“Nós viajamos não para escapar da vida, mas para que a vida não nos escape“, dizia o dizer gravado na parede de onde eu me hospedei em Yangon, maior cidade de Myanmar. Uma metrópole de sete milhões de habitantes, num país de 56 milhões, onde eu descobri outras formas de viver.
Era um outro fevereiro. Como agora, estávamos à época de Ano Novo Chinês — celebrado em maior ou menor medida em toda a Ásia oriental. Antes da pandemia, e antes do mais recente golpe militar no país.
O que vocês sabem sobre Myanmar? Eu iria tratar desta viagem depois, mas achei oportuno fazê-lo agora, quando o nome do país aparece nas manchetes sem quase ninguém saber direito sequer onde ele fica. Não, não estou reportando direto dos protestos em curso, pois ainda não virei jornalista (quem sabe?), mas vou relatar as minhas experiências para que vocês compreendam melhor “que lugar é esse”, afinal.

Que país é esse?
Não estamos falando de um lugar pequeno. Maior que Minas Gerais, e estendido ali entre as colinas do Sudeste da Ásia e o mar, é uma terra quente e longevas tradições de forte influência budista. Eu o percebi como uma espécie de elo entre a Índia e o restante do Sudeste Asiático.

Esclareçamos desde já a questão do nome. Tradicionalmente chamado de Birmânia em português (Burma em inglês), mas passado oficialmente a Myanmar em 1989, os seus nomes todos remontam à mesma coisa e soam parecido. Esqueçam os Rs.
Os britânicos, que colonizaram esta terra junto com a Índia como se fossem tudo uma coisa só — o Raj britânico — entre 1824 e 1948, pronunciam praticamente “Bama” (Burma no sotaque britânico), de como o próprio povo daqui coloquialmente chama a sua terra Bam-ma. (Sem sílaba tônica. Boa parte das línguas sequer têm essa noção.)
Mian-ma é uma leve alteração mais formal, que foneticamente o ouvido pouco percebe do jeito que eles pronunciam. Eles aqui não usam letras latinas; têm seu próprio alfabeto. A distância entre “Birmânia” e “Myanmar” é, portanto, atrapalhação nossa, ocidental. Como, aliás, são muitas das atrapalhações por aqui.

Quem melhor descreveu o “trabalho” britânico em Myanmar não foi nenhum outro que não George Orwell, o consagrado autor do livro 1984.
Quando novamente aparecer aquela pessoa com espírito de vira-lata, a repetir a velha ladainha sobre como seria o Brasil melhor se tivesse sido colonizado pelos ingleses, traga-a aqui a Myanmar.

Quem melhor descreveu o “trabalho” britânico em Myanmar não foi nenhum outro que não George Orwell, o consagrado autor do livro 1984.
Britânico que nasceu na Índia e viveu em Myanmar durante a era colonial, uma das suas obras é o romance de época Burmese Days (lançado no Brasil como Dias na Birmânia), publicado em 1934, quando estas terras ainda eram colônia. Publicou-o lá nos Estados Unidos, pois suas críticas ao Império Britânico criavam rusgas no seu país.
Ao longo dos próximos posts, visitando lugares históricos, eu descreverei melhor o passado e a tradição budista de Myanmar. Por ora, basta dizer que os britânicos invadiram estas terras em três Guerras Anglo-Birmanesas ao longo do século XIX. Eles, que já estavam na Índia para extrair recursos naturais e ganhar dinheiro, resolveram expandir-se para cá.
Subjugaram as dezenas de etnias que aqui vivem, num governo colonial que durou até 1948. A obra de Orwell cobre uma época já tardia da colonização, já após a sofrência britânica na Primeira Guerra Mundial e a difusão de ideias subversivas de soberania. Afinal, a República da Irlanda já ficara independente em 1922, e idealistas como Gandhi começavam seus trabalhos.
Os britânicos nesta terra de, segundo eles, “gente fedida e de cor”, relembravam como as coisas eram melhores antes. As pessoas se comportavam nos bons e velhos tempos da colônia — não insubordinadas e atrevidas como hoje. O livro goza como se podia mesmo mandar o empregado à estação policial com um bilhete dizendo “Favor dar no portador 15 chicotadas“, e a própria pessoa ia entregar. Hoje, não, as coisas estavam ficando de pernas para o ar.

Eu chegava a estas ruas muito depois, mais de 70 anos após a independência, mas onde as marcas do autoritarismo pré e pós britânico seguem bastante vivas. (Dos eventos recentes eu trato daqui a pouco.)
Embora o físico das pessoas, o jeitão geral do lugar, e a presença de estupas budistas douradas nas ruas me lembram a Tailândia, as edificações nas ruas de Yangon me lembram mais a Índia, com a presença que remanesce dos prédios coloniais britânicos em meio aos prédios residenciais horríveis e à fuzarca toda.





Pois foi nestas ruas que eu me meteria após chegar do aeroporto de Yangon numa manhã de inverno. “Inverno” eu deveria dizer, pois fevereiro é inverno aqui no hemisfério norte, mas Myanmar sempre faz calor.
Aliás, acho que não se passam três páginas de Dias na Birmânia sem algum inglês se queixar do calor. Eu não sou inglês, sou brasileiro, e lhes digo que o ensolarado inverno daqui é como um digno dia quente do Brasil. Lembra um tanto Bangkok na Tailândia, a quem conhece. Com menos umidade, talvez. Exige respeito.
(A verdade é que eles aqui não utilizam essa linguagem ocidental temperada de dividir as quatro estações. Há a estação seca, de outubro a abril, e a estação chuvosa de maio a setembro.)



Cheguei à minha acomodação em Chinatown, no centro da cidade, quase na hora do almoço. É uma vizinhança muito boa onde se hospedar, caso alguém suspeite o contrário. Muitas lojinhas, segurança, e daqui a todo lugar se vai a pé.
Muvuca de rua, sem dúvida; mas nenhum movimentado de Yangon é sem muvuca. Vir ao Sudeste Asiático é para muvucar pelo menos um pouco.








Comprei um de cada. Revelaram-se macias massinhas de arroz levemente adoçadas — bem menos doces do que o aspecto na imagem dá a sugerir. Parece uma goma ligeiramente açucarada. (Ela lhe dá num embrulhinho plástico.)


Aqui há de tudo, meus queridos. As ruas têm mais surpresas que programa do Sérgio Mallandro. A maioria delas, porém, é benigna.
Eu havia almoçado um curry de peixe pouco digno de nota, o molho quase vazando do prato ao lado de um morrete de arroz, mas eu deixarei para mostrar melhor as comidas depois, quando ficarem mais interessantes.
Alimentado, eu segui ao mercado. Fui dar um bordejo, visitar alguns monumentos e lugares emblemáticos no centro de Yangon — e outros nem tanto.






Você pode ver um pouquinho dessa “procissão” dos monges pelas lojas no pequeno vídeo que fiz abaixo em Yangon.



Circulei deliciosamente no meio do povão.
Os birmaneses em geral são afáveis e cordiais, caso alguém aí esteja a se perguntar. De bom trato, como os seus vizinhos tailandeses a leste. Seu sotaque às vezes é algo difícil de entender, mas praticamente todos falam algo de inglês.
O que notei é que as pessoas aqui são espontâneas. Mais do que os asiáticos geralmente são. As birmanesas, inclusive, têm um olhar saído que eu não costumo encontrar em outras partes da Ásia. Tomei umas secadas revigorantes. Uma observação atenta e você percebe que aqui são elas que seguram os homens, não o contrário — e ela ainda se permite me conferir nos arredores. Ah, moçoilas!
Uma curiosidade é que elas frequentemente usam uma pasta amarelo-claro como máscara facial no dia-dia (sim, na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê).


Já os homens, frequentemente, andam tradicionalmente de saião em vez de calças, como em partes da Índia. É curioso.
Meu problema com eles é, basicamente, o odor de noz de areca (betel nut) uma palmeira nativa cujo fruto avermelhado eles mascam, e que empestia tudo, como no norte da Índia. Tem propriedades semelhantes às da nicotina, então vicia, e causa câncer igual cigarro.
Mas grande parte dos homens aqui masca isso o tempo todo, exalando um inconfundível cheiro meio acre que me lembra um pouco uma noz-moscada fresca e bem pungente. Quando vir homens birmaneses (ou indianos) de sorriso meio enferrujado, já sabe por que é. (Eu falo dos homens porque são a maioria, mas às vezes você vê mulheres assim também.)


Vi várias lojas no grande Mercado Bogyoke Aung San (aberto todos os dias, exceto às segundas), uma perdição a quem gosta de artesanias ou lembrancinhas típicas.
Se o calor ou o povaréu lhe forem um pouco demais da conta, você pode alternar e ir se encontrar com o ar condicionado os birmaneses de classe média ou alta no shopping Junction City, bem em frente à catedral anglicana. Lá os verá comer pão branco com açúcar em cima, tipo donut, como se fosse uma coisa chique ocidental.

Eu não preciso dizer que optei por fazer minhas refeições com o povão, e à maneira asiática.
Foi aí que experimentei mohinga, uma sopa arquetípica de Myanmar, que muitos consideram um prato nacional. Trata-se de uma sopa de macarrão feito de arroz (não de trigo) num mui temperado caldo de peixe, com gengibre, cebola, alho, e sabe-se lá o que mais.
É um prato típico de café da manhã aqui, já que na Ásia essa refeição é propriamente uma refeição, não um xicrinha de café com algo leve.
É uma delícia. Virou meu arroz com feijão de vários dias, e o gosto me pareceu tipo um caldo de sururu com macarrão.




Note-se, portanto, que estamos num país pleno de riqueza cultural e material, mas inicialmente explorado por colonizadores estrangeiros, que viriam a ser substituídos por uma elite local numa tradição de autoritarismo, e num contexto de grande desigualdade onde as práticas democráticas seguem muito incipientes.
Independentes dos britânicos em 1948, os birmaneses tiveram um período curto de democracia até cair sob ditadura militar em 1962.

Porém, ao contrário do Brasil, em Myanmar militares jamais largaram realmente o poder. Mantiveram o país no obscurantismo, fechado e no atraso até os anos 80, quando houve uma reabertura democrática — novamente podada. Aung San Suu Kyi, filha do líder nacional revolucionário Aung San, foi eleita primeira-ministra nas eleições gerais de 1990, mas impedida pelos militares de assumir o governo.
Ela passaria 15 anos em prisão domiciliar, no que virou até filme (“Além da Liberdade” ou, no original, The Lady, 2011). Receber o prêmio Nobel da paz em 1991, e segue sendo o maior ícone democrático do país.
Myanmar permanecia sumido do mapa, retraído, até atrair os olhos internacionais mais uma vez com sua transição democrática e reabertura em 2011. Foi a partir de quando negócios, mas também turistas estrangeiros, descobriram Myanmar.
Vínhamos num regime de democracia em gradual construção. Não sem problemas, mas mais livre. Houve eleições diretas em 2015, e novamente em 2020, dando ao partido liderado por Aung Sang Suu Kyi ampla maioria nas casas.
Em fevereiro de 2021, ela seria mais uma vez detida por “subversão”, e os militares tomavam novamente o poder, desta vez diante de protestos crescentes.
Quem ainda aguenta autoritarismo?


Se você estiver curioso acerca desse gesto com os três dedos, ele é um destes casos curiosos em que a vida imita a arte — talvez o mais relevante até aqui no século XXI.
Quem assistiu aos filmes Jogos Vorazes (The Hunger Games) se lembram da protagonista Katniss Everdeen fazendo-o como um símbolo de resistência contra a tirania. O gesto passou a ser adotado pelos tailandeses em protesto desde o golpe que houve lá em 2014 — a ponto de dar cadeia pra quem fizer o gesto em público.
A coisa voltaria em 2020 quando os tailandeses protestaram novamente, agora por reformas na monarquia, e em 2021 cruzou a fronteira até Myanmar. Quem sabe um dia a moda pega também no Brasil.

Eu volto mostrando mais do país nos próximos posts.
Ihhh que cidade bonita, que postagem linda. Parecem com as cidades e as postagens maravilhosas da Tailândia, do Vietnã e do Camboja.
Lembro bem pois amo a Ásia, e em particular o SE asiático. Amo o seu povo bonito, simpático, de pele bonita, de lindos cabelos, de sorriso aberto, simples. Amo a sua cultura magnifica com seus belíssimos monumentos e templos de encher os olhos. A sua religiosidade expressa de tantas e tão belas formas e a sua história de resistência e de lutas.
Lamento sua exploração histórica efetuada por tantos por tão longos anos e valorizo sua resiliência.
Este pais aqui no Brasil era conhecido na Geografia como Birmânia e sua capital seria Rangoon. Mas quase nada se sabia dele. O livro mostrava uns templos e dizia ser de maioria budista. E só. Assim também os demais países da Ásia.
Mas é muito bonita essa capital, apesar das periferias semelhantes a quase todas as cidades dos países em desenvolvimento, com grande população vulnerável, inclusive em quase todas as capitais brasileiras.
Magníficos seus monumentos, seu templo de colunas douradas, seus prédios históricos. Lindíssimos.
Esse expoente arquitetônico birmanês onde se encontra a Prefeitura é fabuloso. Espetacular. Em tons, em linhas e em porte. Maravilhoso, com suas belíssimas e elegantes palmeiras. Adoro palmeiras. Acho-as lindas.
Maravilhoso também esse conjunto com o pagode. Adoro pagode. Acho-os elegantes e significativos.
Belíssima essa igreja, Belas e elegantes linhas com seus belos tijolinhos vermelhos, emoldurada pelo lindo verde do jardim. Uma pintura.
Esse prédio da Alta corte é de uma beleza e elegância impressionantes. Que maravilha!… que linda combinação de tons. Belíssimos o vinho com o dourado. Ficou solene. Elegante e charmoso. Belo também o casarão rosado. Muito bonitos todos. Belas cores da bandeira. Alegres como parece ser o seu povo.Linda postagem. Parabéns, jovem viajante. E obrigada por nos fazer conhecer mais um pouco essa Asia fabulosa, bela parte desse lindo planeta azul.
Destaque para o seu rico mercado cheio de produtos maravilhosos e com certeza pedindo para serem comprados. Apaixonante. Amo esses mercados e seus produtos. lindos e criativos.
E que pintura magnifica. Bom gosto o senhor tem, meu jovem. Ficou deslumbrante esse laranja com dourado e vermelho com os belos templos claros. Parece que o sol poente enche de dourado a paisagem. Magnífica. Surreal.
Linda também aquela avenida cheia de balõezinhos alaranjados.
Achei engraçadíssimo o alfabeto. Parece massa de sopa de rodinhas de macarrão, hahahah.
É de se lamentar o que está acontecendo em Myammar, em outros pontos do planeta, inclusive aqui no Brasil. Em pleno sec. XXI as pessoas ainda não sabem conviver uns com os outros, sem tentar dominar, oprimir, subjugar quem pensa diferente. Pobre raça humana, haverá de penar muito ainda até aprender o respeito ao outro e o valor da fraternidade e do amor nesse tão belo planeta azul.