A ponte para o castelo fortificado numa ilha, ou à margem de um lago. Eis uma das visões medievais românticas que temos. Claro que raramente se imagina a falta de banho, as doenças, ou as fáceis facadas pelas costas, mas tudo isso compunha a Idade Média.
Trakai, na Lituânia, é dos mais belos exemplos de reminiscências medievais que a Europa tem.
Datada do século XIV, ela faz o arquetípico emblema dessa Idade Média romantizada, tardia, dos cavaleiros e ordens. A Idade Média dos anos 500-1000 era mais da peãozada. Essa coisa de cavaleiros vestidos de armadura, irmandades militares, e torres redondas em grandes fortalezas foi de 1000-1500, na Idade Média tardia ou Baixa Idade Média.

Foi nessa época da Idade Média tardia que, como eu vos venho dizendo nos posts recentes aqui na Lituânia, os reinos e nobres cristãos da Europa decidiram se lançar em Cruzadas. A motivação religiosa misturava-se a uma ambição mui material de conquistar novas terras — fosse o sul da Ibéria dos mouros para portugueses e futuros “espanhóis”, fossem terras ocupadas por árabes na Terra Santa para os ingleses e franceses, fossem as regiões não-cristianizadas no leste europeu para os germânicos.
Obtinham dos reis e imperadores os chamados “privilégios” de conquista. Encarregavam-se de conquistar povos e terras, contanto que o butim, terras e demais espólios da conquista fossem seus.
As tão-festejadas ordens religiosas-militares como os Templários, Hospitalários ou dos Cavaleiros Teutônicos faziam um toma-lá-dá-cá com os políticos da época. Obtinham dos reis e imperadores os chamados “privilégios” de conquista. Encarregavam-se de conquistar povos e terras, contanto que o butim, terras e demais espólios da conquista fossem seus, ficassem sob o seu governo. Por debaixo da fachada cristã havia um mercenarismo, ainda que muitos certamente achassem que o estavam fazendo também por sua crença torta em Deus.

Como cheguei a mostrar antes, essas terras que os Cavaleiros Teutônicos retiveram seriam, depois, secularizadas e formariam os domínios do Império Alemão no leste europeu — perdidos apenas após a primeira e segunda guerras mundiais.

O ponto mais alto — o zênite — dos Cavaleiros Teutônicos fora o fim dos idos de 1300, quando após receberam do imperador os “privilégios” da conquista da Prússia original, receberam-nos também para conquistar toda a Lituânia e a Rússia. (Glup. Como a Rússia já era cristã, mas do cristianismo ortodoxo grego, isso era visto no Ocidente como incorreto, e os cavaleiros tinham, portanto, carta branca para dobrá-los sob a lâmina ao catolicismo romano.)
Os cavaleiros teutônicos nunca chegariam a tanto. As fantasias germânicas de chegar a Moscou seriam deixadas para o século XX com Hitler, embora ainda assim não-realizadas (o máximo que chegaram foi a 30 Km de Moscou, a quem não sabe).
O imbróglio ficou mesmo a cargo da Lituânia, à época um grão-ducado relativamente poderoso (fazia frente à Rússia de então), e com a curiosidade de ser a última coroa ainda pagã da Europa — como relatei melhor neste outro post.
Trakai praticamente nasceu nesse bojo, e é nas crônicas escritas pelos Cavaleiros Teutônicos em 1377 que primeiro se tem nota da sua existência. Uma fortificação lituana fundada numa ilha por seu grão-duque Gediminas (1275-1341). A escolha do lugar teria se dado pela beleza daqui.

À altura do século XIV na Europa, já não havia exatamente grandes monarcas esposando o paganismo — exceto por Gediminas. Ele era uma atrevida exceção numa Europa que era, doutra maneira, exclusivamente cristã ou islâmica (Granada no sul da Espanha e nos Bálcãs, nos territórios turcos).

Foi, no entanto, o seu filho Kestutis (1297-1382) quem levantaria o Castelo de Trakai que hoje se encontra aqui.
Kestutis foi raro dentre os monarcas europeus por viver quase até os 90 anos, e isso tendo escapado de prisões teutônicas, batalhado à espada já sexagenário, e sobrevivido a tramoias de toda sorte. Era praticamente um personagem saído de O Senhor dos Anéis.
Ele e seu irmão Algirdas governavam a Lituânia metade-metade: ele cuidava da metade oeste, e dos conflitos contra os teutônicos, e Algirdas da metade leste e das disputas com os russos.
Breve não daria em coisa boa.

Algirdas morreria em 1377, deixando seu filho no lugar. Este sobrinho, bem mais jovem que o tio, já cogitava converter-se ao cristianismo — por que não — enquanto Kestutis era ferrenho em favor da religião tradicional.
Kestutis e seu filho Vytautas chegaram a ser aprisionados pelos teutônicos e levados ao seu castelo central em Marienburg (hoje na Polônia), para dali fugir após seis meses de confinamento. Haviam sido muitas as batalhas, vitórias e derrotas entre os dois lados.
Os teutônicos, então, arranjaram de apoiar Jogaila, esse sobrinho, para instalá-lo no poder enquanto tomavam as terras de Kestutis. Trakai chegou a ser devastada pelos cavaleiros em 1377, mas eles não chegaram a satisfazer sua ambição.
Em 1382, já com mais de 80 anos de idade, Kestutis ainda liderava campanhas militares contra os teutônicos e os russos. Numa dessas ausências, Jogaila se aproveitou para tomar o trono, aliado a facções rebeldes e aos teutônicos.
Kestutis e seu filho Vytautas organizaram as tropas para voltar, e preparam-se para o enfrentamento, mas numa audiência foram sordidamente detidos e aprisionados. Kestutis acabaria morrendo na prisão (com cerca de 85 anos) e recebendo um funeral pagão onde foi cremado com seus pertences, cavalos e tudo (!).
Vytautas escaparia, para depois derrotar o primo arteiro e tornar-se Vytautas, o Grande, o próximo grão-duque da Lituânia entre 1392 e 1430.


Jogaila, o sobrinho de Kestutis, porém não morreu. Ele se casaria com Jadwiga da Polônia em 1385 para tornar-se rei polonês. Adotou o cristianismo e até mudou de nome, para Wladislaw. Vytautas acabou se convertendo também, confirmando a adoção oficial do cristianismo na Lituânia — a última nação na Europa a abandonar formalmente o paganismo — em 1387.

Curiosamente, Vytautas e Jogaila dali aliariam-se contra os teutônicos naquela que foi uma das maiores batalhas da Idade Média, a Batalha de Grunwald (1410). Os germânicos a chamam de Tannenberg, e ela gerou rancores até o século XX. Foi basicamente a Stalingrado dos Cavaleiros Teutônicos, findando suas ambições expansivas no leste europeu.
Estima-se que mais da metade dos participantes da batalha morreram, inclusos aí o grão-mestre teutônico e vários outros do alto escalão da Ordem executados após o confronto. Meio milênio depois, a Alemanha do século XX falaria numa Segunda Batalha de Tannenberg para celebrar suas vitórias. Hitler propagandeava-se como continuador das conquistas dos Cavaleiros travestidas de “missão civilizatória”. Os germânicos, contudo, retrocederiam após 1945.
Com a conversão dos lituanos finalmente ao cristianismo, o pretexto para a conquista daqueles territórios deixava de existir. O papa passou então a apoiar os esforços que poloneses e lituanos empreendiam contra os pagãos mongóis em parte do que hoje é a Rússia.
Trakai segue aqui como registro dessa época, e é das áreas mais interessantes para visitar, a quem vem à capital Vilnius (a 30 Km daqui). É um ótimo bate-e-volta que eu fiz com Ieva; não a que vocês viram no post anterior, outra. (Acho que Ieva aqui nos anos 80 era tipo Bruno no Brasil. Eu na conhecia cinco só da minha turma na escola.)
Esta Ieva eu conheci no trabalho e é bem diferente da outra, embora ambas partilhem do humor de tirar sarro e fazer graça típico dos lituanos. (Adoro.)
Ela me trouxe de carro. Sentamo-nos ali num dos restaurantes com mesas e longos bancos de madeira às vizinhanças do castelo, eu a tomar um kvass — a típica bebida de pão fermentado que parece um híbrido entre cerveja e refrigerante. Abelhas vinham atrás do açúcar na minha bebida, o calor de verão deixando-me confortável sem qualquer agasalho. Era um dia até úmido.


As andanças lá por Vilnius, finalmente a conhecer a capital lituana, eu conto no post seguinte.