1280px Quite summer evening in the port city Klaipeda
Lituânia

Klaipeda (Lituânia), a última cidade do Império Alemão

A Lituânia é aquele país do qual quase só ouvem falar os fãs de basquete, o esporte nacional — ou, alguns diriam, a principal religião por aqui. Futebol não é grande onda, então o povão brasileiro pouco sabe da existência dos lituanos.

Este é, no entanto, senhoras e senhores, um dos meus países favoritos na Europa. Não que necessariamente tenha espetáculos maiores a ver que os demais, mas suas pessoas são diferentes. Os lituanos são quase uns latinos — mais irônicos, zoeiros e cínicos que os seus vizinhos — “perdidos” cá na Europa do norte.

Lituanos com sua bandeira
Lituanos e a sua bandeira. Eles gostam de dizer que o amarelo representa os seus campos; o verde, as florestas; e o vermelho, seu sangue de resistência à opressão.

Ou talvez estejam simplesmente no lugar deles, sendo o lituano a língua indo-europeia mais arcaica que há, e os outros é que apareceram aqui para os perturbar.

Onde os eslavos (russos, poloneses, tchecos…) são um tanto cismados; os nórdicos, reservados e fóbicos; e os germânicos, rígidos — além de, não raramente, pretensiosos — ao ponto de chatear; os lituanos dão boas-vindas à vida e à sociabilidade. Não me parecem muito noiados. Pelo contrário, eu os acho divertidos e simpáticos.

As primeiras lituanas que eu conheci foram duas garotas arroz-de-festa quando eu ainda morava no Canadá, há um tempo atrás. Eu visitaria seu país anos mais tarde, porém sem inicialmente revê-las, no meu primeiro mochilão europeu.

Acabei numa mudança de planos. No que era para eu retornar de Varsóvia a Berlim, e de lá retornar a Amsterdã (onde eu morava) de trem, acabei convidado a um evento com tudo pago em Klaipeda, Lituânia. Nunca havia ouvido falar. Ofereceram-me até uma nova passagem de volta saindo de lá uma semana mais tarde. Claro que topei.

Foi assim que eu fui parar em Klaipeda, a antiga última cidade do império alemão.

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O mapa da cidade antiga, hoje estampado na lateral de um prédio em Klaipeda.

Jamais vou me esquecer do sol de fim de tarde que fazia quando eu desembarquei em Klaipeda após 9h de ônibus desde Varsóvia, na Polônia. O ônibus da EcoLines me custara meros 9 euros, e demorou de aparecer para nos pegar — o que junto com o preço me fez crente que eu havia tomado um golpe desses de vendas falsas pela internet.

Comentei da demora com um jovem casal que parecia também aguardar no que era um cimentado ermo ao ar livre com uma placa indicado ser a parada dos ônibus.

Bem-vindo à Polônia“, observou auto-crítico e risonho o rapaz polonês que acompanhava sua amiga. Meu ônibus estava assim, não 10, mas uns 40 minutos atrasado e praticamente não havia informações na “estação”. (Os poloneses fazem de qualquer estacionamento ordinário uma “estação” de ônibus. Vocês aí fiquem achando que tudo no mundo é pior no Brasil.)

Mar Báltico Mapa
Aos pouco familiarizados com o nordeste da Europa, temos ali um breve corredor europeu que liga a Polônia aos Países Bálticos — todos estes hoje membros da União Europeia e da Zona Schengen de fronteiras abertas. A quem nunca notou, há um exclave russo não-contíguo (ali cinza) em Kaliningrado, a antiga Köninsberg, cidade do filósofo Immanuel Kant (1724 – 1804).

Quando finalmente veio um EcoLines, não era o meu — era o da moça que esperava com seu risonho amigo polonês. “O seu está vindo aí atrás“, esclareceu-me o motorista, tranquilo como se nada houvesse de errado. Fiquei eu e minha fé naquela parada polonesa ar livre, com apenas uma cobertura daquelas antigas de cimento e uma placa.

Apareceria-me, finalmente, dali a um tempo o meu ônibus com seu motorista sem perdões pelo atraso e a sua comissária de bordo russa, loura de cabelinho repicado, com aquele jeito sisudo dos russos diante de estranhos.

O ônibus tinha como destino final a Letônia, e eu aqui era apresentado à sua não-tão-pequena minoria russa. Assistiríamos a filme de Eddie Murphy dublado em russo no ônibus, e a moça só me dirigiria a palavra em inglês para bater-me à porta do banheiro enquanto eu o utilizava e dizer toilet is closed when the bus stops [“Toalete está fechado quando o ônibus para”, assim sem o artigo]. Eu já havia concluído o uso.

Russos seguem vivendo nestes Países Bálticos pelos séculos passados em que o Império Russo e, mais tarde, a União Soviética os abocanhou, ainda que desde 1990 venham diminuindo em número. Ainda são 26% da população na Estônia, 25% na Letônia, mas apenas 5% aqui na Lituânia. Em geral, formam bolsões com escolas/clínicas/cabeleireiro etc. onde usam a língua russa no dia-dia. É um quiprocó constante, já que às vezes ficam ao largo das línguas nacionais (estônio, letão, e lituano).

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Igreja Ortodoxa Russa em Klaipeda.
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Centrinho histórico de Klaipeda, com casario de influência alemã. Esta era uma cidade da Alemanha.

Como eu volta e meia comento aqui, a gente pode mais vezes vê os países hoje no mapa e crê que eles sempre estiveram ali onde estão. Ledo engano. A Alemanha, para ficar num exemplo, tinha fronteiras muito diferentes antes das duas guerras mundiais.

Não é só que Hitler tenha tentado conquistar território a mais, falhado, e a Alemanha “voltou ao que era”. Não, a Alemanha perdeu boa parte das terras que há séculos governava.

Dentre essas estava a Prússia, terras que hoje representam o norte da Polônia e sul da Lituânia às margens do Mar Báltico. Estas terras, até cerca do ano 1000 d.C., eram habitadas por povos bálticos — os prussianos originais — que em grande medida desapareceram.

Ou melhor, feito tantos indígenas do Brasil, integraram-se no sangue e nas culturas das populações dominantes, mas as suas línguas desapareceram. A partir do século XIII surge uma agressiva campanha germânica de evangelização e conquista do Leste Europeu, através dos tão-falados Cavaleiros Teutônicos. (Tratei deles antes aqui e aqui.) Nos próximos séculos empreenderiam as chamadas Cruzadas do Norte até o fim da Idade Média.

Mapa do Império Alemão
Este era o mapa da Alemanha em 1914, só para constar. As conquistas dos Cavaleiros Teutônicos e príncipes germânicos sobre os povos eslavos e bálticos de 1200- 1500 garantiriam controle alemão sobre todo este território um território que viriam a perder apenas nas guerras mundiais.

Estão notando aquela pontinha verde lá no extremo nordeste do mapa alemão de outrora? Ali, os cavaleiros teutônicos fundaram uma cidade chamada Memelburg, ou simplesmente Memel, palavra que significa “quieto” ou “silencioso” na língua báltica nativa. Referia-se ao Rio Neman, que por ali desemboca e por séculos formaria a região fronteiriça entre germânicos e lituanos. 

Um dos versos da primeira estrofe da versão inteira do hino nacional alemão referia-se à sua extensão territorial de então. Von der Maas bis an die Memel, ou seja, do Rio Mosa (ou Maas, onde fica Maastricht, na Holanda) até o Rio Memel (como os germânicos chamam o Rio Neman dos lituanos, nas vizinhanças da cidade).

Deutschland, Deutschland über alles, Über alles in der Welt” (“Alemanha, Alemanha acima de tudo/ Acima de tudo no mundo”), é como começava a primeira estrofe patriótica hoje proibida e proscrita do hino nacional. Começa-se a cantá-lo da terceira estrofe atualmente.

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Como se imagina que era a cidade de Memel nos fins da Idade Média, na atual Lituânia.

Já não há mais tal extensão territorial sob domínio germânico. Memel hoje é o nome da cerveja aqui produzida depois que os lituanos recobraram o nome báltico de Klaipeda a esta região.

Memel cerveja
A cerveja Memel, um legado da presença dos alemães aqui.

Por 501 anos, ela dividiu os domínios dos teutônicos daqueles do Grão-Ducado da Lituânia, a única força que lhes impôs um “pare” por aqui.

À altura do século XV, esse grão-ducado era nada menos que o maior estado europeu — além de ter sido o último a se converter do paganismo ao cristianismo, somente em 1387. O grão-duque Gediminas (1275 – 1341), que lutou para evitar a conversão forçada do seu povo, e Vytautas, o Grande (1350 – 1430), são nomes sobre os quais ainda falaremos no futuro. (Quase todos os nomes lituanos masculinos terminam em S.)

A Batalha de Grunwald em 1410 marcaria marcaria o principal “detenha-se” para as ambições germânicas no Leste Europeu, uma derrota teutônica sobre a qual Hitler meio milênio depois dizia “estar dando o troco” ao invadir a Polônia.

A essa altura, lituanos e polacos haviam se unido contra o expansionismo germânico. O Tratado de Melno, sobre o qual você nunca ouviu falar na escola, em 1422 finalmente firmaria a fronteiras entre lituanos, germânicos e poloneses.

Do desenrolar da História para os lituanos eu tratarei melhor depois. Por ora, vale saber que Memel só foi perdida pelos germânicos e virou Klaipeda ao fim da Primeira Guerra Mundial, com o fatídico Tratado de Versalhes. Foi quando a Lituânia finalmente anexou esta região.

Hoje, a presença germânica de outrora se nota no casario, mas praticamente já não há mais alemães por aqui, nem se utiliza mais o idioma de Kant nestas bandas.

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Centro histórico de Klaipeda com seu casario que nos lembra a Alemanha.
Mudança território Alemanha sec XX
“Um Reich dizimado”. As perdas territoriais alemãs no século XX. As áreas em amarelo-escuro se perderam na Primeira Guerra Mundial; as partes em amarelo-claro, após a Segunda Guerra. (Vale dizer que nem todas eram originalmente terras alemãs. Em muitos lugares, os germânicos haviam anteriormente desalojado povos eslavos ou bálticos, como mostrado neste caso de Memel.)
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Centrinho de Klaipeda. Nada pretensioso, mas dá para dar umas voltinhas aqui por algumas horinhas.
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Estas banquinhas vendiam produtos de âmbar, algo ubíquo e muito típico nestas zonas costeiras do Mar Báltico — seja aqui na Lituânia, na Letônia ou na Polônia.
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A Praça do Teatro de Drama de Klaipeda, inaugurado em 1935 (embora o prédio neoclássico seja mais antigo, de 1857). Daqui, Hitler proclamou a re-anexação de Memel à Alemanha após a invasão das tropas nazistas. Tudo isto retornaria à Lituânia em 1945.
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Nós ali em Klaipeda.

Quando eu aqui cheguei, tantos anos depois, estava terminando o Festival Marítimo de Klaipeda (Klaipeda Sea Festival), praticamente o carnaval de verão que ocorre por três dias na cidade. Se você gosta de fuzarca, ele é uma ótima época para visitar. (Se não gosta, evite. Costuma ocorrer nos fins de julho ou início de agosto todos os anos.)

Lembro-me das banquinhas de bebida, das moças olhando minha cara exótica nestas bandas, da gente jovem na rua.

Eu teria aqui um evento ecumênico, ao qual fui convidado por uma amiga protestante bem mais carola do que eu. Suspeitei que pudesse haver um excesso de pios momentos para o meu gosto, mas acabou se revelando umas semanas mais divertidas da minha vida.

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Vivíamos as consequências da crise financeira de 2008/2009, e tivemos uma semana multicultural, entre outras coisas, debatendo a juventude nesse contexto. Era o meu primeiro contato presencial com os tais “encontros de jovens” de que tanto ouvira falar.
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Breve estaríamos assim.

Rapaz… estes encontros ecumênicos são assim então. Eu deveria ter vindo antes“, lembro-me de me ocorrer na lituana ocasião.

Nenhuma dessas moças acima é lituana, faça-se saber.  Os únicos lituanos no grupo eram Karolis, um cidadão que atendia por Captain K e nunca parecia estar sóbrio, e Kestutis, um tiozão pesado com fenótipo de motoqueiro-com-barriga-de-cerveja e fã de Sepultura ligeiramente deslocado naquele evento de jovens. Ele seria o nosso guia / professor de História numa viagem que faríamos mais adiante na semana.

Jamais me esquecerei de Janis, o palestrante convidado, um homem já feito, que me apresentou o maravilhoso livro de Wilkinson & Pickett (lançado no Brasil como “O Nível: Por que uma sociedade mais igualitária é melhor para todos“), que se apresentou de camisa e calça social como um homem casado, com um filho de 8 anos, que relutou em permanecer para a confraternização, e que à meia-noite estaria rebolando agarrado à embriagada garota búlgara no melhor estilo Lolita. Morrerei sem jamais me esquecer dessa visão. 

Assim foi o princípio da minha vivência nesta Lituânia que tanto experimentou — com festa daquelas que se encerram com uma trovoada de verão às 3h da manhã, gente dormindo nos quartos dos outros, e algumas caras de excesso, de paisagem, ou de arrependimentos na manhã seguinte quando daríamos partida à parte mais séria do evento. Coisas de juventude.

Foi assim que eu comecei a tomar conhecimento da Lituânia.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

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