“Oi? Como é isso?“. Comer folhas de chá deve soar a muitos como o proverbial “fumar orégano”, mas lhes garanto que não só é feito como é também corriqueiro na culinária birmanesa. Se quiserem mais, eu ainda lhes digo que é gostoso.
Refiro-me às folhas de chá verde, que para quem não sabe vem da mesma planta do chá preto e do chá branco. São, simplesmente, processos diferentes de utilização das folhas e preparo. E, quem diria, aqui se comem elas.
Estamos em Myanmar, um país já pouco conhecido — que poucos ocidentais sabem apontar no mapa —, que dirá a sua culinária. Eu cheguei a pensar que ela fosse um mero misturão de influências asiáticas com pouca identidade própria, mas me enganei. Há muito de peculiar na culinária birmanesa.
Conte-me outra
A primeira vez que ouvi falar em comida birmanesa foi, na verdade, negativamente. Estava eu — há uma década atrás — na Índia quando, à mesa de Seu Bhalla (da família indiana com quem morei), a mulata moça dos Estados Unidos nos falava:
“Eu não entendo como é que um país localizado entre a Índia e a Tailândia, com duas culinárias tão ricas, consegue ter comidas tão estranhas.“
Lembro-me como se fosse hoje da cara dela comentando, vinda de lá após um período de voluntariado nos tempos em que o país ainda estava quase que hermeticamente fechado pelos militares.
Não preciso dizer que ela não gostou — teve pavor — da oleosa comida birmanesa, mas preciso dizer que ela exagerou na dose. Ou talvez não tenha experimentado muita coisa.
À época, tão recente quanto 2010, Myanmar (antiga Birmânia) ainda estava mergulhado na ditadura militar obscura, e era um país bem mais precário do que eu veria agora uma década depois.

Que bom que eu vim a Myanmar conferir sua comida com a minha própria língua, senão ficaria perdido nas impressões de outrem.
(Se você estiver a se perguntar por que “birmanesa” como adjetivo para Myanmar, ex-Birmânia, ou quiser esclarecer esta confusão de nomes, recomendo ler o meu post inicial aqui no país.)
A comida birmanesa envolve grande variedade de legumes, carnes, massas e temperos. Há arroz, mas também macarrão de trigo (e macarrão de arroz). Há feijões tipo fava de muitos tipos, assim como sopas (como é comum pelo Sudeste Asiático), mas também curries temperados com pimenta e especiarias. Ah, e leite de coco também.
Não tem como ficar muito ruim, exceto que eles capricham um pouco demais no óleo. Azeitam a comida feito português ou italiano se servindo de óleo de oliva (daquelas coisas a que você assiste na mesa e se pergunta se a meta era mesmo ter posto aquela quantidade toda ou se foi acidente).

O que é que vai ali dentro? O que é que eles usam? Que gosto tem, afinal?
Vamos lá. Os birmaneses usam especiarias semelhantes aos indianos, tailandeses e outros desta região: gengibre, alho, pimenta. Carregam no coentro como seus vizinhos do Sudeste Asiático, e não usam tanta pimenta-do-reino quanto os indianos.
Como os tailandeses, eles gostam de ficar contando sabores. “Esta comida tem quatro sabores: salgado, acre, doce, e apimentado“, disse-me certa vez — orgulhoso — um amigo tailandês. Eles aqui no vizinho Myanmar vão um pouco nessa mesma onda. Às vezes, vai um capim-limão (capim-santo) dentro também para acentuar o acre e dar sabor. Fica gostoso.
A boa mesa na culinária birmanesa
Come-se, em geral, numa mesa composta por múltiplos pratinhos pequenos acompanhando arroz branco. Tradicionalmente, a primeira colherada de arroz branco não é pra ninguém. Quer dizer, é reservada aos ancestrais como respeito. (Eles chamam este costume de u cha, ou ဦးချ se você quiser ler nas fantásticas letrinhas birmanesas.) Abaixo a refeição que bati fiz em Mandalay, no centro do país.

Muitas coisas ali, inclusive aquele prato de salada que inclui até quiabo fervido e rabanete cru para molhar no temperado molho no meio. Nada do outro mundo; os pratos cozidos da culinária birmanesa me atraíram mais.


Taca-se tudo com o arroz. Costumeiramente, virando os pratinhos sobre o arroz no seu prato, pois tradicionalmente se come de mão (exclusivamente com a mão direita, pois a esquerda é para outras necessidades), como na Índia. Mas não se preocupe que, hoje em dia, aos turistas e em geral nas cidades grandes eles servem tudo com talheres.
“E as folhas de chá?“, você me pergunta. Elas estão por toda parte. Bebe-se chá, e come-se.
Lahpet (လက်ဖက်) é como se chama o prato de folhas de chá (Camellia sinensis) fermentadas e, por que não, refogadas no óleo. Às vezes agregam alho, um salzinho e uma pimentinha.
Diga-se o que disser, fica gostoso feito escarola ou alguma outra folha escura cozida, só que algo mais fibrosa, que você vai mastigando e chupando o sumo temperado até engolir. Aqui eles as servem acompanhado de amendoins torrados e, às vezes, uns bolinhos fritos.


Esse jantar foi no Restaurante Mingalabar, a melhor recomendação de restaurante em Mandalay. Por menos de R$ 30, você pode se esbanjar com um arranjo imenso de pequenos pratos da culinária birmanesa. O que eu comi foi uma mera fração do cardápio.
O ambiente é gostoso, e o atendimento também é muito bom. Melhora sua experiência cultural aqui em Myanmar.
Coisas de rua da culinária birmanesa
Há também, é claro, como de praxe Ásia afora e sobretudo aqui no Sudeste Asiático, as comidas de rua para além dessa bonança dos restaurantes. Na rua, comem-se mais guloseimas e pratos rápidos, como as típicas sopas de macarrão (noodle soups).
A mais típica delas em Myanmar é a mohinga, que cheguei a mostrar no meu post inicial em Yangon. Quase uma sopa nacional, ela é uma mistura de temperos com pedaços inglórios de peixe — e que me lembra um caldo de sururu com macarrão.

Há outras típicas, como a ohn no khao swè, uma sopa de frango com macarrão no leite de coco, e um infindável número de opções na rua, em geral por preços hiper camaradas equivalentes a USD 1 ou 2.


Nestas pegadas de rua, saiba que a folha de chá às vezes vai no refogar do arroz também, como se fosse a vinagreira que se usa para fazer o arroz de cuxá no Maranhão. (Asseguro-vos de que o nome “cuxá” nada tem que ver com o chá que os birmaneses usam no arroz deles cá. Certas coisas na vida são realmente coincidência, ou pegadinhas de Deus.)
O arroz com o chá birmanês fica muito bom, ligeiramente acre. Falta-se o camarão do arroz de cuxá maranhense, mas entra uma pimentinha cuja potência varia de acordo com sua cozinheira.
Quem leu meu post anterior em Mandalay se lembra eu falei que comi na saída do templo. Pois foi um belo prato de arroz com folha de chá, acompanhado do suco de abacate que ali descrevi.

Ao que eu ali respirava após a refeição, sabendo-me no meu último dia em Mandalay e me preparando para deixar Myanmar na manhã seguinte, um cachorro dormia dentro de um vaso de planta. Duas cópias dele que deveriam ser seus familiares passeavam por aquela lanchonete de terra batida. Eu juntava coragem para tomar o meu rumo.
Epílogo
Deixar o Sudeste Asiático sempre deixa saudades. Eu levava comigo na língua ainda os sabores da culinária birmanesa. Curiosamente, meu voo seria com conexão em Bangkok, na Tailândia, cuja comida tem suas semelhanças com as daqui. A culinária tailandesa e a culinária birmanesa são irmãs, mas não são gêmeas.
Minha conexão não era rápida; ela exigia dormir uma noite em Bangkok, o que fiz próximo ao aeroporto Don Mueang. Não podendo perder a deixa, tomei uma tom yam na rua — sopa tailandesa com leite de coco e capim-limão, comumente acompanhada de camarão (o que a faz tom yam goong, caso você queira treinar seu tailandês).



Ah, eu não tive como não fotografar o cachorro dormindo no vaso de planta lá em Myanmar. Valeu, Sudeste Asiático. Hasta siempre.

Ihhhhhh, que maravilha de postagem… Amo a comida do SE asiático: bonita, colorida, e gostosa , diversificada, com muito arroz hahaha. Só um pouco apimentada demais. mas se leva: pode para por mais leve, sopra um pouco haha mas vale a pena. Não conheço essa ai da antiga Birmânia mas essa postagem do senhor me deixou muito bem impressionada e com vontade de experimentar. Tem uma cara ótima, tirando o óleo hahah e certamente maneirando a pimenta haha . Nada de épicée a mort. Mon Dieu.
Amei a foto de abertura. Que mesa, meu jovem amigo!.. Digna de um viajante, amigo do SE asiático e apreciador das suas guloseimas.. E que belo restaurante. Uaaauu très chic. Um sonho mesmo. E essas iguarias lindas, coloridas e pelo visto saborosas, nos deixam com água na boca. Uuuuuu. E a cara de feliz do senhor é ótima…. diz tudo… haha. O senhor parece um califa, só falta o turbante haha
Nossa, adoro arroz frito a la SE asiático. e esse conjunto está também de dar água na boca. Imagino que deve estar delicioso.. Bon appètit mon ami.
Essa beringela cozida no tempero e servida na folha de banana, como diz minha amiga, é tudo de bom haha. Maravilha de comilanças. Uma ótima mesa mesmo.
Hahaha , adorei o bonitinho peludo de 4 pés cochilando no vaso de planta.. Uma gracinha.
E que beleza, o senhor ainda passou por Bangkok!…Oh saudade!… Estive há um tempo atrás lá, uma vez, com uns amigos e adorei. Delicioso esse café com leite condensado. A comida de lá é uma delicia. O senhor tem toda razão. Saborosíssima.
Valeu, meu jovem amigo viajante. O senhor tem razão tem que provar para saber e falar.
como o senhor, eu também, simpatizo muito com a Asia e sobretudo pelo belíssimo e rico, apesar de pobre, SE asiático. Amei. Tenho muita vontade de voltar àquela linda região.
Valeu jovem viajante. viajar com o senhor é muito bom.