Há um livro que estou lendo chamado 1913: O Mundo antes da Grande Guerra, acredito que ainda sem tradução em português. Trata de como pouco se imaginava a crise e devastação que estavam por começar, e como aqueles que podiam seguiam incautos gozando das coisas do mundo.
Aconteci de estar no último Natal de Veneza antes da pandemia. A cidade pululava; turistas chineses em abundância vindo conhecer a famosa cidade ocidental; famílias de indianos que eu via carregando mais malas do que conseguiam transportar por sobre as escadarias de Veneza; brasileiros sendo ouvidos a cada lugar instagramável da cidade; e milhares de outros ocidentais povoando as ruas, ruelas e canais da vetusta Sereníssima do Mar Adriático.

Há de se conversar sobre os efeitos do turismo de massa nas sensíveis cidades históricas como Veneza, mas tampouco acho que a cessação do turismo lhe serviria bem. Os europeus de cidades muito cotadas como Veneza, Amsterdã e Barcelona às vezes se queixam da excessiva locação de moradas como AirBnB e da transformação de zonas outrora residenciais em “parque de diversões” para turistas, mas silenciosamente também reconhecem que suas economias dependem — e muito — do turismo hoje em dia.
Não sei qual será o “novo normal” pós pandemia; acredito que, assim que possível, voltará ao que era. As forças atrativas de Veneza são por demais poderosas para as pessoas do mundo deixarem de vê-la.
Também para quem já estava com saudades dos relatos pela Itália, vamos ao meu último período do Natal em Veneza e o último da cidade antes da pandemia, quando ainda se podia pegar em tudo e em todos sem medos nem paranoias (você ainda lembra?).


Meus relatos são realistas, então não se surpreenda se vir também os lados de Veneza que as revistas de bordo de avião (hoje proibidas) omitem.
A minha chegada foi por Mestre, cuja estação se chama Venezia Mestre mas que é, na prática e historicamente, uma outra cidade. Com sua estação ferroviária algo acabada e zoneada, lembrava-me Feira de Santana e sua rodoviária. Talvez fosse o (gritante) contraste entre a calma eslava introspectiva da Eslovênia, que eu deixara pra trás, e a vida pulsante algo agitada da Itália.
Para me lembrar ainda mais do Brasil, presenciei já nesses 15 minutos iniciais no país uma tentativa de furto. Não comigo, mas de uma adolescente sonsa que, com seu companheiro, tentava sair duma loja de generalidades na estação com lanches não-pagos — ou sabe-se lá o que terá sido. Um tio sério de fisionomia asiática, o segurança, agarrou-lhe pelo casaco com um “Vieni qua!” temperado pelo seu sotaque estrangeiro e tomou a sacola das mãos da moça.
A ladra permaneceu sonsa todo o tempo enquanto o seu companheiro só olhava, ambos com aspecto de italianos de classe média que saíram caminhando “de boa” plataforma ao longe. (Tivesse sido em Feira de Santana, e fosse o meliante negro e pobre, teria tomado umas bordoadas bem ali, ou quem sabe um sufocamento à morte feito Beto Freitas em Porto Alegre. Muito distinto da pose segura da cleptomaníaca italiana e do seu amigo. Fica aí para os políticos europeus que dizem que os imigrantes é que causam problemas.)
Era minha hora de seguir até Venezia Santa Lucia, a estação que fica já na parte histórica de Veneza propriamente dita. Ali a história já é outra, bem mais tranquila nesse sentido — embora nenhum paraíso, e repleta de hordas de turistas desembarcando — e diante de um magnífico canal com a arquitetura clássica de Veneza do outro lado.

Indianos em família com um mundo de malas pareciam ganhar de todo mundo na competição imaginária “quem mais trouxe coisas a Veneza”. Eu ficava num sincero misto de piedade e riso enquanto eles subiam as escadas das pontes por sobre os canais e, depois, as da estação ferroviária. (Evite vir a Veneza com tanta bagagem de arrastar, ou penará assim.)
Eu me ria apiedado daquilo enquanto o sol brilhava e eu contemplava a beleza da arquitetura tradicional italiana. Veneza dá um gozo, e você se sente dentro da História.
Veneza não é uma cidade cuja história eu possa recontar assim tão simplesmente numa postagem. O que posso vos lembrar é que, por mais de um milênio (697-1797), Veneza foi uma república independente — a chamada La Sereníssima, por fazer suas fortunas não pela guerra, mas pelo comércio.
Veneza — dentre muitas outras razões — é fascinante porque seu apogeu precede o Renascimento italiano, então aqui você encontra, talvez melhor que em qualquer outro lugar da Europa, o elo entre o medievo de Bizâncio do Império Romano do Oriente e a Itália renascentista que viria a aparecer.
Você chega à célebre Basílica de São Marcos e encontra, basicamente, uma igreja quase bizantina como as suas contemporâneas em Constantinopla nos idos de 1100-1200.


Veneza é uma perdição, como quem já veio aqui sabe. Antes dos aplicativos, ficávamos reféns das placas de orientação indicando a Basílica de São Marcos para cá e a Ferrovia para lá, com suas flechas a apontar.
O curioso, hoje, é ver os fluxos de pessoas guiadas por seus aplicativos — todos a sugerir rotas idênticas — povoando as mesmas exatas ruas, deixando as outras adjacentes vazias e quietas. Você vê os turistas passando com um olho no celular e outro em Veneza, seguindo fluxos como formiguinhas na trilha.



Eu acordava pela manhã e, diante de mim, a janela dava para um casario veneziano e, ali, uma igreja.
Era um sonho, despertar e ter diante de mim pela janela um cenário italiano daquele de filme. As aves gorjeavam e, às 8h da manhã, badalava o sino. Eu estava instalado no último andar de uma das raras casas altas com elevador aqui.
Às 8am, badalava o sino. A Basílica de São Nicolau em Tolentino (Chiesa da San Nicola Tolentino) brilhava com o nascer do sol, algumas nuvens belamente por trás contra o frio céu azul de dezembro. Nem parecia os dois graus que fazia do lado de fora naquele iluminado inverno. Tão diferente de quando estive aqui da vez anterior, há alguns anos na mesma época, um dezembro enevoado e cinzento de 2013, quando houve até pequenas inundações.
Desta vez era diferente. Veneza me mostrava a sua face mais gentil.


Permitam-me dizer, desde já, que é praticamente impossível tomar pé de quantas igrejas há em Veneza — é quase como Roma. Há uma até a São João Evangelista, tão raramente contemplado. Uma linda igreja com portal de mármore e seu símbolo de uma águia do lado de fora, que mostrarei.
Era hora de caminhar por Veneza, seguir seus meandros e farfalhar com os outros turistas por entre os seus becos, canais cênicos, e atrações inúmeras. (Uma curiosidade de Veneza é que, ao contrário de muitas outras cidades onde hoje em dia você identifica o que quer ver no mapa e vai até lá conferir, aqui são tantas que você nelas esbarra e depois é vai olhar no aplicativo o que é.)
Vindo da direção da ferrovia, a Ponte Rialto (de Rivoaltus originalmente), elaborada ponte por sobre o Grande Canal, com lojas no meio por entre as escadarias, é a primeira grande atração imperdível de Veneza.

Veneza possui esse Grande Canal que serpenteia no interior da cidade e inúmeros canais menores, transversais. Por ali, fizeram-se fortunas nos seus tempos áureos de 1200-1600, até que a descoberta das Américas pelos europeus e o estabelecimento de rotas comerciais pelo redor da África — em vez de através do Mar Vermelho, com os muçulmanos como intermediários e os Venezianos como receptores para os mercados da Europa — lhes destronou.
É por isso que tantos dos navegadores a serviço de Portugal e Espanha eram genoveses, queridos. (Cristóvão Colombo o mais famoso deles, mas longe de ser o único.) Queriam quebrar as pernas da cidade rival, e conseguiram.
Como sempre ocorre, o glamour cultural de algo perdura um pouco mais que a sua prosperidade econômica. Veneza ainda inspiraria obras como O Mercador de Veneza (1605), de William Shakespeare, ou Morte em Veneza (1912), de Thomas Mann, duas obras recomendadas para se ter uma sensação da cidade às respectivas épocas.
No caso de Veneza, contudo, ela é tão especial e diferente que sempre se reinventa — e, acho eu, jamais perderá a sua aura. (Ao menos enquanto a mudança climática global e elevação dos oceanos a mantiverem acima da água.) Ela se reinventou como destino romântico e agora luta por atrair gente demais.





Não tenha dúvidas de que, em tempos normais, não estará sozinho ao apreciar essas vistas privilegiadas de Veneza.
Você verá o grande fluxo das pessoas nas vias principais; mas não se engane: você pode também mudar de curso, tomar aquela via lateral onde não há ninguém, fugir de onde o aplicativo lhe mandou ir, e descobrir o que ninguém mais está vendo.











É um gosto perder-se por essas ruelas e becos, tomar caminhos quietos, e ver tanto a Veneza comercial badalada quanto a Veneza residencial da rua de trás.
Tão ou mais inevitável que a Ponte Rialto é a Praça de São Marcos (Piazza San Marco), a única real praça da cidade e o seu histórico coração. É onde fica o Palácio do Doge, como era conhecido o líder político de Veneza, e a catedral homônima à praça.
O doge não era um título nobiliárquico hereditário como um duque, mas um cargo político de chefia da cidade. Instaurado no ano 726 com a gradual ascensão de Veneza, ele a partir de 1172 passou a ser eleito pelo Grande Conselho de Veneza, um corpo parlamentar formado pelos principais comerciantes e aristocratas da cidade.
A figura do doge (favor não confundir com duce, título do fascista Mussolini, como eu certa vez fiz para o pavor de uma amiga veneziana), cargo vitalício e não-hereditário, perduraria até as guerras napoleônicas em 1797.


A Catedral de São Marcos, ali adjacente, não requer entrada paga — a menos que você deseje visitar seus museus mais acima da igreja propriamente dita. Ela é escura por dentro e evoca todo um ar bizantino do tempo em que foi feita, como mostrei.
Não tenha a inocência de crer que será o único visitante; sobretudo no meado do dia, há bastante gente na fila. Não chega ao horror de horas de espera que pode ser a entrada para o Vaticano, mas prepare ao menos uns 20 minutos. No início da manhã e no fim da tarde é bem mais tranquilo, e você quase não precisa esperar.
Ela infelizmente está aos poucos afundando, como você notará pelo chão torto se entrar. A chamada acqua alta — as inundações regulares, mas cada vez mais comuns e elevadas com a mudança climática global — também tem causado repetidos danos à estrutura. (Quem imaginaria que o desmatamento da Amazônia contribui para o afundamento de Veneza, mas o planeta é um só.)
Os leões símbolo do evangelista São Marcos seguem ali há séculos saudando os visitantes.




Quando o sol voltou a raiar, eu já estava me habituando tanto à beleza quanto ao bafafá de Veneza. No meu último dia apreciando vistas e vibrações, optei por vir direto à praça de manhã tomando o hidrotáxi — apelidado de il vaporetto.
Ver Veneza desde a água tem todo um charme especial.





Aqui eu reveria a Ponte dos Suspiros, cuja origem do nome não tem a ver com o que as pessoas geralmente imaginam.
Ponte construída em 1603 toda em pedra por sobre um canal, muitos turistas creem que se trata de um suspiro leve ou romântico. Nada disso. Ela fica entre a sala de interrogatório do Palácio do Doge e uma antiga prisão de Veneza. Os suspiros, segundo dizem, eram dos condenados à pena de morte. Glup.
A Europa tem muito dessas, coisas ressignificadas, heranças de tempos mais violentos e que hoje ganharam contornos líricos.

A Praça estava ali, ali estavam as pessoas, e ali àquela altura estaria já até o corona se alguns médicos italianos estão corretos.
Via-se a alegria das pessoas ao ver Veneza, o ar algo enfadonho de alguns turistas jovens que faziam o passeio de gôndola “por obrigação”, descobrindo o que afinal ele era.
Eu achava que acharia Veneza um pouco lotada demais em período natalino, mas confesso que gostei. (Sou um pouco arroz de festa para programas turísticos.) Embrenhei-me por pequeninos cafés onde mal se sentavam todos que queriam; a fila do caixa com três pessoas quase saía do estabelecimento, “grande” que era.
Um café, uns pedaços de pizza, um tiramisù…


Permanecerei silencioso acerca de quem estava comigo nesta visita a Veneza. Só sei que atendia-nos um funcionário animado, daqueles italianos jovens e conversadores com pose de galã por detrás do balcão. Teve o crasso infortúnio, porém, de ir ao banheiro do pequeno café pouco após a pessoa que me acompanhava. Chernobyl ainda não havia ficado livre da radiação.
“Mamma mia! Ha cagato alcuno…!”, fez uma festa o animado funcionário para todos no café ouvirem. Como alguém outro lá havia ido nesse ínterim, a autoria da obra ficou incerta.
Os italianos são uma diversão. Veneza já me pareceu esnobe no passado; hoje a vejo como uma cidade alegre e interessante.
Voltarei, para daí mostrar a vocês a Scuola Grande di San Rocco, a Basilica di San Giorgio Maggiore, a ilha de Murano com seus cristais, e tantas das atrações específicas que Veneza ainda tem. Neste post, eu queria apenas reiterar sua aura neste meu mais recente contato com ela — antes da hecatombe.
Não sei se Veneza resiste à mudança climática no longo prazo, mas à pandemia ela haverá de resistir e recobrar seu encanto. Sempre, espero, com sustentabilidade.



Este foi apenas o começo deste meu périplo pela Itália. Voltarei nos próximos posts mostrando mais cidades italianas nesta última calmaria antes da tempestade.


Belíssima, Veneza. Com seus canais, suas ruelas quietas ou movimentadas pelo intenso turismo, suas pontes, escadarias vetustas, luzes, cores, monumentos, igrejas, gôndolas, luzes, cores, vida. Um espetáculo para os olhos extasiados que a contemplam. Magnifica, histórica, fantástica. Imponente diante do tempo e dos céus. Ela própria, monumental, romântica, brilhante, misteriosa e bela. E que bela natureza, que lindo céu azul, que esplendoroso pôr de sol. Certamente um espetáculo para ser assistido e apreciado.
Gostaria de um dia revê-la. Faz tempo que não ando por lá.
Bela cidade. linda postagem. Parabéns, jovem viajante, pela escolha do lugar e pela postagem. Uma riqueza. E viva a Itália. Salve, Veneza, a eterna Rainha Sereníssima do Adriático.
Às vezes, Mairon , não sei ao certo se o que mais aprecio em seus posts são as belas imagens, as dicas, as verdadeiras aulas de história que nos proporciona, ou suas sábias reflexões, como esta última de que só damos o devido valor de algo quando o perdemos… Enfim, creio que é um pouco de cada coisa. Na única vez que estive nesta cidade mágica, não resisti e comprei uma máscara de carnaval para recordação. Lembro que experimentei muitas até encontrar alguma que encaixasse em meu rosto, se fosse hoje, talvez nem tivesse liberdade para agir assim com tantos protocolos de segurança…