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Bahia Brasil

Mucugê e a Rota das Frutas Vermelhas na Chapada Diamantina (BA)

Mucugê é talvez a cidade mais fofinha que há na Chapada Diamantina (Bahia). Longe de ter a badalação da sua irmã maior Lençóis, ela é hoje um exemplo bem-conservado daquela tranquilidade pitoresca do interior do Brasil. Casario colorido bem mantido, calçamento de pedras nas suas poucas ruas, e gente simpática.

Achei Mucugê encantadora porque ela me lembra de um Brasil antigo que vem sendo suprimido, aquele de antes de as praças do país virarem pontos de ônibus, e de antes de o patrimônio arquitetônico ou cultural ser derrubado para se transformar em supermercado ou estacionamento.

Sempre que vou ao México ou outros países da América Latina, me impressiono com a maneira como países menos ricos que o Brasil têm o esmero de manter seu patrimônio urbano. Mucugê me deu a esperança de que isso, no nosso país, não está morto — está enfermo, mas ainda há brasas sob as chamas enfraquecidas. Quem sabe, feito fogo de monturo, ele não reage.

Mucugê gostosamente mostra uma combinação de tradição, turismo que valoriza o patrimônio, e desenvolvimento sustentável. A pedida é agora que ela lance uma Rota das Frutas Vermelhas que valoriza a agricultura familiar empreendedora na Bahia. Inusitado, dado que estamos quase no Sertão, mas prometo-lhes que as frutas são maravilhosas.

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Pracinha com seus jardins bem mantidos no coração de Mucugê.
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Pousadinha simpática numa das ruelas da cidade. Há infraestrutura turística, embora tudo seja modesto aqui.

Situando Mucugê

“Mucugê” vem do nome indígena de uma fruta homônima, o mucujê. (Com J, como pela nova norma ortográfica seria também o nome da cidade e de outras localidades de etimologia indígena. Como esse é nome próprio, a tradição o mantém com G até o momento.)  

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Fruto do mucujê, mais ou menos do tamanho de uma goiaba não muito grande. Dizem ser saboroso, mas eu ainda preciso comer. Não estava na época. (Foto do Canal Rural.)

Aqui até o século XVII viviam os índios Maracás, que dão nome a um município baiano aqui próximo. 

Com o adentrar dos portugueses pelos sertões do Brasil, consta que entre 1659 e 1671 derrotaram os índios e começaram a lotear as terras daqui entre grandes donos que dariam origem aos “coronéis”.

Não demorou demais até encontrarem ouro nesta região em 1710, na mesma sanha que levou ao desenvolvimento das Minas Gerais. Em 1844, o afilhado do coronel José Pereira do Prado achou aqui o primeiro diamante, o que levou à exploração geral deste lugar que viria a ficar conhecido entre nós como Chapada Diamantina.

Dizem alguns que Mucugê — à época chamada Santa Isabel do Paraguaçu — chegou a abrigar dezenas de milhares de pessoas no tempo desse garimpo. Foi um ciclo que, como é típico na História brasileira, deixou marcas, sangues, mas uma riqueza efêmera que um dia acaba e fica tudo ali.

Quando o auge econômico terminou, a pobreza deste lugar no século XX levou a um grande êxodo populacional. Somente nas décadas recentes a população voltou a aumentar um pouquinho, chegando aos quase 9 mil atuais. Desta vez, a economia é movida pela agricultura de alto valor e o turismo — algo que se espera que venha a ser mais sustentável.  

Mucugê no século XX
Foto de Mucugê em algum momento do século XX. Data desconhecida. (Acervo histórico do IBGE.)
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A mesma edificação em 2021, restaurada e conservada.

Um bom trabalho de restauro tem o seu valor. 

Mucugê hoje — centro de agro e ecoturismo

A cidade de Mucugê hoje é uma fofura. Advirto a quem gosta de badalação que ela pode não ser o que você procura (opte, neste caso, por ficar em Lençóis). Mucugê se revelou a mim um lugar pacato, bonitinho, quase com jeito de presépio ou de cidade cenográfica de novela de época. Talvez seja esse exatamente o seu maior charme.

Há relativamente poucas opções de acomodação ou restaurante, mas talvez o suficiente. Vale a pena dormir aqui pelo menos uma noite se você puder. (Só note que, em feriadões, os donos das acomodações costumam só aceitar reservas para mais de uma noite. Averigue.)

Há algumas lojinhas de artesanias e, talvez o mais importante: muitas delícias gastronômicas típicas por um preço bem em conta. 

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A arrumadinha praça principal de Mucugê — oficialmente Praça 15 de Novembro, mas também chamada de Praça Coronel Propércio.
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Flores.
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A igreja matriz da cidade, que parece de lugar cenográfico da ficção onde à noite haveria “causos” de lobisomens ou coisa parecida. (Lembro-me de ter crescido ouvindo essas histórias que muitos contavam com imensa credulidade).
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A vendinha de artesanias aqui no canto.
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A doce ruela com um casario colorido bem conservado, onde turistas e moradores antigos se misturam.
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Cada fofura maior que outra.

Uma curiosidade é que, em pleno meio da praça principal, há um misto de carrinho de mão e caixão que — diz a lenda — é usado para levar bêbados para casa. 

Há escrito o que me lembra versos de cordel.

“Queria ser como você, Não ter razão para beber

Bêbado aqui é cuidado, Cada um é dono do seu, E é respeitado

Não durmo, Desmaio” 

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Caixão com rodas para carregar bêbado no centro de Mucugê.
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O coreto da cidade, numa outra praça, e as colinas lá atrás.
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E, dos melhores tipos de lugares: as vendinhas de produtos típicos da agricultura familiar local.

A Rota das Frutas Vermelhas?

Ao menos é assim que alguns produtores locais estão começando a chamar a região. Curiosamente, não somente morangos como também framboesas, amoras e mirtilos têm sido cultivados aqui com sucesso. Não deixa de ser algo inusitado, dado que estamos formalmente na caatinga.

É que a Chapada Diamantina tem um clima próprio. Sua elevação gera um ambiente propício às frutas temperadas. (Eu chegaria até a sentir um pingo de frio neste dia, em pleno verão na Bahia!)

Essa foto acima, da casa com o morango à porta, é do pessoal do @sitiodogalera (é o Instagram deles, que você pode visitar e que estou divulgando aqui por pura apreciação pessoal). Eles não só vendem dessas frutas vermelhas in natura ou congeladas como também organizam passeios às plantações se você desejar ver a produção.

O melhor é que elas tendem a ser também orgânicas, portanto livres de agrotóxicos.

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Na lojinha do Sítio do Galera em Mucugê. É um exemplo que estou tomando — há vários produtores, vendedores, e doceiros aqui. É, inclusive, daqui da cidade o cidadão que inventou e patenteou o ketchup de morango. Em 2021 ele começou a ser vendido também em certos pontos de Salvador, e breve possivelmente deve aparecer por outras capitais.
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Estejam apresentados às framboesas de Mucugê (congeladas).
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As amoras da chapada. Frutas que por muito tempo a maioria dos brasileiros somente ouvia falar, dos contos europeus, sem nem saber que cara tinham.

Eu provei do tal ketchup de morango aqui em Mucugê. Ele tem um gosto curioso, levemente mais adocicado, e você consegue dizer que é de morango e não de tomate. Mais detalhes, só mesmo experimentando.

O que eu mais gosto de morango mesmo é a geleia. Eu moro na Europa há 12 anos, já morei no Canadá, e digo que poucas vezes comi geleia de morango tão boa quanto a de Dona Inês aqui em Mucugê.

Eu não sei qual o endereço dela, mas você está no interior. Faça as honras: pergunte a alguém na cidade e eles saberão lhe indicar. Daí basta bater à porta.

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Sua geladeira muda de figura depois de uma volta na Rota das Frutas Vermelhas, na Chapada Diamantina.

A minha experiência?

A minha experiência em Mucugê foi breve — um primeiro contato com um lugar aonde pretendo voltar para honrar os seus dotes ecoturísticos. São muitas cachoeiras e trilhas nos seus arredores. Por ora, eu basicamente visitei a cidade em si. Pela pandemia, o Museu Histórico de Mucugê (também chamado Museu Municipal) e o Museu Vivo do Garimpo estavam fechados, mas poderão ser conferidos em breve (inshallah!).

Um lugar inusitado e que vi foi o Cemitério Bizantino, nos arredores de Mucugê.

O curioso é que ele é surgido pela mortandade numa epidemia. Em vez do coronavírus, foi o cólera em 1855. Proibiram-se, portanto, os enterros dentro ou nos arredores das igrejas, como era o costume.

Ali ninguém foi enterrado sob sete palmos de terra, mas em pequenos mausoléus brancos belamente edificados pelos ricos coronéis da época para os seus. Acredito que o nome de “bizantino” se deveu à semelhança percebida entre eles e as tradicionais construções de branco cal típicas da Grécia — matriz do Império Bizantino medieval.

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O Cemitério Bizantino de Mucugê sobre as rochas ao pé da colina.

(Se você se interessar, houve até uma reportagem do Globo Repórter em vídeo sobre esse lugar, naquela voz clássica de José Raimundo.)

São cerca de 2h desde Lençóis até Mucugê, passando no caminho por Andaraí. A própria estrada já lhe mostra das belas paisagens da Chapada Diamantina — embora mostre também da sua pobreza persistente.

Na estrada, ao passo que víamos colinas verdes no horizonte, cá mais perto da terra crianças erguiam cordas atravessadas de um lado a outro da pista como que a deter os motoristas para que lhes dessem esmola. Nenhuma extorsão — pois não é uma mera corda que vai parar um carro — mas um risco aos próprios envolvidos e do qual não parecem se dar conta.

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Crianças a pedir esmolas na beira da pista, às vezes estendendo uma corda de um lado a outro, como que para deter os carros.
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A pista e a vista.

Foi numa dessas que, tal qual aqueles jovens viajando de carro em filme norte-americano, nós paramos para comer num destes restaurantes de beira de pista: a Cabana Rustika. (Passem longe, a menos que seja para ver a lojinha.)

Eu deveria ter percebido que havia algo de azoado no ar quando notei a cacofonia de cigarras em pleno meio-dia. Parecia cenário de filme de Hitchcock ou Stephen King, daqueles em que os animais também ficam meio loucos.

Ou talvez seja eu imaginando demais. Era um barulho e tanto, contra o qual nos detivemos ali apenas pela fome. Ademais, o cardápio era rico e atraente. Só esqueceram de dizer que quase nada estava saindo.

Atenderia-nos uma mulher mulata de ar meio perturbado, com um boné azul-escuro e a tatuagem de uma marca de beijo no pescoço. Pedi-lhe um prato de peixe de rio.

Peixe nenhum tá saindo. Acabou. Ta esperando chegar.

Meu amigo arriscou um godó de banana, prato típico aqui da Chapada.

Godó não ta tendo não.

Chegava aquele momento em que você se vira para a pessoa e pergunta “Vem cá, o que é que está saindo, afinal?”

Acabei por conseguir um feijão tropeiro vegetariano que estava digno, e que só teria ficado melhor se não tivesse levado 1h pra chegar. Meus amigos pediram uns pratos com queijo e linguiça, além de um pirão de aipim falso que era pirão de leite.

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Meu feijão tropeiro vegetariano até que não estava mau.

Isto foi nas vizinhanças de Andaraí. Ali por perto, uma pedida recomendável é a Toca do Morcego — embora não para comer, mas para comprar rochas, artesanias e outros produtos pela metade do preço que cobram em Lençóis, senão menos.

Em Mucugê, também se acham cafés aqui da Chapada Diamantina nos mercadinhos da cidade por preços bem mais em conta que em Lençóis. Olhai e gozai dos cafés. Há múltiplas marcas e tipos.

Nestas estradas, que tantos recantos têm, veríamos um lindo pôr do sol após dar aquelas voltas pelas pitorescas ruelinhas de Mucugê. Paramos o carro a ver o astro rei decompor a sua luz em fatores primos no céu.

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O astro rei a lançar as suas últimas luzes do dia no caminho de Mucugê.
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O pôr do sol na Chapada Diamantina.
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O sol poente e a estrada.

Ainda, por puro atrevimento, passamos no escondido povoado de Igatu no caminho de volta, um outro reduto onde garimpeiros deram lugar a mochileiros nestas bandas.

À noite, vimos seu casario com suas manias bem-preservadas, nas salas onde imagens católicas se combinavam a retratos de família e uma televisão ligada. Às janelas inevitavelmente ao lado da porta, por vezes alguém, por vezes um cachorro a olhar.

Fazia frio. (Ó quão dessemelhante, Bahia. Ou talvez seja a nossa ignorância em julgar que vós sois sempre aquele calorão da costa ou dos sertões.) 

Acabamos por comer acarajés no prato, na praça, comprados de uma filha da chapada que foi morar em Salvador, aprendeu o que aprendeu, e que voltou cá já que lá durante a pandemia o comércio fechou.

Das frutas vermelhas ao acarajé — eita Bahia danada. Que tire os meninos das estradas.

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A noite em Igatu.
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O cachorro na janela, a tudo observar.
Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

2 thoughts on “Mucugê e a Rota das Frutas Vermelhas na Chapada Diamantina (BA)

  1. Ihhh que fofura essa cidadezinha!… Linda!… Arrumadinha, limpa, colorida, enfeitada, arborizada, ajardinada, florida, com pracinhas aprazíveis , com banquinhos, ambiente agradável, de belo casario antigo cheio de cor, alegre, parecendo que saiu de um filme de época. Que bonitinha. Bucólica quase. Com ar de cidadezinha do interior, pacata, e cheia de gente simples e simpática, como acontece pelo interior do Brasil. Parece que o senhor entrou na maquina do tempo e saiu numa cidade -presépio do inicio do sec. XX. Uma graça. Parece ser agradável a cidade. Gostei do jeito dela. Vivaz e simples. Belo casarão. A igrejinha parece saída de uma novela de época que foi levada há um tempo atrás na TV: Roque Santeiro. E o coreto, uma gracinha.
    Dei ótimas risadas com o tal caixão de carregar bêbado e com a pose do cachorrinho na janela apreciando o movimento, hahaha na outra cidadezinha.
    E que interessante essa rota das frutas vermelhas sem agrotóxico e provenientes de agricultura familiar. Um achado. São lindas as frutas. Parecem mesmo saborosas, suculentas, e o melhor, sadias.
    Esplendoroso esse por de sol. Espetacular. Lindíssimo. Paisagens Magnificas.
    E que triste essa perigosa realidade de crianças na pista parando carros para pedir ajuda. Um horror. Pobre país com essa situação em que se encontra.
    Esse anoitecer nessa outra cidadezinha está lindo. Muito bonitinha também essa outra cidadezinha.
    E que cemitério estranho!… Parece mesmo estruturas da Grécia.
    Lindíssima a região. Encantadora. Belíssimas paisagens.
    E que horror a história dessa comilança em circunstâncias estranhas na beira da estrada hahaha. Coisas de viajante hahaha ainda bem que pelo menos a do senhor veio a contento hahaha.
    Não conhecia a história da região. Muito interessante.
    Adorei a região e a postagem. Esse NE do Brasil é cheio de encantos.
    Valeu, viajante brasileiro. Que venham mais belezas.

  2. Genial como sempre, Marion.

    Tem anos que eu fui, na adolescência. O cemitério povoou minha imaginação.

    Te, Igatu, também, onde, na quaresma, ocorre o terno das almas.

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