Eu não sei o que há no ar, mas sempre consigo determinar que estou na antiga Alemanha Oriental. Não sei se os prédios — uma mistura de construções históricas antigas e edifícios algo pálidos e sem-vida do tempo comunista. Ou talvez o comportamento dos alemães daqui, ligeiramente mais arredios e xenófobos (sobretudo as gerações mais velhas, que cresceram antes da União Europeia). São coisas que se sentem no ar, nas vistas, nos olhares.
Dresden, às margens do Rio Elba, é a metrópole mais a oriente que a Alemanha hoje tem. A meros 50 Km da fronteira com a Tchéquia e um pulo até Praga; ou 100 Km até a Polônia e pertinho de Breslávia (Wroclaw). Ela por séculos foi a capital da Saxônia, uma das mais emblemáticas regiões germânicas e que gozou de independência antes da Unificação Alemã (1871).



Dresden, curiosamente, é uma cidade cujo nome é originalmente eslavo: Drežďany, que significava “habitantes das florestas baixas”.
Isso porque aqui pertinho, formando a fronteira hoje entre Alemanha e Tchéquia, estão os Montes Lusácios, parte da cadeia dos chamados Sudetos.
Foi somente após o ano 1000 com a expansão dos germânicos ao oriente — levando o cristianismo ao Leste Europeu e conquistando terras — que esta região passaria às mãos de príncipes alemães.
Estabeleceria-se aqui a Saxônia, uma coroa que variaria entre períodos de autonomia e semi-autonomia por quase todo o segundo milênio.
Vamos conhecê-la.

Era já perto do Natal quando eu cheguei de trem. Dresden possui múltiplas estações ferroviárias, e você vem fácil desde Berlim (2h de viagem) ou de qualquer lugar da Alemanha, assim como também de Praga.
Porém, note que — ao contrário do habitual — a estação principal (Dresden Hauptbahnhof, abreviada Dresden Hbf) não fica nas adjacências do centro histórico. A depender da sua acomodação, chegar por Dresden Neustadt pode vir ser melhor negócio. A opção mais central de todas é a pequena estação Dresden Mitte. Para ir até nesta, normalmente se desembarca numa das outras duas acima e toma-se um trem regional ou metrô. Ao comprar sua passagem principal, pode-se já incluir no custo um bilhete de metrô (S-Bahn) ou trem regional (RegioBahn, abreviado RB) para esse fim.
Eu optei por descer na própria Dresden Neustadt e seguir a pé, vendo um pouco da Dresden moderna no caminho até o hotel.

Perdoem-me a franqueza, mas acho as partes modernas de Dresden algo sem alma. Breve, por sorte, o seu centro histórico de outras épocas me alegraria.
Adentrar o centro histórico de Dresden é sair do século XX e entrar no XIX, às vezes retornando também ao XVIII. Os concretos e formas pobres do modernismo pré-comunismo ou comunistas igualmente feios dão lugar à soberbia das construções barrocas do período imperial. A meu ver, não há sequer comparação.


“Saxônia” é aquele termo que muita gente identifica, embora sem precisar onde fica.
É um termo antigo cuja identificação, na verdade, mudou de lugar ao longo do tempo. Os saxões, um dos povos germânicos que enfrentaram o Império Romano, viveram na Antiguidade entre o atual noroeste da Alemanha e o que viria a se tornar a Inglaterra.
Com o tempo, porém, esse nome seria associado a diversos pedaços de terra no curso do Rio Elba. Desde aqui, Dresden, até Hamburgo e mais além, até o mar.

Hoje em dia, três dos 16 estados da federação alemã carregam o nome: Saxônia, Saxônia-Anhalt, e Baixa-Saxônia. Dresden é a capital do primeiro.
O nome romano de Saxonia (para designar “terra dos saxões”) ganharia associação a um governo organizado na Idade Média com o Ducado da Saxônia. No século VIII, Carlos Magno o integraria ao seu império carolíngio para breve fundar o Sacro-Império Romano Germânico no ano 800. Aquele ducado ficava nas vizinhanças de onde hoje é a cidade de Hamburgo.

Com a marcha do sacro-império para oriente conquistado os eslavos, os germânicos tomariam Drežďany. Ali, sediariam mais tarde o Eleitorado da Saxônia. Este nome talvez lhes soe estranho, mas é que muito antes de “eleitorado” ganhar sua conotação contemporânea, ele significava outra coisa.
A Bula Dourada de 1356, um édito assinado pelo sacro-imperador, estabeleceu que os próximos imperadores eleitos por voto. Não da plebe, mas pelo voto de sete nobres específicos (os arcebispos de Mainz, Trier e Colônia, o Rei da Boêmia, o Duque da Saxônia, e o Marquês de Brandemburgo). Portanto, no oceano de pequenos feudos desta Europa Central na Idade Média, o título mais poderoso era o de eleitor.
Acabou-se o Ducado da Saxônia e estabeleceu-se então, com ainda maior prestígio, o Eleitorado da Saxônia no século XIV. No século XV, uma nova dinastia de governantes traria a capital desse eleitorado para Dresden, que em tempo viria a se tornar uma rica cidade.
Você hoje pode sentir um pouco isso ao visitar o chamado Residenzschloss, o histórico Palácio Residencial dos monarcas saxões na era barroca.



Eu visitei esse palácio e fiquei impressionado com a riqueza das peças ali expostas.
Muito ou quase tudo nele é sobre Augusto II, o Forte (1670-1733), talvez o mais notável dos monarcas saxões. Ele foi Eleitor da Saxônia e, ao mesmo tempo, tornou-se também rei da vizinha Polônia. Foi um grande patrono das artes, e preparou o terreno para fazer deste museu a maior coleção de tesouros de toda a Europa segundo algumas fontes.



Se Dresden tem a maior coleção de tesouros da Europa, ela recentemente adquiriu um outro (desafortunado) recorde: o do mais valioso assalto da História. Em 25 de novembro de 2019, de uma só vez, ladrões roubaram daqui joias num valor total estimado em 1 bilhão de euros (!)
Isso ficava no histórico Cofre Verde (Green Vault, ou Grünes Gewölbe), que recebe esse nome pelas colunas de pedra que o decoram. Fotos no seu interior não são permitidas, mas ele é um esplendor que eu conheci da primeira vez que vim a Dresden mais de dez anos atrás.


Verde também é o seu tesouro mais famoso, um enorme diamante verde de 41 quilates, de origem indiana e obtida por Augusto III de um mercador holandês no século XVIII.
Ele escapou do assalto de 2019 porque, à época, estava emprestado ao Museu Metropolitano de Arte de Nova York. (Ufa. A coisa toda fez-me lembrar do filme A Armadilha, de 1999, com o saudoso Sean Connery e Catherine Zeta-Jones.)
Hoje em dia, há um chamado Novo Cofre Verde (New Green Vault), que faz mais as vezes de um museu normal, com muito da riqueza saxã em exibição.
Planeje ao menos 2h de visita, e se lembre dos combo-tickets possíveis caso planeje visitar mais atrações em Dresden. Você verá as opções ao balcão de informações. Verifique online no site oficial quando for visitar, mas adianto que este complexo normalmente fecha às terças em vez de às segundas como de praxe.





Como se tudo isso não bastasse, em Dresden você também encontra o Zwinger, um outro palácio erigido no princípio do século XVIII por Augusto, o Forte.
O Zwinger é diferente, no sentido de ser um complexo palaciano aberto (de acesso livre e gratuito a partir das 6:30 da manhã) idealizado para festas, bailes, e toda esta coisa da aristocracia da época.






Hoje, o Zwinger abriga uma série de museus aqui, incluindo um bom Museu de Porcelanas feito da extensa coleção de Augusto, o Forte, com peças chinesas e japonesas dos idos de 1700.
Há ainda o pequeno-porém-excelente Museu dos Antigos Mestres (Gemaldegalerie Alte Meister), com pinturas fabulosas de alguns dos maiores nomes da pintura renascentista e barroca europeia, como Murillo, Velásquez, Van Dyck, Vermeer, Veronese, e o original de um dos mais famosos quadros do pintor Rafael Sanzio, a Madonna Sistina. É espetacular.

Fala-se aqui um pouco sobre como porcelanas de alta qualidade chegavam à Europa através das navegações comerciais portuguesas, depois com a Companhia das Índias Orientais holandesa, até que com o colapso da Dinastia Ming em 1644 isso se interrompeu, e os holandeses passaram a tentar compensar trazendo mais do Japão. Há também a produção local de cerâmica alemã oriunda de Meissen — notável, embora de menor qualidade que a oriental.



Os museus no Zwinger ficam geralmente abertos até as 19h, e fecham às segundas. Eles podem ser associados a entradas no Palácio Residencial e seu novo Cofre Verde, o que sai mais barato que comprar vários ingressos individualmente.
As obras e legado do século XVIII saxão são extensos aqui, como você pode perceber. Na luterana Igreja de Nossa Senhora, famosa no seu nome original alemão de Frauenkirche, Johann Sebastian Bach inaugurara o órgão em 1736. Eram tempos de grande pompa e dinheiro para a Europa. A Frauenkirche segue sendo, talvez, o monumento mais bem-quisto de Dresden, um dos seus símbolos.


Todo esse requinte e regalia saxões, no século XIX, finalmente viraria reino independente.
Quando Napoleão invade e, basicamente, desmonta o Sacro-Império Romano Germânico em 1806, estas terras emergem plenamente soberanas como o Reino da Saxônia. Já não havia mais eleitorados. Com a Revolução Francesa, o “eleitorado” passaria aos poucos a ser o povo, ainda que inicialmente o sufrágio não fosse universal.

Tal autonomia saxã, porém, seria curta. Na década de 1860, surgiu um segundo império — um segundo reich, após o sacro-império, e agora chamado de Império Alemão — mobilizado pela Prússia que anexava reinos menores sob a sua égide. Em 1871, criava-se a Alemanha.
Os delírios germânicos de grandeza e hombridade superior que encontravam lugar nas obras de Nieztsche, Wagner, Heidegger e tantos outros a partir do século XIX transformavam-se gradualmente em expansão militar, ambições políticas e, breve, genocídio de outrem.
Dali foi que o Partido Nazista na década de 1930 passou a falar em um Terceiro Reich, seguindo a linhagem dos anteriores, após o segundo império cair em 1918 com sua derrota para os britânicos e franceses na Primeira Guerra Mundial.
Dresden sofreria. Em 13 de fevereiro de 1945, com a guerra já praticamente vencida, a Royal Air Force (RAF) britânica junto com os EUA despejaram 4 mil toneladas de bombas na cidade.
Frauenkirche foi ao chão, como foram também Hamburgo, Berlim, e muitas outras cidades alemãs. A igreja que você vê hoje é um cuidadoso trabalho de reconstrução terminado apenas recentemente, em 2005.

Você, hoje, pode subir ao domo da Frauenkirche por 8 euros numa entrada separada. À igreja propriamente dita a visitação é gratuita, embora em horários reduzidos (detalhes no site oficial).
Lá fui eu, vendo estas terras outrora bombardeadas e subindo ao alto da igreja reconstruída para ver Dresden.


Esta visita se deu logo antes da pandemia. Em 2020, não houve feirinhas de Natal no jeito dos outros anos. Dresden já viu pior, mas a Alemanha inteira torce para que elas retornem em 2021.
Eu circulava ali no aglomerado de pessoas com a habitual dificuldade para não derrubar o glühwein, o vinho quente doce com especiarias. As assadas castanhas-portuguesas na rua faziam a alegria do meu reencontro com as coisas daqui nesta época.




Almocei no Vapiano, uma rede comum de massas Europa afora, vendo um pouco desta Alemanha da década de 2020.
“Nós não damos ketchup”, declarou firme o jovem cozinheiro de fisionomia árabe ao cliente de origem desconhecida e um sotaque que me soou francês. Eu assistia como um inocente transeunte ao que o cliente insistia que queria seu macarrão apenas com ketchup, e apontou para um pote de molho vermelho detrás do balcão: o molho de tomate. O jovem árabe europeu respirou fundo.
Alguns minutos depois, retornou. “Está aqui a sua massa com ketchup”, entregando o macarrão com molho que o tio de cabelos grisalhos levou embora aparentemente satisfeito.
Meu prato viria em seguida (sem ketchup) para um daqueles almoços tardios na Europa, que seriam seguidos de mais visitação e, assim que o estômago permitisse, as guloseimas das feirinhas de Natal.

Se você vier a Dresden numa época concorrida como dezembro e quiser assistir a algum espetáculo de coral ou música sacra, cogite reservar antecipadamente online, pois no dia é difícil achar bons assentos disponíveis.
O mesmo vale para a Ópera, que tem espetáculos de balé e outras artes típicas. Ali há também um tour guiado em inglês todas as tardes (verifique o horário atualizado no site deles ou pessoalmente) e tours em alemão com mais frequência, caso você entenda bem a língua de Goethe.
Volta e meia, há espetáculos gratuitos de Natal também. Ótimo destino onde passar umas três noites.
EPÍLOGO: Só tende paciência com o jeito dos alemães
À entrada da igreja, um funcionário — já um senhor — me declararia “No visits. No visits”, naquele jeito ríspido por demais comum entre os germânicos de meia idade. (Os jovens tendem a ser mais educados.)
Eu respondi que sabia, mas que estava a ver se subiríamos as escadas para ir às galerias superiores ou não. A minha resposta foi em inglês, ao que ele me retrucou algo em alemão e, depois, vendo que eu não compreendia, me soltou um “Nós estamos agora na Alemanha. É o Brexit.” [We are in Germany now. It’s Brexit.]”
Eu tive que rir. Eu me esforço para usar o idioma local sempre que posso, e me viro nos trinta aqui na Alemanha — nas diversas combinações das cerca de 30 palavras que sei no idioma —, mas no que alguém numa igreja no Brasil, ou no Uzbequistão ou em Samoa, teria dificilmente requerido fluência dos visitantes, ou no mínimo o teria feito com educação diante do estrangeiro, eles aqui na Alemanha — como na França — morrem de dor de cotovelo da preeminência do inglês, e parecem nutrir a ilusão de que o alemão virá a ter status de língua franca. Aí eles acordaram do sonho. Eu acabei rindo espontaneamente com a assertiva espirituosa do eclesiástico senhor de “É o Brexit”. Ele não entendeu muito o meu riso.
Há quem de forma provocante chame a União Europeia liderada pela Alemanha de um Quarto Reich. São panos pra manga para uma outra postagem. Só deixo o meu registro como morador da Europa de que a noção de uma preeminência linguística do alemão — com ou sem Brexit — é puro devaneio.
Embora tenha o hábito histórico de não se conformar apenas com ele, a Alemanha tem o seu lugar. A quem quiser assistir, eu deixo vocês com um espetacular concerto de Natal realizado no interior da Frauenkirche — onde se deu este episódio.