Há um lugar onde meros 4 Km de mar separam a Suécia e a Dinamarca. De um lado, Helsingborg (Suécia). Do outro, Helsingør (Dinamarca). Se preferir aportuguesar a cidade sueca, vira Helsimburgo, embora esse nome seja tão usado quanto “viquingue”.
A semelhança dos nomes das cidades que se encaram em lados opostos do mar não é mera coincidência — nem acredito que haja ninguém que pense que seja.


Houve um tempo em que, neste estreito de Øresund [lê-se o O cortado como um misto de ê com ô], era Dinamarca dos dois lados, e torres altas faziam vigia a cobrar pedágio de quem passasse pelo estreito.
Esses Pedágios do Sund foram introduzidos em 1429 pelo rei dinamarquês, e chegaram a representar dois terços das rendas do reino. (Sund é uma palavra das línguas germânicas para designar estreitos braços de mar, atravessáveis a nado, como este aqui. Não há um equivalente bom em português que eu conheça. Chamam-se sounds em inglês — embora nada que ver com o significado mais habitual dessa palavra. Øre em dinamarquês ou Öre em sueco advêm de um termo antigo nórdico para cascalho, ou litoral de areia pedregosa.)
As duas torres medievais seguem de pé, hoje uma em cada país. A Suécia conquistou este lado de cá no século XVII, e rechaçou todas as tentativas de reconquista dos dinamarqueses (como expliquei melhor neste post anterior, sobre a cidade de Gotemburgo.) Conseguiu também isenção da cobrança do pedágio.
Daqui a pouco eu conto como é que Shakespeare entra nesta história. Por ora, entremos.

Helsingborg, Helsingør, e Hamlet
“Há algo de podre no reino da Dinamarca“, disse o personagem Marcellus, um dos sentinelas de Elsinore, a fortaleza danesa onde se passa a trama de Hamlet, obra mais extensa de Shakespeare.

Na peça shakespereana publicada em torno do ano 1600, aborda-se a história de um príncipe — Hamlet — cujo pai é assassinado pelo irmão, tio de Hamlet, que usurpa o trono.
A trama traz toda uma profundidade psicológica e moral, da relação de Hamlet com sua noiva Ofélia e suas hesitações em matar o tio usurpador.
É dele o famoso “Ser ou não ser, eis a questão“.
A obra trabalha uma lenda mais antiga, do século XIII pelas mãos do erudito Saxo Grammaticus (1150-1220).
Certamente, esse não era o nome dele, mas foi como entrou para a História o autor da obra Gesta Danorum, que fala dos feitos medievais dos dinamarqueses — a crônica de um povo. Consta ali o conto de Amleth, no qual Shakespeare se baseou.
A Elsinore de Hamlet, tudo indica, foi inspirada na Helsingør da vida real (com uma adaptação mais pronunciável do nome). Há lá um castelo que eu ainda preciso visitar, e quando o fizer falarei mais de Hamlet aqui.
Por ora, apontarei que hals nas línguas escandinavas da época quer dizer “estreito” ou “pescoço”. Já no censo de 1231 do poderoso rei dinamarquês Valdemar II, o vitorioso (você aí nem sabia que “Valdemar” era um nome dinamarquês, hein?), ele identifica os helsinger como “o povo do estreito”, este pedaço mais apertado aqui do Estreito de Øresund.
(Se o nome do personagem Van Helsing, o caçador de vampiros em Drácula, origina-se também daqui, eu não sei. Não seria de se estranhar, já que desde Shakespeare os britânicos e irlandeses se mostravam fascinados com referências à Dinamarca — de onde vieram os Vikings que os invadiram no século XIII e que fundaram a cidade de York.)

O fado dos daneses começaria a “entornar” a partir dos idos de 1600, como cheguei a detalhar antes. No bojo da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) Europa afora, a Suécia se deu muito melhor que a Dinamarca. Aproveitou-se para tomar dela as terras da costa oriental do estreito, que deste lado de cá seria agora Öresund.
Assim Helsingborg, este lugar costeiro habitado desde pelo menos 1085, se tornaria sueca. É hoje uma cidade de mais de 110 mil habitantes — maior que sua gêmea dinamarquesa do outro lado.
Há bandeiras e estandartes com as cores suecas por toda parte, como que ainda a mostrar quem manda deste lado de cá — mesmo 400 anos depois. Como sempre observa um autor estadunidense que leio, “Os europeus têm memória longa“.



Para situar vocês aí que (como eu) nunca antes tinham ouvido falar na Batalha de Narva (1700), permitam-me rapidamente explicar.
Como a Suécia havia se expandido e estava se engraçando muito nos idos dos anos 1600s, quando o menor de idade Carlos XII ascendeu ao trono, seus vizinhos aproveitaram para atacá-la em bando.
Juntam-se Rússia (com Pedro, o Grande), Saxônia (com Augusto, o Forte, de quem tratei na minha visita a Dresden), e, claro, a Dinamarca querendo de volta estas terras que perdeu.
Narva fica hoje na Estônia. Ela era uma posse sueca nos Países Bálticos, e acabou sendo palco desta rebordosa.
A Suécia, assistida pela Inglaterra e pela Holanda, tratou logo de render os dinamarqueses aqui perto. A batalha principal, porém, foi contra os russos em ascensão. Mesmo com apenas ¼ do efetivo russo, os suecos os venceram em Narva em 1700. (Perderiam-na, porém, na Segunda Batalha de Narva em 1704. Os pobres estônios só viriam a sair da esfera russa em 1991, com o colapso da União Soviética, sua independência, e posteriormente entrada na União Europeia em 2004).
Germânicos e poloneses depois expulsariam os suecos também de outras posses que estes tinham lá do outro lado do mar, onde hoje são Polônia e Alemanha. Os suecos, contudo, conseguiram preservar as sua integridade territorial deste lado de cá, onde é a Suécia de hoje.

Era ainda fim de março quando eu cheguei aqui a Helsingborg, e a água seguramente estava gélida — eu nem me atrevi a experimentar.
Vim casualmente encontrar uma amiga holandesa que passava por aqui, como passavam pela Suécia os holandeses de antigamente, e me aproveitei para vê-la. Vi também a cidade, embora Helsingborg seja pequeno lugar que se vê em algumas horas.
Embora estejamos na Escandinávia, não pense você que aqui faz frio o ano inteiro ou que as pessoas não vão à praia: Helsingborg tem um pleno ar de cidade costeira, com seu centrinho a 100m do mar e aquela inconfundível brisa que sopra das águas. Num dia de verão, faz-se veraneio aqui.

(O engraçado é como eles imaginam ser as praias tropicais, que não são bem assim como esse tipo de planta na areia…)
Como era ainda início da primavera quando eu vim, o que significa sol mas temperatura de seus 5-10 graus, tomei um café com a minha amiga e fomos até o Kärnan, como é chamada a torre medieval dos dinamarqueses — que segue de pé.




Helsingborg tem ainda uma Igreja de Santa Maria (Mariakyrkan) também da Idade Média, e você nota suas semelhanças com a torre.
Essa igreja foi fundada pelos dinamarqueses aqui ainda no século XII, num estilo romanesco que depois seria substituído (no século XV) pela edificação gótica que se vê hoje.







E foi nessa que eu me deparei com a ferrari vermelha antes de ir embora. “Oi? O que é isso aqui?”, você se pergunta duas vezes quando está inocentemente andando pela rua e esbarra n’algo assim.
Parecia até que tinham vindo me buscar.

— “Eu não sabia que você ligava pra carro“, disse-me a minha amiga.
— “E não ligo mesmo não, mas isso não é simplesmente um carro — é uma ferrari“, retruquei.
Ela ficou meio sem entender. Ser ou não ser um carro, não é a questão. O que importa é que é bonito. Hamlet concordaria comigo.