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Tanzânia

Arusha, ébano nos mercados, e o passado alemão da Tanzânia

(Este será um post longo.)

Ébano, a mais famosa madeira negra do mundo, você aqui acha em qualquer barraca. Ou talvez não seja bem assim.

Como é, afinal, um ambiente urbano africano? As pessoas de fora normalmente imaginam a África mais por suas maravilhas naturais. É assim desde a Antiguidade, como notou Plínio, o Velho (23-79 d.C.). “Como até os gregos comuns dizem, sempre algo novo da África advém.” [Unde etiam vulgare Graeciae dictum, semper aliquid novi Africam adferre, alguém que saiba latim melhor que eu pode oferecer uma tradução mais exata.] Está no seu clássico Historia Naturalis (79 d.C.), notado portanto num sentido de natureza.

Sempre que vocês anglófilos virem filme, nome de loja em aeroporto etc. com o termo Out of Africa, saibam que provém desse famoso dito latino.  

Já os ambientes urbanos africanos geralmente nos assustam sem que os conheçamos. Seja a notória criminalidade de Joanesburgo, a perdição das medinas no Marrocos — ah, mas ali é gostoso se perder, têm um gosto de traquinagem para adultos. Na África Negra, porém, tem-se a impressão prévia de serem as cidades uma muvuca sem fim. 

É um pouco assim mesmo, mas elas são mais navegáveis e interessantes que à primeira vista. Querem que eu comece por aquilo que vocês já imaginam, antes de penetrar a superfície?

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O posto de gasolina e a barraca de presentes.
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A estrada na periferia urbana.
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A vendedora de milho assado ali sentada.
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Retornando aos arredores da cidade de Arusha, cidade de 1.7 milhão de habitantes, a maior da região norte da Tanzânia e terceira mais populosa do país. (No país como um todo são 56 milhões de pessoas.)
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Estes rapazes não estão sem fazer nada; são motoboys, ou mototáxi. Ou, como aqui os chamam, border-border — que no sotaque africano soa bóda-bóda. É o mesmo esquema. Acho que os chamam assim porque podem levá-lo de uma divisa a outra, ou de um limite da cidade ao outro — não sei.
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As onipresentes vans-lotação, e a mulher com sua bela saia vermelha e saco na cabeça a atravessar a pista.
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Lá vai ela, em direção ao povaréu cheio de coisas. (Registro que eu não acertaria a dar três passos sem derrubar aquela sacola.)

Certifique-se de que sua porta esteja travada. Aqui eles às vezes abrem de repente e tomam o celular da sua mão quando o carro para“, disse-me Ally com certa normalidade, descansando as mãos do volante, ao que voltávamos de Ngorongoro até Arusha.

Nada que eu não conheça do Brasil. A diferença é que no Brasil há bem mais roubo à mão armada, já que há um tráfico de armas e drogas muito maior que aqui. Além disso, há as milícias, aqueles vazamentos de armas para grupos criminosos, etc.

Aqui na Tanzânia — e em muito da África, nos países não há nem houve recentemente guerra civil — a coisa é muito mais rural. É mais trombadinha ou alguém que pega e sai correndo.

Nesse sentido, os países africanos não são todos iguais. Aqui, andar durante o dia costuma não lhe trazer problemas, exceto talvez um ou outro a lhe chamar. À noite, as próprias ruas ficam bem desertas e é melhor se recolher.

Ally me deixaria na minha pousada bem no centro de Arusha, onde eu agora estaria por conta.

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Chegamos aos portões.

Nem todas as ruas têm nome. Número, nem se fala. Minha pousada ia pelo nome da rua com que esta cruzava, e não tinha numero. Portanto, o endereço era exatamente o mesmo (Fire Road, por ser onde ficava o corpo de bombeiros) de todos os demais estabelecimentos nas circunvizinhanças desta rua, mesmo que em ruas outras, adjacentes. Rua do Fogo, sem número.

Flávio, Nishia e Iggy eram os grandes porém dóceis cães da casa. Uns enormes, babentos e fofos mastins napolitanos. Habitavam ali também David (este, o tanzaniano dono da casa, um rapaz de seus trinta e poucos anos) e seu breve séquito de rastafáris, embora não se declarassem como tal.

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Eles dormiam nestes colchões na varanda da casa. Aqui Max, um rapaz francês que era um dos outros hóspedes, e mais adiante Yusuf, rastafári funcionário.

David quando apareceu usava na camisa uma foto dele próprio com um dos cachorros, não me lembro qual (talvez Flávio). Não era fumadão, embora eu chutaria que ele puxa um baseado de vez em quando.

Yusuf, um garoto de seus 17 anos (que eu depois descobri que tem 26), é quem mais ficava na casa. Volta e meia, numa manhã, também apareceu Richard, um gordo e rastafári coroa de seus 60 anos com aquele cabelo enrolado na touca feito Bob Marley.

Eram todos daquele estilo paz e amor, embora não fossem bobos. A única não-alternativa na casa era a mulher que nos preparava o café da manhã. Essa era normal. (Era engraçado).

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A minha vizinhança. Um recanto tranquilo no centro, a cinco minutos a pé do furdunço.

Já no fim de tarde em que cheguei — antes mesmo do meu “city tour” na manhã seguinte pelo centro — conheci os outros hóspedes e fomos ver a noite de Arusha. (Crianças, não façam isso em casa.)

Eu me lembro de você“, disse-me atentamente o rapaz de Nova York na sala de televisão com sua jovem esposa. Viam Netflix. “Você fez o safári sozinho, não foi? A gente passou por você.”

Senti-me de repente notado. Curioso. Não demoraria a aparecer o rapaz francês na sala a dizer que também já me conhecia. Eu já me sentia praticamente uma celebridade. “A gente viu você. Você estava com uma máscara de Covid“, fez ele com a mão no rosto, traindo aquele breve sorriso cínico que os franceses têm.

Não imaginaram se deparar já aqui de novo com o famoso mascarado do Serengeti. Expliquei-lhes que era pela poeira, ao que concordaram que foi uma boa ideia.

Vocês querem sair pra comer um sanduíche? A gente ontem descobriu um lugar bem legal“, convidou-nos sociável Max, o francês. “E tem uma ponte que a gente atravessa para chegar lá e que eu acho que você vai gostar“, completou ele ao novaiorquino, e que ficou sem entender o porquê.

Breve estaríamos os cinco na rua, ao cair da tarde.

Nestes ambientes de país em desenvolvimento eu, confesso, prefiro andar sozinho para usar certa camuflagem. Sair assim às saltadas vistas na rua com dois europeus e dois norte-americanos deixava-me ligeiramente desconfortável. A cada hora que gente nos olhava, eu já ficava em alerta. Tinha que contar que, à noite, todos os gatos são pardos, pero no mucho.

A tal ponte de Max se revelaria um lugar de extrema classe.

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O concreto jogado por cima do riacho-esgoto. O novaiorquino, que trabalhava em hospital e havia já passado por aquele pico da pandemia lá em abril de 2020, aqui quase teve um surto.

As pessoas pareciam aos poucos voltar para casa — aquela hora do “fechar do comércio”, como chamava a minha avó. Algumas crianças faziam seus caminhos de volta para casa; as motos e carros passavam a ser as principais luzes nas ruas à noite.

Cruzamos com alguns indivíduos no caminho, mas nada fora do ordinário.

Ao chegar à lanchonete foi que comecei a me dar conta da “normalidade” que também há em Arusha. Não é só essa urbanidade zoneada. A lanchonete, com seus cardápios de plástico, ketchup em cima da mesa, e menu de sanduíches e batatas fritas poderiam estar em qualquer lugar do Brasil. Para honrar a tropicalidade, ainda saíam sucos naturais muito bons.

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Lanchonete onde comemos em Arusha. Ninguém achou anormal sermos estrangeiros ali. Havia outros tanzanianos com ares de classe média.

A volta não foi pela ponte, faça-se saber. Demos a volta por outra rua. No dia seguinte, eu faria meus périplos de forma independente pela cidade.  

Às 11h da manhã, fazia aquele calor fresquinho devido à altitude de Arusha (1.400m). Os raios de sol sobre o chão de terra seca, o horizonte ainda meio acinzentado, os passarinhos a cantar em meio aos sons de motos.

Numa esquina por onde eu passava, senhores border-border (o que se chamaria de motoboy no Brasil) sentados jogando damas com tampas azuis de garrafa plástica como peças interrompiam o foco do jogo por um instante para gesticular como o guidão de uma moto, perguntando se eu queria uma corrida.

Ao lado, mulheres em barracas cobertas de lona, em assentos de madeira, preparavam bolinhos de massa ao ar livre que seriam então espalhadas como panquecas e assadas na chapa com óleo para virar chapátis — o pão chato de origem indiana que eles aqui na África Oriental consomem no dia-dia e têm como seu.

Pela Rua do Fogo diante de mim, passavam as vans lotação aqui chamadas de dala-dala, o principal meio de transporte aqui. Não há ônibus urbano, só os de longa distância.

Aonde ia eu?

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Os dala-dalas são praticamente todos estilizados, frequentemente com dizeres cristãos ou muçulmanos (como no Brasil, porém mais). Aqui um meio neutro, com a figura do rapper afro-americano Akon, e o dizer “O ódio é a raiz de todo o mal.”
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A Rua do Fogo (Fire Road).

Praticamente não há calçada. Neste sentido, é uma esculhambação. Daqui, em 5 min a pé atrás de mim na foto se chega ao centro, a parte ligeiramente mais antiga desta jovem cidade — onde, ali sim, há calçadas.

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Belos estavam os jacarandás em flor. Sim, são árvores da América do Sul que se adaptaram bem cá nestes trópicos africanos.
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Mulher no centro de Arusha.

Eu, naturalmente, evitava mostrar demais a minha câmera, como no Brasil. Ninguém tentou me assaltar nem nada assim, mas volta e meia há uns espertinhos que chegam querendo puxar conversa.

Remember? [Lembra?], perguntou-me um na rua. Isso é corriqueiro. Chegam fingindo ser alguém que você viu no hotel, ou até na imigração no aeroporto, e não se recorda. Treta pura, para tentar dali guiar você a algum lugar, receber uma comissão, pedir “um agrado” ou algo assim. Pode ignorar e seguir seu caminho.

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Farmácia, e desbotados prédios com a cara do século XX.
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As ruas do centro de Arusha.

Convenhamos, a cidade de Arusha em si não tem atrativos para justificar mais que um dia aqui. Esse um dia corre por conta de alguma História e mercados bem legais que você pode visitar para ver coisas típicas.

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A Torre do Relógio (Clock Tower) no centro da cidade é o símbolo mais reconhecido de Arusha.

Eis ali a Torre do Relógio de Arusha, seu simbólico centro. Poucos sabem quando exatamente ela foi erigida, pois história africana nem o Google domina bem. Sabe-se que data da primeira metade do século XX, quando estas terras eram ainda colônia europeia. Vocês nem imaginam de quem.

Volta e meia ainda se escuta no Brasil aquela ladainha de como o país seria outra coisa — supõe-se que bem melhor — se tivesse sido colonizado pelos ingleses ou franceses, em vez de Portugal. Alemães, quiçá? “Nossa! O Brasil todo ia ser feito Gramado.” Sei.

Para pôr de forma simplificada, uma coisa foram as colônias de povoamento (Canadá, Nova Zelândia…), outra muito distinta as de exploração como o Brasil. Ou como a África, sob qualquer país europeu.

Mapa colonial alemão em 1914
Breve mapa com territórios do Império Alemão em 1914.

A Tanzânia aconteceu de ser colonizada pela Alemanha. Não nos damos conta do tanto de colônias (de exploração) que a Alemanha tinha porque ela perdeu todas elas — em geral, para a Grã-Bretanha — após a Primeira Guerra Mundial em 1918.

Samoa, Togo, Camarões, Ruanda, Namíbia, Tanzânia, dentre outras, todas foram governadas pelos germânicos a partir do século XIX. Depois vieram os britânicos. Ficou uma lindeza de notório desenvolvimento.

Em 1885, sob a chancelaria de Bismarck, a Alemanha tomava posse em nome de Berlim do que à época foi conhecida como África Oriental Alemã (Deutsch-Ostafrika). Incluía o que hoje são Ruanda, Burundi, e a parte continental da Tanzânia.

O forte dos colonizadores alemães em Arusha, erigido nos fins do século XIX, segue presente ainda que degradado. Hoje, ele é um Museu de História Natural, embora seja mais conhecido como o Boma Alemão (German Boma), “Boma” sendo uma palavra africana para designar reduto, fortificação onde se vive.

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O Boma Alemão, antiga fortificação germânica destes colonizadores no fim do século XIX. Hoje é um decrépito Museu de História Natural.
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Parece até piada. Hoje se vê até ridículo, mas era a triste realidade. E coisa recente, do início do século XX, tempo em que já havia fotografia.
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Em Ruanda, que na época fazia parte desta mesma colônia da África Oriental Alemã.

Nesta que era a mais populosa colônia do Império Alemão, a presença humana germânica era pequena: menos de 1% da população. Seu interesse era exploratório: implantaram-se minas de ouro, plantações de algodão para negro trabalhar, e produção de café.

Tudo isso, porém, viria abaixo com sua derrota na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Os britânicos disseram “muito obrigado”, tomaram a colônia para si, e na prática aos africanos muito pouco mudou. Estas terras se veriam independentes somente em 1961, mas mais da História da Tanzânia eu conto depois.  

Era hora do almoço.

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Do café que tomei de manhã, na casa de David. (O café não é lá esse balaio todo, mas quebra o galho.)
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Por influência britânica, o que os tanzanianos normalmente bebem mesmo é chá preto em vez de café. (Como no Brasil, há esta tara por “tipo exportação” como sendo a coisa de maior qualidade — e ainda acha quem se aferre a essa qualificação como motivo de orgulho, exportador de produtos primários.)

Por sorte, meu almoço não teria nada de inglês nem de alemão. Meu respeito a essas duas culturas noutros quesitos que não o gastronômico (ao menos não em matéria de almoço; em doces, talvez).

Achei uma bodega maravilhosa na Rua do Fogo, como quem vai do Maasai craft market rumo à Torre do Relógio, do lado esquerdo da pista. Você faz uma refeição por 3.000 xelins (US$ 1-2), ou algo mais se quiser inteirar. Comi como se não houvesse amanhã.

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Eis a entrada do lugar, na Rua do Fogo. Foi meu reencontro com ugáli dagáa, este prato típico de massa de milho branco com pititinga no molho. (Eu havia experimentado desse prato no Parque do Serengeti.)
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O lugar era tranquilo, como tantos lugares de almoço de meio de semana no Brasil. Olhem que prato de caminhoneiro caprichado.
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Ugáli é aquela massa de milho branco arquetípica aqui na Tanzânia. Lembra uma polenta. No mais: bananas deliciosas ali cortadas; algo que me pareceu couve; peixe miudinho (pititinga) no caldo; umas ervilhas temperadas; e lá detrás do monte, uns jilós, legume nativo aqui da África, muito bem feitos que eu até gostei.

Sustança não me faltou. Eu era o único não-africano, mas tampouco gerou qualquer bafafá. Homens e mulheres tanzanianos comiam às mesas bebendo chá preto por costume inglês. Pedi um refrigerante, por costume turístico brasileiro, ao que um funcionário saiu pra comprá-lo em outro lugar e me trouxe.

Como eu não sabia os nomes dos pratos em swahili, aproximei-me das panelas e fui apontando o que queria. As três mulheres que lá trabalhavam pareceram achar a coisa ligeiramente divertida. Havia também um breve ar de satisfação, visto que a maioria dos turistas só sai pra comer pizza, hambúrguer… estas coisas.

Não sei por que me tomavam, se indiano, árabe, ou ocidental mesmo de qualquer parte. Há grande quantidade de indianos aqui, que cruzaram o Oceano Índico até esta costa leste da África desde o século XIX ao presente. É deles o prédio talvez o mais bonito de Arusha. São, quase sempre, negociantes, e como sempre mantêm-se hindus.

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Prédio da comunidade indiana Sikh em Arusha. Lembrou-me Jaipur, a cidade cor-de-rosa. Talvez sejam oriundos de lá. Não sei ao certo a função deste prédio, mas talvez um centro comunitário. Os Sikh formam uma religião específica dentro do hinduísmo.

É hora de vos apresentar, finalmente, para encerrar o post, o Mercado de Artesanias dos Maasai. Não sei porque tem este nome, já que não vi nenhum Maasai lá.

Ele é bastante legal. Se você se interessa por compras, artesanias ou souvenirs, é capaz de passar horas. É um enorme labirinto de lojinhas com muitas pinturas, artesanato em madeira, brincos, colares, tecidos e balangandãs. Há cerca de 200 lojas, e é bem maior do que parece à primeira vista. São várias “ruas” cobertas.

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Ali, a entrada para o Maasai Crafts Market na Rua do Fogo (Fire Road).
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As muitas lojas. (Aproveitei um momento sem ninguém para não haver nove horas.)
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Tecidos coloridos.
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Muitas artesanias em madeira. Ébano?

Quase tudo aqui na Tanzânia eles dizem que é ébano, mas não é verdade. Tampouco é mentira, muito pelo contrário.

Eu explico. Ébano é uma designação milenar para várias espécies de árvores africanas. O termo é tão antigo que provém da palavra egípcia antiga hbny. Porém, hoje, a ciência só classifica como ébano as madeiras do gênero Diospyros

Só que ninguém conversou primeiro com os africanos para ver o que eles acham. Portanto, o que é formalmente chamado de African blackwood (Dalbergia melanoxylon), que eles aqui chamam coloquialmente de mpingo, não é mais considerado ébano mas eles continuam chamando de ébano. É uma madeira quase tão preta quando as do gênero Diospyros

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Mpingo, chamada em inglês de African blackwood e conhecida em português pelo solene nome de pau-preto. O interior da árvore é naturalmente escuro e rodeado por uma camada clara.

Por isso não vi tanta malícia; eles chamam de ébano, mas se você perguntar se é mpingo, eles confirmarão. 

É por isso que eles se sentirão tranquilos em fazer o teste da raspagem com a faca para você ver que a madeira é naturalmente escura. 

(Não o farão com as peças feitas em madeira mole vagabunda e pintadas de preto, o que também há de monte, mas você perceberá a diferença pelo peso.)

De certa forma, é até bom que não se compre do ébano verdadeiro pois ele está ameaçado de extinção, do tanto que foi usado para fazer mobílias chiques, teclas pretas de piano, ou peças de xadrez.

Barganhar sempre é preciso. Via de regra, procure chegar à metade do preço inicial oferecido. Veja então se lhe parece razoável, e cuidado pois alguns começam com um preço inicial muito alto.

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Esta cumbuca na mão dele eu comprei. Vocês podem me visitar para vê-la ao vivo. (Ela, porém, não é de mpingo — vulgo pau-preto — mas de outra madeira do gênero Dalbergia chamada em inglês de rosewood.)

Estava um dia frio, ligeiramente chuvoso, e as pessoas me chamavam quando eu passava. Querem que você entre em cada uma das lojas, que pise dentro e olhe as coisas. 

Step inside, step inside, please. Come. Look at everything. Eu vou acender a luz pra você ver melhor.” 

Os vendedores queixavam-se de muito pouco movimento nestes últimos meses. Para alguns, eu — segundo eles — seria o primeiro cliente em dias, o que me pareceu credível. “Este ano está péssimo. Por favor, veja alguma coisa que você queira levar. Eu faço um preço bom.

Levei horas por ali e, quando vi outro cara-pálida a circular, acabou sendo o francês que estava na mesma pousada que eu. A cidade praticamente não tinha turistas.

Havia mesmo todo um clima meio de paradez de inverno, seus 14 graus no ar. “Um dia frio, um bom lugar pra ler um livro”, como diria aquele eu-lírico de classe média de Djavan, que não cola aqui.

Aqui, um dia frio é dia de esperar cliente na loja enquanto ouve o pastor no rádio. (Ô, Djavan. Sabe de nada, inocente.)

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Priscila, com quem comprei algumas coisas.

Há uma minoria muçulmana, mas a maioria das pessoas em Arusha são cristãs, boa parte delas neopentecostais. Era uma quinta-feira, nenhum dia especial, nem nenhum livro sendo lido. Todos — cada um em sua loja — a ouvir missa, pregação ou exorcismo pelo rádio.

Não credite isso à cultura africana: é fruto direto do missionarismo europeu dos séculos passados, seguido pelo televangelismo à là Estados Unidos (exportado também ao Brasil desde os anos 80) e que encontrou terreno fértil na pobreza africana, como encontrou nas periferias brasileiras.

Houve música de louvor em swahili, a principal língua daqui, onde de repente surgia um “Aleluia!”. Outro pareceu claramente um credo sendo rezado em swahili, numa missa católica. Já numa terceira loja era uma gritaria afoita pelo rádio.

O homem parece meio nervoso, não?“, comentei eu com o vendedor que escutava o evento no rádio.

Ele sorriu brevemente antes de me explicar. “É pra o espírito ruim sair.” Sei. Um desses shows de exorcismo, que se vocês acham que no Brasil são circences o bastante, deveriam ver os africanos no Youtube. Lembram quadros de Zorra Total.

Você parece personagem de filme de Jesus“, disse-me Celina, uma outra que preparava um colar de sementes no colo. Olhavam para minha fisionomia como que para constatar que era isso mesmo.

Parece gente da terra de Israel“, completou.

É, dizem mesmo que eu tenho cara de palestino“, respondi.

Israel“, corrigiu-me ela. Eu via várias bandeirinhas de Israel aqui e ali ostentadas pelos tanzanianos cristãos, enquanto os tanzanianos muçulmanos apóiam os palestinos. Pura polarização; ninguém realmente faz juízo próprio de nada; é a disputa da minha religião contra a sua, sem fazer ideia do que lá se passa. Pelo menos eles aqui se dão bem entre si. Há um breve cisma, porem pequeno.

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Já que eu estava a perguntar seus nomes, faltava-me uma tanzaniana pesada e de lenço na cabeça.

Hildegard“, apresentou-se. Eu da primeira vez nem compreendi. Riu-dé-gád, disse ela breve e casual como quem responde “Ana”. Tive que pedir para ela repetir até entender.

(Ora se os alemães não deixaram uma moda de nomes germânicos aqui. Cada um põe o nome que quer, mas eu achei tão curioso quanto se tivesse esbarrado numa alemã chamada Nzinga.)

Eles são todos muito simpáticos, agora atenção aos preços. Não aceite pagar mais que USD 5 ou 10.000 xelins num par de brincos. O ideal é metade disso se não for de pedra. O preço dos colares também é esse. Pratinhos de madeira saem por 15-30 mil xelins. As pinturas saem na casa de USD 20-50 se você souber negociar (se não souber, vai pagar USD 100 ou mais). Raramente você acha um que já lhe diz os preços de antemão, então negociar é preciso.

Eis um pouco de Arusha por debaixo da fisionomia geral da África. Começamos a ver para além das generalidades.

Era hora de eu voltar à pousada e me preparar para o programa de amanhã.

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De Arusha com amor.
Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

One thought on “Arusha, ébano nos mercados, e o passado alemão da Tanzânia

  1. Muito interessantes a cidade e seu intenso movimento e vistoso colorido.
    Muito semelhante à periferia de muitas cidades brasileiras, em particular do N-NE.
    O povo se parece com o povo da Bahia, sobretudo de Salvador, onde há muitos afrodescendentes.
    A pobreza e a falta de infraestrutura também são parecidas. Até mesmo o que parece ser o astral das pessoas com seus sorrisos no rosto, suas lojinhas coloridas e cheias de artesanato. Os motivos diferem mas o espirito do povo parece ser semelhante. Parecia o mercado modelo de Salvador, este com estrutura melhor e outros motivos. Gostei do que vi.
    A zoeira é comum também pelo Brasil afora, assim como o risco de sair à noite.
    Curiosos o carro/posto e e a barraquinha com os nome de Hilary e Obama. Criativos.
    Belíssima essa construção rosa. Estilo elegante e lindo tom. Amei.
    Nem sabia que a Alemanha tinha tido colônias na África. Mas era de esperar com Bismarck no governo .
    Adorei as artesanias, o colorido e a alegria do povo, apesar das dificuldades. Parece com o povo do NE do Brasil.
    Da cidade, alem do belíssimo prédio rosa, gostei da pracinha do relógio. Bem bonitinha.
    E que beleza de comilança; Gostei da pousada, também.
    Interessante Arusha.
    Aprendi bastante sobre o ébano e sobre a história da Tanzânia e cia.
    Rica essa África e ao que parece com o povo com traços/jeito dos brasileiros do NE. Pelo visto até nas dificuldades estruturais.
    Valeu, jovem viajante. Espero continuar a ver mais da África. Bela viagem. Estou amando.

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