Arusha pode não oferecer tanto enquanto cidade, mas ela é o ponto de partida de muitos passeios aqui. Após os safáris — e uma eventual subida no Monte Kilimanjaro, que leva vários dias e muitos dólares do seu bolso — o mais popular é visitar a natureza ao redor do monte num bate-e-volta até a Cachoeira de Materuni, aproveitando a deixa para tomar café com a tribo Chagga.
Eu comentei no post anterior que os tanzanianos normalmente preferem chá (por influência da colonização britânica, 1918-1961), mas os Chagga plantam café de altitude no sopé do monte, então são diferentes. Eles são uma das cerca de 125 tribos ou grupos étnicos que há aqui na Tanzânia.
Não imagine pessoas enfeitadas — a maioria dessas tribos têm língua própria, mas a menos que você seja muito conhecedor das fisionomias e sotaques daqui, não vai conseguir distingui-los. Meu guia no safári, Ally, às vezes dava palpites, mas mesmo assim nem sempre se sentia certo ao dizer.
Não é como no Brasil, onde quase todo mundo é “só” brasileiro e relativamente poucos vão reclamar também alguma identidade étnica indígena específica. Aqui, todo mundo têm identificação tribal e é tanzaniano ao mesmo tempo.
Você não sai perguntando isso às pessoas, embora possa fazê-lo e eu às vezes o faça como curiosidade. Eu, por exemplo, não fazia ideia qual a tribo de David, o manda-chuva da nossa pousada e que nos levaria neste passeio.

Se você imaginou os arredores do Kilimanjaro um lugar árido, enganou-se. Aqui é repleto de verde e bastante úmido, ainda que frio. A 3-4h de carro desde Arusha, o clima aqui já é notadamente distinto.
É claro que, conforme você vai ganhando altitude e se aproxima do monte, numa dada hora a vegetação some. Aí você já estará dentro do Parque Nacional do Kilimanjaro, uma área protegida onde ninguém vive. Há só os turistas visitantes e os guias.
Os Chagga são a “última” tribo do Kilimanjaro, como eles mesmos gostam de indicar, no sentido de serem as que vivem no limite com o parque. Após as suas terras, já começa a área protegida.



Lá abaixo, o chão é vermelho como barro. É muito distinto, tanto dessa aridez ali das elevações quanto das gramíneas amarelas que eu vi nas savanas uns dias atrás.



A Tanzânia é dividida em 31 regiões, que são como províncias. Esta se chama Kilimanjaro, então Kilimanjaro não apenas é a montanha como também a identidade de origem das pessoas daqui.
Sua principal cidade é Moshi, que fica a 80 Km ou 2-3h de carro desde Arusha. A lentidão não é por má qualidade do asfalto, mas pelo trânsito.

Em matéria de estradas, a Tanzânia está até bem pelo que pude ver. Qualquer tanzaniano rapidamente apontará que seu atual presidente, John Magufúli — que em 2020 foi reeleito para mais um mandato de 5 anos — havia sido ministro de infraestrutura do presidente anterior.
David cantava as qualidades de Magufuli em verso e prosa ao volante enquanto vínhamos: eu, ele, o boa gente francês baixinho e conversador, de seus 25 anos, que me achou a tal da ponte sobre o esgoto como atalho à lanchonete lá em Arusha, e sua simpática namorada maior que ele. Até que fomos detidos pela polícia na estrada.
A cidade de Arusha pertence à região homônima de Arusha. À divisa com a região de Kilimanjaro, uns policiais faziam hora na pista. Um coroa numa farda meio diferente parecia o chefe de todos, aquele ar de matuto abaixando a cabeça para olhar para dentro do carro. Pegou no chapéu, começou aquela brodagem toda com David — que ele obviamente já conhecia — e recebeu de bom grado a nota vermelha de 10.000 xelins (uns R$ 20).
Vocês fiquem aí achando que o Brasil é alguma grande exceção. Corrupção policial é uma infelicidade corriqueiríssima. (Quem quiser uma história mais comprida desse tipo, veja meu post na estrada do Marrocos.)


“Esse é meu amigo”, comentava David no carro sobre o guarda. “Eu só dei porque eu conhecia ele“, ia explicando-se sem convencer ninguém muito. “Eu jurei que não ia mais dar [dinheiro]. Só dei porque foi meu amigo.” Segundo ele, os policiais ali vistoriam os carros e sempre vão “achar” algo de errado, e pedir propina.
Como passageiro você só sorri, mas deixo o alerta a quem pensar em alugar carro pra sair dirigindo por aqui, que fique de olho.
Por informação, digo-lhes que a maioria das empresas cobra em torno de USD 150 por pessoa para fazer este passeio à Cachoeira de Materuni & visita aos Chagga. USD 100 por cabeça se forem três no carro. Podem experimentar, por exemplo, a Safari Soles Tours, que é bem estabelecida e responde com presteza por WhatsApp. Já David cobrou-nos USD 45/pessoa. Faz a diferença, portanto, você dar um jeito de arrumar com a acomodação se quiser economizar.
O que nos faltou foram as Termas de Chemka (Chemka hot springs), que algumas empresas fazem num mesmo dia, mas fica um dia apertado se você quiser incluir Materuni e a visita aos Chagga com degustação de café artesanal tudo junto.
Há quem, com tempo, se hospede em Moshi para fazer cada coisa num dia diferente. Eu queria, mas é aquilo que comentei sobre os passeios em grupo: você tem que se ajustar ao denominador comum de todos. Ficamos, portanto, com a cachoeira e o café.



Fomos recebidos de forma calorosa pela família Chagga que nos guiaria aqui. É claro que eles cobram pela acolhida — é o ofício deles —, mas isso é lá com David (ou a empresa que você contratar) para repassar. Eles que são tanzanianos que se entendam.
Oscar, um quarentão animado e de boné, foi o nosso guia principal. Acompanhavam-no três rapazes de seus 20 anos, e viam-se outras pessoas ali a circular, inclusa uma senhora de seus 80 e poucos, mãe de Oscar.
Em toda a Tanzânia, na polidez das maneiras dos falantes de swahili, há distintas formas de cumprimentar as pessoas a depender da idade. “Jambo!” é a saudação padrão. Jovens informalmente podem dizer entre si “Mambo!“.
Já com pessoas idosas ou socialmente superiores por qualquer razão, você deve dizer “shikamoo”, o que significa respeitosamente algo como “eu toco os seus pés”. A resposta será “marhaba“, uma palavra emprestada do árabe — que talvez você já tenha ouvido no Marrocos, Líbano ou outro lugar — e quer dizer “bem-vindo”. A idosa ficou ligeiramente lisonjeada, respondeu e passou sorrindo.



Você não demora a notar a precariedade de habitação das pessoas. Elas, pelo menos, têm suas terras garantidas dentro do arranjo tribal, mas vivem de subsistência e pequenos negócios que incluem as visitas turísticas. As casas são quase todas de madeira, e eu não sei se a maioria têm banheiro.

Eles vivem de cultivar sobretudo café e banana, fruta com que fazem até vinho e cerveja. O vinho amarelo tem um ar pouco encorajador, mas a cerveja de banana fermentada (mbege) é algo bastante tradicional.
Para preparar essa tradicional cerveja, eles cozinham as bananas no fogo por 6h, daí deixam fermentar por 7 dias. Adicionam uma farinha de milhete para dar robustez, e depois bebem.
Eu ia tomar, mas com isso da pandemia muitas vendinhas estavam fechadas (talvez pela ausência de turistas) e acabei ficando na vontade. Quem vier e experimentar, me conte.


Quantas delícias, hein? Mas, de todas elas, eu ainda fico com o café, que mostro daqui a pouco.
Primeiro, a Cachoeira de Materuni, aonde chegamos após 45min de caminhada desde o vilarejo Chagga, por subidas e barrancos que permaneciam molhados mesmo nesta dita estação seca.
O lugar é felomenal.


Naquele estouro estrondoso que cachoeiras deste porte geralmente são, voavam partículas de água por toda parte e à distância. A umidade da natureza se fazia presente enquanto contemplávamos.
Quem quiser uma palhinha do som pode ver o curto vídeo abaixo para ouvir.
O lugar tem uma energia maravilhosa. Não pega nem sinal de celular. O drone do francês não levantou. Depois, a uma distância, levantou torto e quase decepa o dedo de um.



Subimos e descemos por aqueles caminhos de chão enlameados. Volta e meia, aquele risco gostoso de tomar um escorregão na lama íngreme, mas nada sério. Tampouco bichos muito ameaçadores parecem viver aqui — exceto o homem turista, cujas indevidas marcas de lixo às vezes se viam aqui e ali.
Era um verdume pujante, rico, com ares mesmo de “coração da África” — que, aqui entre nós e para a surpresa de poucos, tem muito de semelhante ao coração do Brasil.
Viemos e voltamos à vila com um dos rapazes Chagga. A todo momento ele soltava um hakuna matata, que em swahili quer dizer “sem problema”. O termo virou uma febre turística desde O Rei Leão, embora muitos nem saibam de onde ela veio, achando talvez que se trata de algum termo inventado por Timão e Pumba.

Outra curiosidade é que os africanos orientais gesticulam talvez ainda mais que os italianos.
São gestos diferentes, naturalmente. É sobretudo quando estão versando ou explicando alguma coisa. Fazem um jeito meio de quem está elaborando verbalmente uma tese, com movimentos de mão que dançam, o dedo indicador geralmente em riste em voltas que acompanham a cadência da frase.
Lembram-me um pouco os gestos dos indianos, embora algo distintos pois o giro de mão dos indianos eles aqui não tem. Eles também são dados ao jeito professoral de falar com perguntas retóricas que são imediatamente respondidas. “Isso também é uma forma de se esconder do? predador.” É uma coisa que os indianos também fazem, embora dentre estes isso se misture com uma atitude frequentemente arrogante que os reservados africanos orientais em geral não têm — exceto os ricos, pois rico geralmente é arrogante em qualquer lugar.
Eles aqui também pronunciam o inglês de forma curiosa. Sure vira “shúa”, here é “ria”, e pastor soa como “pasta” (eles até fazem trocadilho). Um dia em que eu estiver desocupado eu gravo uma imitação.
O meu favorito é o clássico “sapôse” (para suppose), e por aí vai. Essa pronúncia sempre de consoantes-vogais bem abertas acaba lhes dando ótima fluência em espanhol e italiano (até porque italiano também fala inglês pondo vogais no final, tipo good’a, drink’a).
Quem quer café?

Bom, quem quiser café, primeiro tem que fazer. Aqui tudo é à maneira tradicional da minha bisavó, senão mais antigo: colher os frutos, catar os grãos, torrar e pilar tudo com o pilão de madeira. No braço.
Tivemos toda uma aula prática sobre o processo de preparar o café do começo ao fim.





Agora, meus queridos, é hora de pilar este café. Vou lhes dar o prazer de me ver pilando café na África com um pilão de madeira no meio dos Chagga.
E houve música pro moreno trabalhar. Foi ao som da cantoria de Jambo Bwana (bwana em swahili quer dizer “senhor”), música queniana de 1979 que caiu nas graças do turismo para dar as boas-vindas e, inclusive, lançou o famoso hakuna matata antes do Rei Leão.
Vejam a destreza da pessoa com o pilão.
Pessoal muito buena onda. Gratidão ao Max por ter filmado o episódio. Aquele pilão é mais pesado do que parece. Se dependesse disso para cada xícara de café, eu acho que tomaria menos.





O rapaz ali de gorro cor de vinho me perguntou quantas xícaras destas de café eu normalmente tomava por dia.
“Uma duas“, respondi casualmente.
“Eu tomo entre sete a dez“, contestou ele.
Jesus…
E o veredito? “É bom, o café?”. Não é assim uma Brastemp, para ser verdadeiro com vocês, mas é bom. (No Brasil se acha café melhor, o que eu naturalmente não disse a eles. Estávamos aqui para contemplar e participar, afinal.)
Eles vendem o pacote, acho que de 500g, por 30.000 xelins, o que dá uns US$ 13 ou R$ 70. Orgânico, agricultura familiar e tal. O francês levou um, mas achei caro. Eu, de toda maneira, já o havia experimentado aqui.
Meu passeio nesta parte da Tanzânia estava se encerrando. Era o meu último dia antes de tomar o avião. Não ainda de volta pra casa, mas rumo a Zanzibar, na parte costeira da Tanzânia, que é muito diferente. (Lembram-se daquele voo da Precision Air que eu fui mudar a caminho do safári? Ei-lo.)
Eu ficava contente de, finalmente, poder conhecer melhor os povos e os lugares da África. Estou seguro também de que, da próxima vez que ouvirem falar na Tanzânia, ninguém pensará apenas “é um país africano aí“. É um lugar próprio, com sua personalidade, suas coisas e sua gente, e que agora todos nós conhecemos um pouquinho melhor.
Deixa de ser um mero lugar no mapa, como eu gosto de dizer.
EPÍLOGO: Hora de tomar o avião
A manhã seguinte no aeroporto doméstico de Arusha foi curiosa.
Nós voltamos com David pela estrada já à noite após nos determos em Moshi para comer quesadillas mexicanas aqui (!). O mais surpreendente de tudo é que estavam boas.
Na pista à noite, aquela loucura de faróis altos e, inclusive, aquelas luzes azuis ou violetas que proibiram no Brasil por fazer mal aos olhos. Aqui, eles as usam sem restrições.
A minha impressão é que, exceto obviamente pelos países onde há guerra, o maior risco na África não são as doenças nem a criminalidade, mas suas estradas. David seguia com sua eulogia ao “meu presidente” exaltando a qualidade das estradas, mas ainda ontem seu carro havia tomado um “beijo” de outro.
Retornamos inteiros a Arusha, e no dia seguinte veio um motorista me levar ao aeroporto para voar. Seria Ally, já que os serviços da empresa do safári incluíam traslado de buscar e levar de volta ao aeroporto.
Só que, naquele mesmo estilo mui conhecido no Brasil, rolou um “Eu tive um problema aqui, mas vai um amigo meu. Pode ficar tranquilo que ele já já chega aí“. Chegou com uns 40 minutos de atraso, mas vai lá, não perdi o voo.

O Aeroporto de Arusha me lembrou a Bahia dos anos 90. Começo dos anos 90, aquela coisa de 30 anos atrás: vi um som daqueles de tocar CD, uma loja cheia de livros velhos, ímãs de geladeira, vitrines à là mercearia exibindo creme dental, cigarro, remédios e inseticida tudo junto.
Uma televisão em algum lugar, aquela infraestrutura precária, e perto de mim uma mulher negra com sua criança de colo ouvindo uma batida que me lembrou axé dos seus tempos áureos. Só faltou ser Chiclete com Banana. Balanças com rodinhas e ponteiro, daquelas de chão de armazém, pesavam as bagagens.
A amável funcionária da Precision Air, que deveria ter por volta da minha idade, ao ver o meu nome comentou. “Eu tenho um filho chamado Giovani. É esse aqui,” e mostrou a foto delas com os filhos no celular — aí já nos trazendo de volta a 2020.





Tudo correu bem. Na hora, um funcionário nos convoca para embarcar. Caminhamos pela pista, onde víamos cada teco-teco menos inspirador de confiança que o outro. Por isso também que escolhi a Precision Air, porque suas aeronaves têm porte — o que costuma dar mais segurança que esses jatinhos.

Algumas pessoas, à beira da grade que separa a pista do aeroporto de uns campos, paradas ali ficavam observando, a esperar o avião decolar.
Valeu, Arusha e Kilimanjaro. Hora de rumar a outras bandas da Tanzânia.
Nossa, que interessante região!…Que passeio instigante. E que possante e bela cachoeira. Parece mesmo um recanto sagrado e de grande energia. Adoro águas limpas, doces que correm entre as pedras. Belíssimo verde e linda e profusa vegetação. Um presente para os olhos. Lindas paragens. Amei.
O Kilimanjaro é um espetáculo à parte, parece ter alma. Esplendoroso. Amo montanhas. Suas neves são lindas, parecem um manto de algodão.
Gostei muito do povo da última tribo. muito simpáticos.
Maravilha, meu amigo a sua performance ao pilar o café. Forte o senhor. Adoro café, mas para tomar e não para pilar. Imagino que esteja muito saboroso. Amei o samba de roda. Parece com as rodas de samba do candomblé das religiões africanas aqui do Brasil. Muito bonito.
Amei a postagem. Conhecer a(as)África(s) e perceber suas diversas identidades, são os caminhos necessarios e naturais para valorização dos seus povos e das suas culturas. Conhecer para amar, apreciar e valorizar o que ha de belo e de legado cultura, sobretudo para o Brasil. Muito bem, jovem viajante. Resgatar, dar visibilidade a esses povos e a essas terras é preciso. Belíssima região. Riquíssima natureza.
A lamentar a pobreza que salta `s vistas., e a valorizar a garra e a alegria de viver que transparece na simplicidade, nos rostos e nos sorrisos. Amo as Áfricas.
Valeu, jovem amigo viajante. Vou sentir falta d natureza pujante da África. Que venham mais belezas.