Eu vou me casar e ficar por aqui, viu gente. Fazer um pastoreio… mudar de vida.
Neste post, eu com muito gosto lhes apresento os Maasai, um dos povos mais emblemáticos da África Oriental.
Na companhia deles eu também mostrarei o que começo a chamar de um idílico africano. “Idílico” é um termo grego antigo que se referia à simples e bucólica vida campestre, por vezes retratada nos poemas e contos da Antiguidade. Contrastavam-se com os épicos, de grandes guerras e heróis.
Porém, o que nos habituamos a considerar “idílico” acaba quase sempre tendo uma estética europeia, ou meio Mediterrânea, e que inevitavelmente revela suas origens greco-romanas. Claro que há outros idílicos não assim nomeados, como o idílico feudal japonês cuja estética muitos ocidentais apreciam.
Eu aqui, pois, encontraria um idílico africano, e que hoje vos mostro. Vocês notarão como, à maneira africana, algumas fotos lhes lembrarão aquele período romântico dos pintores, como tantos quadros europeus do século XIX que buscaram resgatar o idilismo.

Eu estava deixando para trás o Serengeti, e faltava ainda algum tempo até chegarmos a esse entardecer.
Os céus amplos da África se apresentavam diante de nós, aquelas planícies amarelas infinitas ainda presentes ao nosso redor. Sua secura nesta época, ameaçadora.

Após deixarmos o simpático acampamento onde fiquei hospedado, levaríamos ainda horas até efetivamente sair do vasto parque.
Acabamos por almoçar ainda dentro dos seus limites, e dentro do próprio carro, pois a única sombra que encontramos já estava ocupada por leões. (Se você acha às vezes desafiador almoçar com seu cachorro ali do lado querendo, imagina com leões ali do lado?)


Era uma tarde quente e seca na estrada. O relógio do nosso jipe marcava 8:33. A poeira subia quando passava carro ou às vezes mesmo quando não passava nada, ao arbítrio de qualquer repentino pé de vento.
Eles contam as doze horas do dia e as doze horas da noite.
Ally, meu guia e motorista, gostava de manter o relógio no sistema swahili e de muito da África Oriental: 0h é o nascer do sol, que aqui à linha do equador ocorre praticamente no mesmo horário o ano inteiro.
Os etíopes fazem o mesmo. Eles não veem sentido em começar a contar as horas a partir de um momento aleatório no meio da noite em que nada acontece.
Eles contam as doze horas do dia e as doze horas da noite. Nossas 8:33 aqui equivaliam, portanto, às 2:33 da tarde. Você se acostuma ao que à primeira vista pode parecer maluquice. (Uma das coisas que eu mais gosto em viajar é treinar minha agilidade epistemológica, termo para a habilidade de enxergar as coisas de uma outra forma, como outros a veem.)

Uma vez que se deixa para trás o Serengeti, entra-se diretamente na Área de Conservação Ngorongoro. Ngorongoro, este curioso nome que você pode pôr no seu próximo cão, não tem consenso sobre seu significado. A tese mais aceita é de que ele se refere — segundo o povo Maasai — ao som dos sininhos presos aos pescoços das vacas e cabras que eles pastoreiam.

Ngorongoro é conhecida sobretudo pela ancestral caldeira vulcânica que hoje é praticamente um Jardim do Éden de animais. Eu a mostrarei no post seguinte — é para lá que nos dirigíamos.
A Área de Conservação Ngorongoro, no entanto, é toda uma zona mais extensa de 8.292 Km² (mais da metade do tamanho do Serengeti) e que se avizinha a ele.
Na prática, a diferença mais importante é que ninguém pode morar no Serengeti. Já na Área de Conservação Ngorongoro, vivem os Maasai (exceto no interior da caldeira) dentro de um certo regramento estipulado pelo governo.

Assim que deixamos para trás os portões do Serengeti, na vastidão ainda seca começamos aos poucos a ver os rebanhos de cabras dos Maasai, e às vezes um ou outro deles no horizonte, com seus habituais mantos coloridos e cajados.

Na estrada, você também passa a ver muitos meninos Maasai pedintes. Eles estão pastoreando, mas ao avistar o jipe de safári turístico vêm cobrar 5.000 xelins (US$ 2) para você tirar uma foto deles. (Se você tirar a foto e não pagar, segundo o meu motorista eles podem jogar pedra no carro.)
“Eles ficam aprendendo a virar pedinte“, mexia Ally a cabeça em negativa enquanto dirigia.
Nós havíamos vindo por esta mesma estrada para o Serengeti uns dias atrás, e há um ponto onde mulheres Maasai vendem mel próprio à beira da pista. Envasado em garrafas plásticas de coca-cola de 500ml sem o rótulo.
Desta vez, nos deteríamos. De quebra, depois de comprar, eu pediria uma foto com a vendedora. Costuma funcionar.

Comprei do seu mel denso e cor de brasa escura que mostrarei depois. Dez mil xelins tanzanianos (uns US$ 4) a garrafa de meio litro. Meu guia, que fez a negociação, olhava bem e balançava a garrafa de um lado a outro (para se certificar de que não tivessem misturado com açúcar, pois pelo visto aqui fazem isso, como no Brasil). O mel revelaria uma pontinha de sabor acre no final — achei muito bom e ligeiramente diferente.
As mulheres Maasai, cheias de balangandãs e trajes coloridos, são normalmente responsáveis pela coleta de lenha e uma série de afazeres. Você as vê nos campos com galhos e mais galhos secos que amarram e levam nas costas, na nuca, segurando atrás da cabeça enquanto caminham vagarosamente feito corcundas. (Não é à toa que muitas mulheres africanas da zona rural já na meia-idade ficam assim.)


“Elas se casam com gente de fora da tribo, Ally?“, perguntei eu já no carro.
“Às vezes, sim. Você raramente vê alguma mulher de fora indo se casar com um homem Maasai e vindo morar com eles; mas às vezes você vê mulheres Maasai com homem de fora. Essas mulheres Maasai são ótimas; são fiéis, trabalhadoras, responsáveis…“, comentou ele dando-me a leve impressão de que bem que gostaria de uma esposa Maasai. (Ele já era casado.)
Os Maasai mereceriam toda uma dissertação sobre eles. Meu primeiro contato com um foi, curiosamente, na Inglaterra, num evento onde vi o cidadão com sandália de couro e um manto vermelho por sobre o ombro. Eles vêm vestidos dessa forma aonde quer que seja, o que julgo autêntico.
Os homens quase sempre andam com lanças (que naturalmente deixam em casa quando viajam de avião) ou cajados. Enquanto que as mulheres usam mais cores, os homens optam por mantos mais simples, com padrões quadriculados que me lembram toalha de mesa de cantina italiana.
Homens e mulheres costumam usar a cabeça raspada, e têm um biotipo longilíneo, alto e magro. Falam seu próprio idioma, o maa, embora os mais versados também quebrem o galho em swahili, a língua franca aqui do leste da África. Aqueles que têm contato regular com estrangeiros também sabem inglês.

O mais característico dos Maasai é que tradicionalmente são um povo pastoralista, que não praticava a agricultura e portanto vivia apenas de produtos animais. (É comparável aos mongóis e outros da Ásia Central.) Antigamente, eles sequer vestiam roupas de algodão: usavam couros de vaca e peles para cobrir o corpo.
Quando falo em produtos animais, refiro-me não somente a leite e carne, mas também sangue. Os Maasai sabem tirar sangue da jugular da vaca sem matá-la, e depois tampar o lugar com esterco. (Olha que maravilha?)
Eles hoje em dia não caçam; usam exclusivamente seus animais de criação e o que compram no mercado. Ao contrário do que insistem em dizer os guias de bolso, eles hoje comem de tudo — não apenas produtos animais.
Onde podem, já praticam a agricultura, e vi vários vendendo na feira. Seu gado é a conta poupança, como pelo interior do Brasil.
São pobres? Muitos, sim. A sua principal necessidade me pareceu ser água, especialmente na época seca (junho a outubro). Meu guia disse que o governo regularmente passa com uma espécie de caminhão-pipa.
Nós vínhamos com muitas garrafas de água mineral dentro do carro, e deixamos várias com as mulheres Maasai que vendiam mel. Agarravam a água como se fosse dinheiro.
A paisagem aos poucos ia mudando, conforme o Serengeti se afastava e a Área de Conservação Ngorongoro ia ficando mais verde.



Parece ou não, afinal, algum quadro de Van Gogh, Monet, ou outro retratando uma campesina no campo de centeio?
As vistas enchiam-me de inspiração, e pareciam ir ficando a cada hora mais verdejantes. A umidade aumentava perceptivelmente. O solo ia ganhando tons escuros, aparentemente férteis, ainda que nada aqui se cultive.



Os Maasai hoje vivem tanto nas cidades quanto em vilas da zona rural, aqui na Tanzânia, no Quênia, e um pouco também em Uganda.
Parte está nesta área protegida onde somente eles podem morar. E, aqui nesta zona de conservação, eles não têm permissão do governo para fazer agricultura.
“Se deixasse, em poucos anos acabariam com tudo“, sugeriu crítico o meu guia. (Lições para o Brasil?)



No passado, os Maasai eram completamente nômades. Vieram para cá há alguns poucos séculos oriundos de onde hoje são o Sudão do Sul e o norte do Quênia. Atualmente, já são muito mais fixos, e muitos participam do turismo.
Organizam-se visitas a aldeias Maasai aqui, mas li que geralmente são pouco autênticas, algo já muito comercializado “para turista ver”, então deixei para lá. Eu encontraria Maasai funcionários no alojamento de hoje, para ouvir umas histórias curiosas.
Aproximando-nos finalmente de lá, já à tardinha, víamos muitas crianças com uniforme escolar verde a retornar para casa à beira da pista. “Pista” entre aspas, pois eram estradas de chão. A vegetação já se mostrava bem maior que no Serengeti, e por vezes seus galhos e ramos batiam no jipe quando passávamos.
Muitas das crianças senão todas nos olhavam, e vários nos saudavam com as mãos, animados.


O acampamento onde nos instalamos era um ambiente mágico repleto de verde, sob as copas das acácias com seus muitos galhos por onde passava o sol. Comentei em voz alta com um dos funcionários, “Parece cenário de algum filme.”
“É“, riu ele brevemente concordando, “falam que lembra Avatar“. Lembra mesmo, embora a mim o local tenha inicialmente lembrado algum cenário de Donkey Kong. Acho que vieram se inspirar aqui para fazer os jogos. Tudo aquilo que eu vira naqueles mundos virtuais quando mais jovem eu via agora adulto na vida real.






Eu ficava ali encantado — na acepção mais profunda que essa palavra pode ter.
É um ambiente mágico, de tamanha sensação de plenitude ecológica — tão distante da vida urbana habitual de muitos — que acabamos por relacionar com a ficção. Mas é real, e pode vir a ser real em mais lugares. Depende em grande medida das pessoas.


Um dos funcionários apresentou-se como Matthew. Se era o nome original dele desde criança ou apenas como se apresenta aos ocidentais, não sei. Um Maasai simpático de manto verde, daqueles contadores de histórias ligeiramente tímidos (os modos dos Maasai costumam ser relativamente recatados, pouco expansivos). Você tinha que ir perguntando para ele contar mais.
Foi ele quem, segundo ele próprio, salvou o irmão de um leopardo dentro de casa. É credível. Relatou-nos coisas do dia-dia muito distintas do meu ou do seu.
“Os búfalos odeiam os Maasai. A gente às vezes se depara com eles quando está pastoreando. Não adianta correr; você tem que se jogar no chão e ficar ali deitado. Como o chifre dele é para baixo, ele não consegue lhe pegar por baixo. Aí o que ele faz é lamber as suas costas pra você sentir cócegas e se levantar — aí já era. Ele tem aquela língua áspera de comer capim, é uma coisa horrível. Ele fica ali provocando você; você tem que aguentar até ele desistir e ir embora,”
“Às vezes, quando dá tempo a gente sobe em alguma árvore. Aí o que ele faz é urinar com o rabo pra baixo, e aí com um movimento do rabo ele salpica a urina em você. Aquela coisa coça que é um horror. Ele faz isso pra ver se você desce da árvore.”
“São uns bichos ladinos. Você vê ele aqui, acha que ele foi embora, e daqui a pouco encontra ele lhe esperando lá adiante. Com os elefantes é diferente; você não pode chegar muito perto, mas aí eles deixam você pra lá. Se lhe perseguirem, você tem que correr na direção onde o relevo está descendo, porque como o elefante é pesado ele não se atreve a correr demais em descida.”
Olha aí a dica, caso você se veja perseguido por elefantes algum dia.
Uma curiosidade é que estudos mostram que os elefantes sabem distinguir a língua maa, dos Maasai. Em geral, não ligam para outros humanos, mas de fato não gostam dos Maasai — os temem, os evitam, e antagonizam com eles, pois em muitas partes sempre houve muitos conflitos entre elefantes e Maasai. Elefantes que saem entrando na aldeia, ou Maasai adolescentes que vão provocar-lhes, etc.
Um dos valores do turismo aqui na África está sendo exatamente em mostrar a importância (também econômica) de se evitarem esses conflitos e se manterem as populações de animais selvagens bem conservadas, para os turistas continuarem a vir.
Rinocerontes, por exemplo, eu praticamente não vi porque já foram muito dizimados por interesses nos seus chifres — às vezes a fonte de renda que aqui se achava. O rinoceronte negro é criticamente ameaçado de extinção: dizem que há somente 32 indivíduos sobreviventes, e todos no “reduto” da caldeira de Ngorongoro que eu visitaria na manhã seguinte.


Eu deixo vocês com mais imagens destas vistas do idílico africano que eu encontrei aqui. Na manhã seguinte, visitaria a tal caldeira de Ngorongoro, afinal. Revelaria-se quase um Jardim do Éden.




Na África eu conheço somente a África do Sul. Inclusive também fiz um safari por lá.
Já vínhamos pensando em retornar ao continente, por essas paragens da África Oriental.
Suas postagens atiçou-me mais.
Esperando só o covid passar para meter o pé no mundo novamente.
Fico contente, Nuno! Que breve vocês possam fazê-lo.
Mairon,
Das suas fotos e dos seus relatos, acho que, por ora, esse é o lugar mais lindo! Realmente, um idílico africano!
Abraços,
Nilton
Muito obrigado, Nilton! Contente em poder compartilhar desses lugares impressionantes que encontro.
Grande abraço,
Mairon
Ihhh que espetáculo, meu jovem amigo. Parece que o senhor entrou em um dos quadros de Nárnia e saiu nesse paraíso ai. Que maravilha. Dir-se-ia saída do pincel desses famosos gênios da pintura. Magnifica, prodigiosa natureza. Que tons harmoniosos, suaves, belos, uma paisagem mais bela do que outra, todas surreais. Lembra mesmo a natureza de Avatar. Que verde magnifico!.. E a suavidade dessa paisagem azul é deslumbrante. Parece outro planeta. Quem sabe o senhor chegou ao Nirvana. Paisagens divinas!… Nem parece a Terra. Que amplidão magnifica. Belas planícies. Que vegetação maravilhosa. Exuberante. Que belos tons de verde!..e que campos dourados aqueles outros. Uma festa para os olhos. Imagino como se sentiu o viajante ao se deparar com tanta beleza. Estou encantada. Das mais belas paisagens que o senhor já postou, meu amigo. Merecem figurar em galerias e posters. Um brinde para quem ama a natureza.
Gostei das histórias e de conhecer esse povo de pastores.
Título muito bem posto. Idílicas as paisagens.
Amei as acomodações do senhor. Lindas.
Parabéns pela escolha do local , pelas fotos maravilhosas e pela belíssima postagem. Valeu, amigo viajante. Que venham mais belezas. Viva a Africa. Viva a Natureza. Viva o valoroso povo africano.