoreio. tanto a natureza quanto os animais. Acho lindas as cabras. Tem cabras no interior do NE do Brasil.
    Fofa a girafinha. Natureza bela, apesar de seca.
    Achei linda essa zona rural, seu povo, suas atividades, a vegetação, as casas simples, o descampado, as montanhas. Tudo bonito.
    Fico muito feliz ao constatar pela sua fala uma mudança muito interessante sobre a realidade e a visão que se tem da/das Africa/s. Que bom. E as fotos confirmam essa fartura de alimentos, apesar da pobreza. isso porque estão entregues à própria sorte. Imaginem se tivessem incentivo. Seria melhor ainda.
    Linda e promissora postagem. Feliz em saber que o povo da Africa Oriental esta se estruturando e sobrevivendo melhor que há algum tempo atrás.
    Valeu. Já motivada para o próximo hahaha

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