O quarto do hotel cheirava a madeiras do oriente. Uns amadeirados quase misturados a aromas místicos de bom incenso e um leve toque de especiarias. Desenho de belas portas, feitas com a madeira africana.
Pouca gente no Brasil sabe, mas Zanzibar é famosa por suas portas.

Estamos na costa leste da África, uma atmosfera tropical quente e úmida no ar. Como no Nordeste do Brasil, mas menos quente nesta época do ano. Tudo me evocava uma mistura de Marrocos com Bahia.
Amendoeiras, algumas folhas avermelhadas e amêndoas a cair. Uma mangueira grande próxima à minha sacada no hotel. Árvores semelhantes às que conheci na casa onde cresci. Cresci com uma amendoeira diante do portão e grandes mangueiras ao quintal — a temperatura era a mesma daqui.
Edificações coloniais algo sujas do tempo e pouco conservadas lembravam-me o litoral do Nordeste do Brasil, aquela herança histórica antiga mesclada às palmeiras e com o mar ali próximo.
O sol da tarde raiava lindamente por sobre aquelas edificações de época, algumas das quais fizeram eu me perguntar se os lusitanos se inspiraram na arquitetura árabe também para fazer suas eiras e beiras — aqueles enfeites característicos nas bordas dos telhados. Depois eu descobriria que não foi bem assim.





Que lugar curioso, este. Zanzibar é assim mesmo.
No post anterior, eu comentei como os árabes medievais navegaram quase toda esta costa oriental africana. Trouxeram consigo o comércio, com o Mediterrâneo e a Ásia, e trouxeram o Islã.
Hoje, há a observação curiosa de que o interior do Quênia e da Tanzânia são majoritariamente cristãos (fruto de incursões europeias posteriores), enquanto que as pessoas do litoral são predominantemente muçulmanas desde a Idade Média.
Junto da religião, veio essa estética que você vê acima e abaixo.

Desenvolveu-se aqui a cultura Swahili (que em árabe significa “margem” ou “costa”, como o Sahel nas “margens” do grande Saara). A língua swahili, língua franca do leste da África, “nasceu em Zanzibar, cresceu na Tanzânia, ficou doente no Quênia e morreu em Uganda“, contou-me um morador da Cidade de Pedra.
Tanto o “ficar doente” quanto o “morreu” são figurativos. Na costa, as pessoas falam swahili bem, um swahili “limpo” como às vezes até outros tanzanianos me diriam. No interior, vira aquele inglês de cursinho.
Em 1499, Vasco da Gama aportou aqui. Antes do descobrimento do Brasil, os portugueses já estabeleciam entrepostos comerciais por toda a costa desde Portugal até Macau, na China. Seu foco era o comércio de especiarias e outras mercancias asiáticas. Zanzibar por séculos foi um desses entrepostos.
Entre 1503-1504, Ruy Lourenço Ravasco Marques tomaria a ilha com seus canhões. Prata e chumbo circulavam juntos.

Os domínios portugueses nos idos de 1500-1650 na África e na Ásia eram vastos. Começaram a sofrer reveses em meados desse século XVII com a competição holandesa na Ásia, e pelo Oriente Médio os árabes lhes davam o troco.
Como já comentei quando fui a Omã, no sul da Península Arábica, os árabes omânis os expulsaram de lá em 1650. Breve viriam aqui também prestar assistência aos seus irmãos de fé muçulmana na costa da África.

Os portugueses dominaram Zanzibar por cerca de 200 anos, até serem derrotados por árabes oriundos do Sultanato de Omã em 1698. Em Mombaça, na costa queniana um pouco mais ao norte daqui, você ainda encontra o portentoso Forte Jesus que levantaram.
Aqui, os árabes reconstruíram por cima das edificações portuguesas e fizeram um forte seu, apelidado hoje de o Velho Forte Árabe (Old Arab Fort). Mais a sul, Portugal reteria o controle. Moçambique, imediatamente a sul da Tanzânia, seria colônia portuguesa até 1975.
Zanzibar se tornaria efetivamente parte do Sultanato de Omã. A ponto de, para escapar de conflitos lá na Arábia, o sultão vir morar aqui.
Estas terras ficariam bastante curiosas, mas também perigosas.


As coisas economicamente estavam indo tão bem em Zanzibar que valia a pena o sultão se instalar aqui. Ele dominava toda a costa do que são hoje Quênia e Tanzânia, e potentados tribais África adentro comerciavam com ele. (Os grandes reinos negros africanos como o Grande Zimbabwe a esta altura já não eram mais. Mas deles falaremos quando eu for lá.)
No século XIX, Zanzibar se tornaria um grande centro produtor e comercial de especiarias — ainda maior que nos tempos dos portugueses. Em 1834, cerca de 90% de todo o cravo-da-índia (que na real é originário da Indonésia) do mundo era produzido aqui.
Não demoraria para o comércio de marfim (osso de elefante) ganhar volume para atender a uma demanda europeia ou norte-americana por objetos pessoais ou bolas de bilhar. O marfim aqui da África Oriental era tido como macio, ideal para ser talhado pelos mestres artesãos indianos e depois comprados pelos ocidentais.
Com ele, cresceu o comércio de gentes. Sim, havia escravidão aqui, e ela adentrou pelo século XX. Ao contrário do que se repete por aí, o Brasil não foi nem de longe o último país do mundo a aboli-la.



Sabemos que não eram somente homens, mas também mulheres que eram comerciadas.

Não adianta, é claro, culpar exclusivamente os árabes ou muçulmanos quando sabemos que do outro lado da África — no Atlântico — os europeus cristãos faziam do mesmo só que em maior volume. Culpe-se a falta de humanidade.
Conforme se extinguiam os elefantes na costa da África Oriental, os mercadores de Zanzibar penetravam cada vez ao interior. Nos idos de 1850-1880, controlavam as rotas de comércio até o interior do Congo.
Foi aí que ganhou destaque o zanzibári Hamad bin Muhammad bin Juma, mais conhecido pelo apelido de Tippu Tip — dizem que, segundo os nativos do interior, pelo som dos seus arcabuzes — e descrito pelo explorador e jornalista francês Élisée Trivier em 1889 como “mestre da África Central, sultão, banqueiro, mercador, negociante, apanhador de marfim e comprador de homens“.
Tippu Tip não era sultão, mas trabalhava para o Sultão de Zanzibar — que, numa destas brigas intestinas de família, separou-se de Omã e estabeleceu um sultanato semi-independente.

Quando chegaram os idos de 1880, foi a vez das potências europeias tomarem o lugar dos islâmicos na opressão aos africanos — e aumentarem a escala da dominação.
O controle do Sultão de Zanzibar sobre o interior era limitado, apenas através de rotas comerciais e mercadores viajantes como Tippu Tip. Não havia um ensejo administrativo como os europeus pretendiam fazer. Os alemães, assim, aproximaram-se dos chefes tribais e sabidamente obtiveram “assinaturas” de cessão de posse aos germânicos.

Como já mostrei antes, a vida aqui na atual Tanzânia não melhorou para os africanos. Aqueles acertos, no entanto, foram o bastante para o kaiser germânico e seu chanceler Bismarck ameaçarem o sultão com sua esquadra superior. Tomaram as terras na marra.
Para evitar que a ilha de Zanzibar diretamente também fosse tomada, os britânicos — que não queriam uma Alemanha poderosa — precisaram intervir e fazer de Zanzibar um protetorado seu. Houve um desconforto dos árabes, mas também um alívio já que a tecnologia militar europeia era claramente superior.
Um fato curioso é que, quando esse sultão morreu, seu sucessor se recusou ao vexame de ser tutelado pelos britânicos e lhes declarou a guerra mais curta já registrada na História: 45 minutos foi o tempo que levaram para se render aos canhões do Reino Unido, em 27 de agosto de 1896.
Perpetuaria-se o sultão sob a tutela britânica até a independência em 1963. Inclusive, em 1946 nasceu aqui um inglês que pouca gente no Brasil sabe que foi nascido em Zanzibar.
A escravidão permaneceria legalizada até 1897, e seguiria de forma encoberta por mais tantas décadas.



Como o mundo é pequeno.
Eu gostaria muito que os brasileiros empatizassem com este outro lado da África, e percebessem que nem somos a última bolacha do pacote nem o fim do mundo. Gostamos de superlativos, por alguma razão. Nós brasileiros gostamos de achar que ou o Brasil é o melhor país do mundo ou é o pior — muitas vezes sem percebermos que, longe de sermos filhos únicos, temos muitos “irmãos” mundo afora.
Eu vou ainda falar mais e melhor das minhas andanças pelas ruas da Cidade de Pedra. Por ora, encerro este post mostrando algumas das especiarias que fizeram fortunas e desgraças em Zanzibar. Elas, claro, nenhuma culpa têm de nada. O homem lobo do homem é quem tem por responder.

Hoje, glória a Deus, o trabalho não é mais escravo. Há tanto empresas quanto cooperativas, e a produção de especiarias de alta qualidade segue sendo setor importante da economia de Zanzibar. Você pode facilmente fazer um tour de uma manhã ou uma tarde para visitar uma destas plantações diversas de agro-turismo. (Nós éramos três e pagamos 20.000 xelins por pessoa, tudo dentro incluso o transporte, mas sem almoço.)




No post seguinte eu revelo melhor o dia-dia das minhas andanças pelas ruas e becos da Cidade de Pedra, sob sol e na lama da chuva, e me amigando dos matutos de rua de Zanzibar.

Parabéns
Linda orla. Belas palmeiras, histórias tristes de dominação , maus tratos e de desumanidade, não muito longe do que aconteceu no Brasil. Tem razão, meu jovem amigo viajante: há muito de semelhante e quiçá pior , ou menos pior do que ocorreu no Brasil . Pelo visto estamos em situação semelhante àquela de muitos irmãos nesse mundo de meu Deus como diziam os antigos. E pelo visto há novas formas de escravidão hoje em dia.
A despeito da história a natureza segue bela resistindo e mostrando a sua pujança. Bela África!.. Que resiste bravamente à historia de exploração a que foi submetida, e que com certeza se afirmará no porvir.
Linda viagem, belas manifestações culturais, preciosos recursos naturais. Maravilhosas as portas, a fragrância da madeira do Oriente, suas belas construções e seu legado cultural. Uma região excitante e bela. Parabéns pela postagem. Valeu, viajante. Que venham mais belezas