Dar es Salaam, a “Morada da Paz”, do mesmo salaam do cumprimento árabe salaam aleikum ou do parente shalom em hebraico.
Estamos numa cidade de mercadores árabes do século XIX fundada pelo Sultão Majid bin Said, de Zanzibar. Naqueles idos de 1865-1866, o comércio de escravos, marfim e outros produtos do interior do continente estava em alta, rumo a mercados na Índia, na Europa ou na América do Norte.
Como comentei anteriormente no meu post sobre a História de Zanzibar, marfim era imensamente usado para fabricar pentes na Europa ou bolas de bilhar nos Estados Unidos. Os escravos, por sua vez, eram muito usados nas plantações de cravo-da-índia, cuja metade de toda a produção mundial nesse período vinha de Zanzibar.
Dar es Salaam viria depois a ser apanhada pelos alemães, a partir de 1887, quando funda-se a Companhia Alemã da África Oriental — um pouco nos moldes da já próspera Companhia das Índias Orientais britânica. Não ouvimos falar muito da presença colonial alemã na África porque o país perdeu os territórios em 1918 com sua derrota na Primeira Guerra Mundial, mas os germânicos tiveram uma presença aqui fortíssima — e tão violenta e exploradora quanto a dos demais europeus.
Embora seja a maior cidade do país, Dar es Salaam não é (mais) a capital da Tanzânia. Esta seria Dodoma, no interior do país. O Brasil não foi o único a transferir sua capital para um lugar mais central. Porém, só o atual presidente, John Magufuli (2015—), é que resolveu finalmente transferir as instituições de governo aqui de Dar es Salaam para lá.
Estamos numa cidade de cerca de 8 milhões de habitantes, dos 56 milhões da Tanzânia. Ela seria a minha parada final no país, a última estação nesta jornada que já havia me levado desde os safáris no norte aos mares do oriente — e foi pelos mares que eu cheguei.

PRÓLOGO: No ferry de Zanzibar para Dar es Salaam
Antes de deixar a Cidade de Pedra, em Zanzibar, eu comprei as minhas passagens de ferry no dia anterior. Embora o porto seja uma muvuca de marca maior, a loja de venda de bilhetes é até organizada.
Compre-os direto com a Azam Ferries — Kilimanjaro, mas o site aí é meramente indicativo, pois é preciso comprar as passagens pessoalmente, apresentando o passaporte. Há um guichê especial para não-residentes, e a tarifa é diferenciada.
Custa USD 35 na classe econômica, mas o engraçadinho pode dizer EUR 35 e aceitar de bom grado se você lhe der euros. Deve ter me achado com cara de mediterrâneo. Você pode pode pagar em xelins se quiser, mas vale a mais a pena pagar direto em dólares, do contrário lhe será usada uma cotação desvantajosa.
Recomendo comprar um ou dois dias antes da viagem, e por favor vá ao escritório correto. Há varias agências informais fingindo ser a oficial, inclusive bem ao lado dessa.



O lugar, por dentro, parece uma rodoviária suburbana, equipada com assentos plásticos coloridos daqueles de ônibus comum.

Eu ali me sentei, tentando não chamar muito a atenção. O lugar não é ameaçador, mas a ideia de que você como turista não-negro atrai todos os olhares é pouco interessante.
Ao que tirei umas fotos, um rapaz ao meu lado pediu para ver minha câmera. Não deixei, ao que ele ficou um pouco sentido, mas não deu problema. Cria, no entanto, uma certa exposição.
Meia-hora antes da partida, começa o embarque. Um funcionário azedo governava a coisa, evitando que as pessoas se amontoassem demais. Embora estivéssemos aqui em plena pandemia, não havia qualquer medida de distanciamento social nem máscaras.
Como tudo aqui é na base da treta — muito mais que no Brasil — um outro funcionário logo me intimou perguntando em qual classe eu viajaria. Ao ouvir “econômica“, sua resposta foi um decidido “Venha comigo.”
Era nada mais que um convite para ir à classe VIP ou Royal, mesmo tendo pago tarifa econômica, e dar-lhe uma propina como agrado. É dito como se você precisasse. Você que bobeie. Eu resisti, e ele desistiu.


A classe econômica é confortável o bastante. Dentro, tem assento pra todos, e mais alguns do lado de fora. Passa filme, e balança bastante. Se você mareia fácil, se prepare.
Fui para fora, para tomar vento, e lá não demorei a ter a auspiciosa visão do funcionário distribuindo gratuitamente daquelas sacolas de papel que vende ao cento, para quem achasse que ia precisar.
Tive medo por quem ia ao lado, ja que ventava bastante e eu certamente tomaria mais que uns salpicos de vômito alheio na cara. Nem era por corona, mas pelo resto.


Dar es Salaam é uma cidade geralmente preterida pelos turistas, exceto um pouco como ponto de chegada ou saída do país. Isso não é fundamental, já que se pode voar direto ao Aeroporto de Kilimanjaro mais ao norte do país, mas uns poucos como eu vêm aqui.
Vale a pena? Pouco. Duas noites aqui são mais que o suficiente. Dar es Salaam faz bem mais o estilo de cidade de negócios que de cidade turística. Seu centro lembra muito o Brasil: uma certa muvuca, ambulantes e motoristas pouco educados, mas com calçadas em algumas das ruas e um bem arborizado centro.
A maioria dos passeios turísticos aqui consistem em day tours a ilhas próximas, coisas a quem veio à Tanzania sem ir propriamente aos demais lugares do pais. Aqui, as pessoas na rua nem mesmo o incomodam; só mesmo um ou outro taxista que se oferece — além de, é claro, pessoas nos arredores do porto.



Era um começo de tarde, o dia fresquinho de uma cidade brasileira numa estação amena do ano, quando eu fui parar no City Square Restaurant ainda com mochila e tudo.
Eu buscava o meu hotel, cuja localização o aplicativo não indicava corretamente. Ocorre por aqui. Mais uma vez, eu tive que recorrer ao método analógico de perguntar a alguém onde ele ficava.
De quebra, eu ali mesmo comi. Atendeu-me Jackie, a garçonete mais simpática do ano. (Deem-lhe um abraço meu se vierem aqui depois de mim.) Ela me acompanhou ao bufê para mostrar a tamanha variedade de comidas, desde carne assada a peixes no leite de coco, arroz temperado, folhas cozidas, etc.
Assemelhava-se àquela dinâmica de restaurante de centro de cidade brasileira, onde almoçam as pessoas que trabalham por perto — as diferenças sendo que, aqui, você paga por item, não por peso, e o horário de pico curiosamente é às 14h.
Peguei uma maravilhosa peixada (geralmente, tilápia) no leite de coco com quiabos, jilós etc. Foi mais saborosa que muitas que eu já comi por aí. Ainda que pouco ou nada se conheça das comidas africanas fora, eles aqui sabem cozinhar, e bem.
(Se você gostar, pode pedir a pimenta que eles trazem. Como na Bahia — e diferentemente da Ásia ou do México — os pratos não já vêm apimentados.)

Só para completar a dica, você aqui almoça por meros 15.000-20.000 xelins (R$ 35-45) incluindo a bebida. Há sucos maravilhosos.
(Uma curiosidade foi como, da segunda vez que eu fui ali e me atendeu uma outra garçonete, atrapalhada, ela me aparece de repente para mudar meu suco já metade bebido para um outro copo porque, aparentemente, o gerente alertou que ela havia me servido suco no copo de milkshake. Eu fiquei ali meio de cara com ela do nada agarrando meu resto de suco pra trocar de copo. Coisas do mundo.)
Achei o hotel, despedindo-me dos sorrisos de Jackie, e lá do alto da minha janela eu me via diante do Oceano Índico. Lá adiante eu imaginava a Índia e as antigas “ilhas das especiarias”, a Indonésia. Atrás de mim, o interior da Africa com suas florestas e rios. Era uma sensação interessante.

Como tantos negócios aqui, esta rede de hotéis era de donos indianos — ou indo-tanzanianos, como às vezes os chamam quando já estão aqui há várias gerações.
Nas ruas, via-se a pé a população mais carente. Eu logo sairia para dar minhas voltas. Pelo centro da cidade, achei a intensidade da muvuca um pouco menor que no Brasil — e tive a sobriedade de constatar que até a pobre Tanzânia é mais segura que o meu país.
Barracas de churrasquinho, frutas inteiras ou cortadas à venda, sapateiros mil, ambulantes das mais diversas sortes, e mulheres com bacias plásticas de frutas na cabeça a passar.
Por outro lado, vê-se talvez uma precariedade maior. Logo na minha rua havia roupas — calças compridas, paletós, camisas sociais — penduradas em cabides nos gradeados das casas, à venda.

Barracas de churrasquinho, frutas inteiras ou cortadas à venda, sapateiros mil, ambulantes das mais diversas sortes, e mulheres com bacias plásticas de frutas na cabeça a passar.
Carros passam dirigindo como querem (eles são o principal risco). Não achei muito diferente dos centros de cidade de médio ou grande porte no Brasil, com seus restaurantes de esquina, supermercados aqui e ali, etc.





O que há, afinal, para ver aqui? Dar es Salaam é, em ampla medida, uma cidade “normal” como algumas do Brasil, das mais novas sem grandes apelos históricos. Como comentei, esta é uma cidade relativamente jovem, do século XIX.
Porém, você pode se distrair no bom Museu Nacional e, se for do seu feitio, passar por algumas das igrejas no centro de Dar es Salaam. (As mesquitas tendem a ser de acesso mais restrito, caso você não seja muçulmano.)
O museu em 2020 custava 12.000 xelins tanzanianos (aprox. USD 5), e eu diria que é a atração mais interessante que há na cidade. Planeje 1-2h de visita.
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- Fala de pinturas rupestres e de evolução humana, de fósseis importantes descobertos aqui na Tanzânia, numa parte arqueológica.
- Tem uma ótima parte histórica, com estas terras desde a Idade Média — e algo mais abrangente que aquilo que se aprende nos museus de Zanzibar, que é basicamente século XIX até a revolução republicana de 1964.
- Trata sobre movimentos africanistas do século XX, da descolonização geral da África, e especialmente da importância do primeiro presidente tanzaniano Julius Nyerere — que hoje dá nome ao aeroporto de Dar es Salaam — ajudando Moçambique e outros que só obteriam a independência após 1970.
Há uma boa lojinha no museu, embora eu não tenha visto cafeteria.
Passei um bom tempo circulando por ele e aprendendo o que nem a escola nem a mídia comercial haviam me ensinado.








Eu aí passei um bom tempo, vendo o museu e também lembrancinhas que eu já havia comprado mais baratas em Arusha.
Foi quando retornei para almoçar no City Square Restaurant e, em seguida, fazer meu périplo de igrejas pela cidade para ver algo mais histórico.


Ao que entrei, fazia um calor úmido de meado de dia em Dar es Salaam. A tranquilidade e sossego do interior da igreja era um momento também de pausar a muvuca da rua. Ao meu lado, um homem ajoelhado de costas para o altar, por cima do banco, orava consigo mesmo. Eu o via curioso.
À saída, uma mulher se chacoalhava com o terço. Sua cabeça subia e descia como se tivesse uma convulsão. Não compreendi o mistério. Toquei caminho, visitei a rósea Igreja Anglicana — estabelecida aqui pelos britânicos, que sucederam aos germânicos na colonização da Tanzânia — e a catedral católica.




Eu, dali, via pessoas entrando e saindo, e ao voltar para o hotel por um outro caminho passei por partes mais decrépitas do centro. Para não dizer que não falei das mesquitas, vi uma em meio a prédios sujos e velhos de Dar es Salaam — com cara daqueles edifícios mal-cuidados que por vezes se encontram nas cidades brasileiras.
Avistei um ambulante vendedor de bagos de jaca em copos plásticos, o que foi ouro para os meus olhos, e comprei-lhe uns para matar a saudade.
Era hora de encerrar o meu dia, porque Dar es Salaam é como as metrópoles brasileiras também nisto: acabou a luz solar, o local se torna perigoso. Melhor evitar as ruas do centro à noite, que ficam mais desertas que o Kalahari.
No dia seguinte, já era dia de eu finalmente partir após semanas de experiências fabulosas aqui na Tanzânia. Não antes, porém, de reencontrar uma tanzaniana amiga minha de longa data. Tomaríamos um café de reencontro pouco antes de eu seguir ao Aeroporto Julius Nyerere.


Rever Lílian depois de 11 anos foi mágico, ela que foi minha quase-vizinha num passado meio distante em Amsterdã. Lembro-me da moça tanzaniana jovial de cabelos compridos que agora era mãe de alguns filhos e vestia-se como advogada que era. (Ela não sabia, mas era também meu contato caso as autoridades tanzanianas inventassem qualquer problema no aeroporto.)
Fomos comer uns bolinhos fritos de massa de arroz e tomar um café — ao que tomei a sincera resposta dos por vezes atrapalhados estabelecimentos africanos,
“O café ainda tem que ferver a água. Vocês não querem chá?“
No aeroporto, depois, um outro me teria o desplante de servir um café espresso gélido, que tive que devolver e pedir outro. Aí vão todos à máquina ver o que ocorreu de errado. Os vendedores às vezes parecem alunos em estande de feira de ciências.
Mas enfim, estes são ritmos e modas de outros lugares, e eu, afinal, havia vindo aqui para ver e conhecer a África. Comecei a conhecer.


Epílogo: Asante sana, Tanzânia
Paguei USD 20 pelo traslado ao Aeroporto Julius Nyerere. Era hora de deixar a Tanzânia com o meu “muito obrigado” — asante sana na língua swahili, ao que você se acostuma a ouvir o karíbu (bem-vindo!) como resposta na rua. Os tanzanianos são um povo que gosta de usar as palavras swahili mesmo em conversas em inglês, e assim facilmente você sempre pega algo.
Em temos de Covid-19, era preciso primeiro passar num guichê especial do aeroporto onde se provava que se podia entrar no país de destino. O cidadão examinou a minha carteira de residente na Suécia como se eu estivesse lhe vendendo um diamante que ele precisasse olhar muito bem antes de comprar. Ao fim, se convenceu.
Segui, vi KFC e Pizza Hut fechados, aparentemente devido à pandemia, e outros espaços ainda por abrir no que é um terminal bastante novo no aeroporto da capital — portanto desconsidere críticas ao aeroporto se forem relatos mais antigos que 2019.


Neste outro lado do embarque, nada mais havia que uma vendinha de café — o que me trouxe o café gelado — além de refrigerante, cerveja, batata Pringles e alguns lanches rápidos tipo samosas. Aventure-se em croissant por sua própria conta e risco nestas terras.
O passeio chegava ao seu final, eu muito satisfeito por ter conseguido vir mesmo com os obstáculos durante esta pandemia. Acho que os tanzanianos gostaram também. Deu-me a injeção de alegria de que eu precisava. Passado tudo isto, pretendo ainda retornar à África muitas vezes. Segue muito ainda por conhecer. Valeu, Tanzânia.
Que maravilha de viagem, meu jovem amigo. Que lugares aprazíveis, que instigante e rica cultura, que país maravilhoso, paisagens magnificas, animais preciosos, um mar de um azul intenso, montanhas suaves de de um colorido surreal, um Kilimandjaro majestoso e imponente. Um paraíso na terra. Belíssima viagem.
Essa foto de abertura da chegada a Dar es Salaam é belíssima. Magnifico esses tons de azul da água do Índico e do céu. Belíssima foto.
Curiosas essas andanças e esses encontros. Costumeiros nas andanças do senhor, hahaha.
lindas essas diversas igrejas. Cada uma com suas características mas todas muito bonitas e de muito bom gosto. Gostei muito. eessa luterana bege é fofinha. delicada e elegante. Belos interiores.
E que museu interessante e revelador das passagens históricas não contadas nem suspeitadas. Esse senhor presidente da Tanzânia na época da independência de Moçambique aparecia nos jornais da TV e nas revistas da época.
Curiosas e eficientes essas rotas de navegação antigas.
E que banzé na cidade. Parece as cidades brasileiras do N NE, sobretudo em dias de feiras. Coitado do povo com essa falta de infraestrutura, de oportunidade de emprego e renda. Enfim, a desigualdade econômica, educacional, de oportunidade e social está presente em vários países, inclusive no Brasil . Lamentável.
Simpática, sua amiga.
Esses bolinhos de arroz e aquela Tilápia parece que estavam apetitosos, inclusive a jaca hahaha. Aqui no NE do Brasil há algo parecido com o bolinho de arroz, só que feito com tapioca e se chama bolinho de estudante. Bem saboroso.
Foi mesmo uma bela viagem, graças à garra do jovem viajante que a empreendeu apesar da pandemia.
Valeu, jovem viajante. Adorei conhecer a Tanzânia através do seu blog.
Até a próxima.