“Nós somos um país protestante, que celebra uma festa pagã, com o nome de uma santa católica“, sintetizou certa vez a sueca com quem eu morava.
Lucia (sem acento, e pronunciado lucia), no entanto, é um inegável elemento cultural da Suécia de hoje. Todo 13 de dezembro, dia da santa, locais de trabalho realizam uma merenda com biscoitos de especiarias, vinho quente doce com amêndoas (glögg), e os pãezinhos de Santa Luzia (luciabulle), com açafrão.
À noite, há concertos em igrejas aonde vão até os ateus apreciar corais entoarem melodias natalinas e a versão sueca da clássica canção napolitana Santa Lucia. Moças e rapazes em manto branco, portando cada um uma vela, e uma moça representando Santa Luzia a guiar a procissão com uma coroa de velas em chamas na cabeça.
O anúncio abaixo não me deixa mentir.
“Como é isso? Por que?“, pode me indagar você. De fato, é inesperado, visto o quão secularizados e pouco religiosos são os suecos — além do fato de Santa Luzia ter sido de Siracusa, na Itália, e nunca ter posto os pés nem os olhos aqui.
A primeira vez que ouvi falar da celebração sueca, ou da inusitada atenção deles com essa santa, foi exatamente quando eu estava para visitar a acima-referida cidade italiana, que fica na Sicília. Uma (outra) amiga sueca com quem eu me encontrei na véspera da viagem levantou o fato de que Siracusa era a terra de Santa Luzia (eu nem sabia). Ela não sendo lá muito religiosa, achei aquele conhecimento peculiar.
Depois de 1500 anos já havia 12 dias de adiantamento. O dia mais curto do ano no hemisfério norte já não era 25 de dezembro, mas 13.

A explicação é histórica, embora até mesmo muitos suecos a desconheçam (e fiquem de saco cheio se você lhes questionar demais por que é que eles celebram uma santa italiana).
Como eu expliquei quando fui à cidade de Nicolau Copérnico na Polônia, o calendário que vigorava no Ocidente até o século XVI era o Calendário Juliano, decretado por Júlio César com base em cálculos de astrônomos gregos.
Aquele calendário trazia anos bissextos a cada três anos em vez de quatro. Isso resultava numa imprecisão, e os inícios do verão e do inverno foram gradualmente se adiantando, ao ponto em que depois de 1500 anos já havia 12 dias de adiantamento. O dia mais curto do ano no hemisfério norte já não era 25 de dezembro, mas 13.
Num outro post sobre o Natal eu falei sobre como a festa cristã foi posta nessa data para que fosse prontamente acomodada pelas populações pagãs da Europa, que já celebravam fenômenos da natureza, sobretudo as mudanças de estação. (Ninguém sabe ao certo a data em que Jesus nasceu.)
Quando de repente o 25 de dezembro já não coincidia mais com o dia mais curto do ano, precisava-se arrumar uma outra razão católica para os festejos populares do solstício de inverno. No México, entre os indígenas, concebeu-se a Nossa Senhora de Guadalupe, celebrada dia 12 de dezembro. Na Europa medieval, achou-se o Dia de Santa Luzia (13).

Luzia (Lucia em latim) de Siracusa, na Sicília, foi das primeiras mártires do cristianismo, executada no ano 304 aos tenros 21 anos de idade por sua fé ainda proibida no Império Romano.
Como o seu nome vem de “luz”, ela foi prontamente relacionada aos olhos.
Segundo a crença, ela foi sentenciada para ser queimada viva na estaca, nos moldes que a Inquisição depois retribuiria aos não-cristãos na espiral de violência sobre a qual Jesus alertara.
Por milagre divino, a madeira teria se recusado a queimar — não deixando outra alternativa que não a espada aos seus executores. Durante a Idade Média, adicionou-se o detalhe macabro de que os seus olhos teriam sido arrancados antes da execução.
Como o seu nome vem de “luz” (lux em latim, daí Lucius e Lucia), ela foi prontamente relacionada aos olhos — e daí talvez a adição medieval à sua história.
Não demorou a ser vista, portanto, como “aquela que traz a luz”. Passado o solstício de inverno com o dia mais curto do ano (dia 12 no Calendário Juliano), vem o dia que finalmente começa a ser mais longo que o anterior, o gradual retorno da luz (solar). Celebremos, portanto, Santa Luzia no dia 13.
As suecas se vestem de branco para representar a luz no escuro, num robe com uma fita vermelha da cor do sangue do martírio, e a moça principal a representar Santa Luzia com uma coroa de velas na cabeça a simbolizar as chamas que não a consumiram.

As pessoas que nunca experimentaram um lugar de dias curtos não sabem o que é a loucura de passar meses a fio na escuridão, os dias a pouco durar entre as 9 da manhã e as 14h — e, ainda assim, dias frequentemente nublados. Noticiou-se em dezembro de 2020 que Estocolmo e outras cidades suecas ainda não haviam registrado sequer uma única hora de luz do sol no mês. Glup.
É um período que, hoje em dia, só se tolera com muitas iluminações natalinas às janelas de todos, interiores acalentados, e vida social moderna tão ativa quanto possível. Ainda assim, como diz uma amiga minha estrangeira que também vive em Estocolmo como eu, “Você se sente como se estivesse num sonho“, sem as conotações necessariamente positivas dessa palavra em português. Não parece que é o mundo real, mas um produto da sua mente.




É nessa tônica que entram os festejos de Santa Luzia na Suécia.


Eu até agora vi duas celebrações de Lucia na Suécia. Você pode assistir a quantas quiser num mesmo ano, pois elas normalmente não se atêm ao próprio dia 13, mas a todo o fim de semana nas vizinhanças da data.
Várias igrejas promovem espetáculos de 1h aonde você vai assistir a um coral juvenil paramentado à ocasião, com a procissão dentro da igreja e tudo. Além disso, o simpático Parque Skansen em Estocolmo também tem sua própria agenda com várias apresentações cujo preço está incluso na entrada do parque.
Quando eu fui a Skansen ver essa apresentação de Lucia, estava um destes dias chuvosos, cinzentos e melados dos dezembros suecos agora afetados pela mudança climática. Não mais o início do inverno com sua neve, sol e céus limpos, mas aparentemente uma continuação do outono novembral com dias ainda mais curtos.
O parque, apesar do seu movimento, lembrava-me algum cenário macabro de A Branca de Neve ou algum outro conto. Aí você entende de onde os europeus tiraram inspiração para os seus contos de bruxas e feitiços na floresta.


Nesse dia, a chuva fraca porém constante formava poças no chão. No chão de terra fora dos caminhos, alagados entre as árvores secas formavam pântanos onde a luz do dia só irradiava por poucas horas. Era o breve respirar de luminosidade entre uma longa noite e outra.
O jeito é se acalentar no conforto dos ambientes internos e das comidas, quando não das boas companhias.
Tradicionalmente, os europeus — mesmo os mais pobres — guardavam o que tinham de melhor e mais caro para esta época decembral, com Santa Luzia e o Natal a celebrar. É por isso que comem especiarias trazidas de longe (coisas com cravo, canela, laranja) e pães amanteigados.




A garota chega com sua coroa de velas, e aos poucos a luzes de cada um se acendem. Faz-se uma breve procissão dentro da igreja e, em seguida, entoam-se cantos natalinos ou próprios deste dia. O principal hino é a canção napolitana Santa Lucia, gravada pela primeira vez no século XIX mas certamente mais antiga.
Você vê uma breve palhinha dela no vídeo mais abaixo.
Se você acontecer de estar em Estocolmo ou alguma cidade sueca de porte nesta época, não perca a oportunidade de assistir a uma dessas cerimônias. Sempre se vende online. Você pode averiguar o programa e seus horários no site turístico oficial da cidade ou no específico do Parque Skansen.
Para esse último não é necessário reservar, basta chegar e pegar a fila para garantir os lugares mais próximos. Já para os espetáculos nas igrejas, é como ir ao teatro, então reserve com algumas semanas de antecedência para assegurar os melhores lugares.




FENOMENAL A ESTO’RIA DA SUECIA !!! BELO APANHADO DE PESSOAS E LUGARES FAMOSOS DA SUE’CI A !!! PARABENS PELA MATE’RIA !!!