Este post é uma combinação de coisas sacras e do sacro-ofício das coisas do dia-dia aqui em Myanmar. Bem-vindos a Mandalay, a segunda maior cidade do país (após Yangon) e a principal no seu centro-norte.
Pagodes e templos magníficos enfeitam Mandalay, assim como “o maior livro do mundo” (uma coisa sui generis e que vocês só entenderão após vê-la).
A mais memorável experiência aqui, no entanto, é a gente birmanesa. Lembram-me dos brasileiros em certas coisas — definitivamente em mais coisas do que os livros de História ou Geografia jamais me sugeririam.
Como se sabe, budismo belo e muvucas de rua co-existem lado a lado aqui no Sudeste Asiático. Amo esse seu budismo popular, de raiz, tão diferente da concepção higienizada individualista (e, por vezes, socialmente alienada) que os ocidentais fizeram do budismo zen.
Não dourarei demais a pílula dos templos dourados: há problemas com o budismo tradicional daqui, como vos mostrarei abaixo, mas é uma experiência nova, diferente do que estamos acostumados. Uma forma distinta de se viver. É o que as viagens sempre nos levam a conhecer.

Bem-vindos a Mandalay
Eu cheguei de ônibus desde Bagan, a meras 5h de viagem daqui (sim, para mim viagens com números de horas de só um dígito viraram curtas; você almoça num lugar e janta no outro.). Foi uma viagem vespertina, relativamente tranquila apesar do calor lá fora.
No caminho, paramos num daqueles restaurantes de beira de rodovia com lojinhas adjacentes tão comuns também no Brasil. Vi algumas (imensas, intrazíveis) imagens budistas que me deram ganas de trazer.
O calor fora do ônibus era rigoroso, senhoras e senhores, como numa tarde de verão dos trópicos brasileiros. Como lá em Pindorama, aqui as flores também davam o espetáculo que ajudava a amainar a dureza do sol. As bougainvilles que aqui enfeitam também enfeitam como lá.




A muvuca o saúda
Chegar à “rodoviária” de Mandalay, francamente, evocou-me imagens que eu não tinha Ao Vivo diante dos olhos desde o meu périplo pela Índia anos atrás. Mesmo no Vietnã, Tailândia, e até o Camboja pareceram-me ter estruturas melhores. A “rodoviária” aqui vai entre aspas mesmo, porque não passa de um estacionamento com chão de terra. (Eu fico a imaginá-la na época da chuva.)
À maneira também da vizinha Índia (ô nostalgia), um bando de homens interessados em lhe pegar como passageiro de táxi, tuk-tuk ou moto já começa a correr atrás do ônibus antes mesmo de estacionarmos. Como os ônibus carregam uma mistura de turistas e birmaneses, eles ficam lá de baixo tentando enxergar as caras pálidas para ver se há muito turista a bordo.



Eu conheço de outros carnavais essa agonia da descida do ônibus. Enfrentei muito isso na Índia, inclusive no célebre episódio em que um deles me esperava com um papel escrito “Aironal”, o que supostamente era eu (eu havia arranjado com o albergue e dado o meu nome por telefone).
Já aqui em Mandalay eu tive que rir, pois você mal tinha espaço para descer, tamanho era o pega-pra-levar.


Bem-vindos a Mandalay!
Lembrei-me imediatamente de uma amiga alemã (meio hippie) que adora Myanmar e me deu dicas do país, mas falou mal desta cidade dizendo que a achava muvucada demais para o seu gosto.
As ofertas insistentes de táxi já vêm sem cerimônia. Como eu não sou mais aquele rapaz pouco experiente de 20 e poucos anos que foi à Índia, eu tive mais tranquilidade com o “Vamos, vamos! Pra onde você vai??“. Botei ordem na coisa e disse que só iria conversar de táxi se primeiro me deixassem passar. Aquiesceram. Eles aqui na Ásia respeitam muito o cliente, se você souber tomar as rédeas. (Se não souber, fazem gato e sapato de você.)
Mandalay, infelizmente, não é o tipo de lugar onde dá para sair caminhando por aí até a acomodação — o que teria sido minha opção preferida. As distâncias são muito grandes. Oito quilômetros me separavam de onde eu ficaria, e caminhar tudo isso com bagagem numa tarde de sol desta cidade movimentada e poluída estava fora de cogitação.
Um táxi aqui desta Highway Bus Station (que fica meio fora da cidade) até o centro custa uns 8.000-10.000 kyats (equivalente a uns USD 6-7), mas eles tentam lhe cobrar o dobro. Os tuk-tuks são mais baratos. Um taxista, afinal, depois de um tempo concordou em me levar por um preço aceitável.
(Se você tiver internet, pode tentar chamar alguém pelo aplicativo Grab, que é tipo o Uber do Sudeste Asiático.)


Atrações e monumentos em Mandalay
Mandalay é uma cidade grande, de 1.7 milhão de habitantes, e fundada somente em 1857 para ser a nova capital. Isso significa que, enquanto as coisas medievais ficam em Bagan, aqui você encontra as obras das últimas décadas de monarquia birmanesa antes da conquista britânica (1885).
Estamos, basicamente, numa cidade moderna. Seu desenho urbano é todo em formato de grade, com ruas retas que se cruzam, e todas elas numeradas feito em Manhattan. Ajuda a se orientar.
As atrações não ficam exatamente perto uma da outra. São quilômetros separando-as no que é uma cidade movimentada, então tuk-tuks e moto-táxis se tornam úteis. Você pode pedi-los pelo aplicativo Grab (sim, há tuk-tuk por aplicativo) ou simplesmente chamá-los na rua à moda convencional.
Contrastando-se com as edificações com cara de fim do século XX em Mandalay estão suas três principais atrações: o dourado Pagode Mahamuni, o antigo mosteiro budista Shwenandaw Kyaung com belíssima arquitetura em madeira, e o “maior livro do mundo” no Pagode Kuthodaw. Você pode vê-los todos num mesmo dia se começar após o café da manhã — foi o que eu fiz.


Com essa vista e esse ar eu tomava café de manhã. Não senti odores, ao contrário de Bagan, mas a névoa de poluição no horizonte se nota. Infortúnios da Ásia que fizeram eu me lembrar o quanto os céus ainda são limpos na maior parte do Brasil (quando não inventam de pôr fogo).
Era hora de providenciar um tuk-tuk, o que fiz na esquina.
Vamos dar umas voltas.
O Palácio de Mandalay
O Palácio de Mandalay (Mandalay Palace), faça-se saber, foi o lugar construído a mando do rei Mindon (1808-1878), o penúltimo de Myanmar e fundador desta cidade Mandalay. Ordenou sua construção para governar o reino desta nova capital.

Os britânicos, que a essa altura já estavam pilhando a Índia, passaram o século XIX quase inteiro tentando expandir seus domínios para cá. Mindon esforçou-se em modernizar o país (daí Mandalay ser toda moderninha), mas ele não resistiria aos avanços dos ingleses.
A criação desta cidade foi, em si, uma tentativa de romper com “atrasos” do passado e abraçar novidades que se viam tão possantes com o imperialismo europeu na Ásia. O então Reino da Birmânia abraçaria as máquinas da revolução industrial, navios a vapor, etc. Como fizeram o Japão e outros. Porém, aqui havia interesses imperiais (e de extração de recursos naturais, sobretudo boa madeira para a esquadra britânica) muito mais possantes.
Ao ano de 1885, a monarquia birmanesa capitularia diante dos insaciáveis britânicos. A Birmânia se tornava parte da mesma colônia ou vice-reinado que incluía Índia e Paquistão atuais — o Raj britânico. No meu post em Yangon eu tratei um tanto sobre isso, mencionando o livro Dias na Birmânia (1934), de George Orwell.
As obras reais da época permanecem visitáveis aqui em Mandalay, mas palácio foi todo bombardeado pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial. Na sua doutrina de “a Ásia para os asiáticos”, os japoneses conseguiram ocupar este país em 1942 e só sairam com a derrota em 1945. O domínio britânico, porém, pouco se sustentaria, e logo em 1948 havia um Myanmar independente.
O palácio do século XIX foi reconstruído pela ditadura militar na década de 1990, mas as opiniões sobre a qualidade do trabalho variam. Eu acabei optando por ir ver os templos autênticos.

Rumo ao Pagode Mahamuni (“o grande sábio”)
Este é um pagode que pré-data Mandalay. Ele já existia aqui antes de a cidade ser fundada. Ficava nas proximidades da cidade de Amarapura, um povoado à margem do Rio Irauádi e que um rei anterior havia criado para ser sua capital em 1783.
Com o tempo, Amarapura virou praticamente um bairro de Mandalay. Fica a vários quilômetros do centro, então vamos de tuk-tuk.


O Pagode Mahamuni não é um simples templo. Ele é praticamente um centro de peregrinação (no Ocidente, se diria “romaria”) de fiéis. Ele tem uma das imagens budistas mais bem-quistas da região, que alguns dizem datar do tempo do próprio Buda.
Há portanto todo um complexo de lojas (vulgo, barracolândia) ao redor do lugar, dentro como também fora.
Desde meados de 2019, cobra-se uma tarifa de 5 mil kyats (aproximadamente USD 4) aos visitantes estrangeiros. Ainda que eu tenha certa hesitação em pagar para entrar em sítios religiosos, c’est la vie. Eu, afinal, aqui vim mais como turista que como fiel.



É aqui no pavilhão central que você tem a sagrada figura do Mahamuni — uma imagem budista que pré-data este templo em muitos séculos.
Não se sabe ao certo de quando ela é. Em idos de 1040-1070, o rei birmanês em Bagan tentou sem sucesso levá-la para lá, o primeiro registro escrito que se tem dela. Mahamuni ficava até o fim do século XVIII em Arakan, o que era um reino independente no litoral do país. Conquistado pelos birmaneses em 1784, a imagem foi trazida para cá como espólio.
De acordo com a lenda e a crença popular, a imagem teria sido moldada com o Buda ainda em vida, quando ele passou por lá e se sentou para meditar por 7 dias.
Na oportunidade, um escultor arakanês teria moldado a imagem. O Buda, impressionado, a teria imbuído com sua energia espiritual e assegurado que ela duraria 5 mil anos.
Ainda que muito provavelmente se trate de uma alegoria, e imagem não seja tão antiga assim, ela segue sendo fielmente venerada pelos birmaneses.




O ser humano é uma coisa curiosa. Buda foi pobre por escolha, a ponto de sofrer de inanição, deixando para trás as riquezas palacianas onde viveu até os 29 anos.
Aí as pessoas e lhe recobrem com todo o ouro que ele dispensou. Igualzinho fazem com igrejas de São Francisco, outro que fez voto de pobreza, também recobertas de ouro.
A polêmica maior aqui, porém, é que só homens podem entrar no recinto interno do pagode. É algo que se vê também em alguns (não todos) outros templos budistas, em Myanmar como na Tailândia e em outras partes.
O tema do machismo no budismo não é muito diferente dessa discussão no cristianismo ou em outras religiões. Buda não escreveu nada — como tampouco Cristo ou Maomé. Os ensinamentos de todos estes foram transmissões orais por décadas ou séculos, quando então diferentes pessoas resolveram escrever o que tinham na cabeça.
No caso do budismo, como no cristão, houve várias traduções. Buda, como Jesus, não falava nenhuma das línguas nas quais seus ensinamentos estão escritos.
A minha impressão é a de que esse sexismo é muito mais de um milenar efeito do patriarcado, contexto social no qual a religião foi criada enquanto tal, e resultado de como os ensinamentos budistas foram interpretados. Afinal, esses interpretadores e doutores das leis quase sempre foram — e em grande medida ainda são — homens.

O Mosteiro do Palácio Dourado (Shwenandaw Kyaung)
Eis a atração mais popular (entre os turistas) de Mandalay. Foi aonde eu parti, ao Mosteiro do Palácio Dourado (Shwenandaw Kyaung, ရွှေနန်းတော်ကျောင်). Que já não é mais dourado, mas segue belo.
Trata-se de uma edificação de 1878, feita sob ordens do último rei birmanês (Thibaw Min) toda em madeira escura de teak (Tectona grandis), traduzida ao português como teca, portentosa árvore nativa aqui do Sudeste Asiático.
Enquanto os britânicos caíram em cima dessas árvores para construir navios, a monarquia birmanesa a utilizou para construir palácios. Neste caso, um lugar de meditação para o próprio rei. Leva o nome de mosteiro, mas na prática era um lugar de retiro real.
Dizem que a edificação era recoberta em ouro — daí seu nome. Essa cobertura dourada, entretanto, se desgastou com o tempo. Hoje o que temos é a madeira nua, o que talvez confira beleza ainda maior à construção.
Eu vim de moto-táxi, abordando alguém na saída do Pagode Mahamuni. Vamos que vamos.



O mosteiro dourado está compreendido num ticket de 10.000 kyats (apr. USD 7) cobrado para visitar a dita “Zona Arqueológica de Mandalay“.
As coisas aqui em Myanmar operam muito nesse esquema de tickets que incluem várias coisas. Esse dá acesso aqui ao Mosteiro do Palácio Dourado, ao Palácio de Mandalay, às ruínas históricas de Inwa nos arredores da cidade, e dizem que a uma série de outros pagodes que ninguém sabe ao certo quais, pois esses lugares aí são os únicos que realmente pedem. Você pode adquiri-lo em qualquer uma dessas bilheterias.




O mais belo são o exterior e seus detalhes, mas dentro é bonito também.



Mais atrás dali, numa área adjacente, há um grande templo moderno que os fieis também visitam. Dentro, é apenas um vão, mas há belas vistas nos arredores, com a arquitetura em destaque.


Depois de ponderar a situação humana, eu daqui parti rumo ao terceiro e último templo do dia, o Pagode Kuthodaw, do tal “maior livro do mundo”. Tomei um tuk-tuk, e em 10 minutos eu já estava lá.
O Pagode Kuthodaw — do maior livro do mundo
Note-se que eu ainda não havia almoçado, embora a tarde já começasse a cair. Por sorte, umas barracas à entrada do pagode prometiam-me almoço.
Numas mesas sobre o chão batido por debaixo das árvores, cachorros dormiam, passeavam, e umas mulheres birmanesas conversavam animadamente ao que uns visitantes terminavam de tomar algo. Fui olhar o que era aquilo.

Vi a menina sorridente bater com gosto uns quatro abacates, leite condensado, um líquido transparente que — oxalá — deve ter sido água, mais o que me pareceu ser um punhado de sal. (Branco e fino daquela forma, se não era sal só podia ser ou talco ou cocaína, para já deixar o smoothie de abacate turbinado.) Eu deveria imaginar que dentro em breve, após a visita ao templo, eu estaria ali de volta para experimentar aquilo.
É curioso, as birmanesas têm uma certa joie de vivre (alegria de viver) que eu nem sempre enxergo nas culturas asiáticas. Enfeitam-se dos pés aos cabelos, apesar de pobres, e não é raro ouvi-las cantando na rua.
O idioma pode ser completamente diferente, mas sua linguagem corporal curiosamente era muito parecida à das brasileiras de baixa renda conversando por aí.
Bom, vamos primeiro entrar no pagode para ver o tal maior livro do mundo. (Em tese, a entrada aqui está inclusa no mesmo ticket combo de 10.000 kyats, mas aqui eu nunca vi ninguém pedir. Você vai entrando e pronto.)



Eu ali passaria um tempo. Apesar da fome, há outras motivações na vida. Fiquei negociando uma imagem talhada de madeira do Buda deitado até quase escurecer. Acabei comprando na saída. A moça me contava toda uma história sobre como o avô dela, artesão, havia começado a talhar a imagem, faleceu, e o seu pai então terminou a tarefa.
Se non è vero, è ben trovato, como dizem os italianos. (Se não é verdade, foi bem encontrada a narrativa.) A imagem hoje está comigo, e a história é nossa.



Sim, e cadê o tal “maior livro do mundo”, afinal? Eu confesso que estava esperando um livro enorme, mas não é bem assim. Consigo imaginar o ponto de interrogação nas suas cabeças.

Dentro de cada uma delas há uma pedra — como se fosse uma lápide — com uma página das escrituras budistas do cânone Pali, traduzido à língua birmanesa. São as escrituras do budismo tibetano (de linha theravada), e gravadas aqui no mármore.
Sim, você já entendeu. Cada uma dessas casinholas tem uma página, daí o livro estar escrito por toda essa área e ser o maior do mundo. (Também achei tapeação, ou “chuncho” como diria um amigo paranaense.)
A área, no entanto, é bonita. Você quase se perde entre as estupas brancas e algumas árvores, criando uma espécie de jardim celestial — nome apropriado de um cemitério lá de Feira de Santana. Eu ficava tentando me lembrar que aqui não tem ninguém enterrado, mas textos santos.




Eu assim terminaria o meu dia em Mandalay, embora não antes de ir fazer uma refeição birmanesa — acompanhada do suco de abacate, com o que quer mais que haja mais dentro — à saída do pagode.
Gosto de verificar como as coisas são. De verdade, para além dos estereótipos. Talvez seja por isso que o Sudeste Asiático me encanta tanto. Sua gente curiosa, e sua religião tão vivida, distinta da idealização dos livros-texto ou da imagem que fazemos.
Eu não deveria ter me surpreendido quando vi o monge no jogo de tabuleiro com o idoso na praça. Sentei-me ali perto para apreciar o abacate e a vida. Dele eu falo melhor quando tratar dos comes birmaneses no post seguinte. Já da vida a gente fala sempre; não é uma coisa que acabe.

Uaaauu. Nossa!… Pelo visto tem de tudo em Mandalay. Quanta beleza, quantos monumentos espetaculares, quanta pobreza, quanto banzé, quanta confusão, que rodoviária horrorosa, quanta falta de estrutura, quanto abandono do povo… Ô coitados. Quanta bagunça e pobreza . As pessoas não conseguem nem descer!… E que horror aqueles transportes , apinhados de gente, onde você não sabe quem é gente nem mafuá. Jesus. Coitados. Haja pobreza e desigualdade!… Jesus.
Tantos belos lugares, monumentos, estupas e pagodes espetaculares, com direito a estátuas com ouro de verdade, e de resto tanta pobreza, e discriminação com as mulheres. Quel’hourreur. Coitado de Buda. Ô machismo infeliz.
Francamente, Marion, fiquei receoso de seu Bhalla aparecer para te pedir alguma contribuição ou um atrasado imaginário.