Era uma manhã destas tropicais em Bali, dessas em que você acha que talvez vá chover, mas não chove.
Ainda bem, pois hoje seria dia de começar a percorrer o interior desta magnífica ilha num tour.
Como eu sou de sorte, aconteceu de coincidir com um dos muitos festivais hindus que aqui têm lugar, este o Festival de Saraswati, deusa hindu das artes e do conhecimento.
Adoro conhecer estas festas populares devocionais, seja qual for a religião de onde eu esteja. Ver de perto a simbologia das pessoas, seus costumes e tradições.
Hora de ver gente. Povo. E o que eles por aqui fazem.

Um pouco sobre o hinduísmo em Bali
O hinduísmo, como todos sabem, vem da Índia. Ele lá surgiu em tempos imemoriais. Em vez de ser uma religião organizada por alguém e seus seguidores (como o budismo, o cristianismo, ou o islamismo), o hinduísmo é um tanto como a religião tradicional chinesa ou as religiões brasileiras de matriz africana: surge espontaneamente, ao longo dos séculos, pelas práticas devocionais das pessoas, e os mitos e costumes vão se construindo.
O hinduísmo começa a fincar raízes nestas ilhas do Sudeste Asiático por volta do século I d.C. Trazido por intercâmbios comerciais com as Índias, ele vai se misturando às práticas animistas tradicionais — ou seja, a devoção aos espíritos da natureza, às montanhas e vulcões sagrados, etc.
Bali, sendo uma ilha relativamente pequena (do tamanho do Distrito Federal brasileiro) a leste da grande Java, ganha maior relevância quando muitos nobres javaneses se mudam para cá.
Isso ocorre nos idos dos séculos XV e XVI com a expansão do Islã em Java.
Nos idos de 800-1300, havia já muitos vestígios hindus e budistas em Bali. Em 1343, a dinastia javanesa dos Majapahit conquista Bali e faz dela parte do seu território. Ela, porém, cai diante de sultanatos islâmicos crescentes em 1527. Bali se torna então independente e vira um refúgio dos hindus.


O hinduísmo balinês foi salvo pelo gongo da chegada dos europeus à Indonésia no século XVI. Primeiro os portugueses comerciando especiarias, e depois os holandeses fazendo de quase toda a atual Indonésia sua colônia (até 1949).
Não vou ficar aqui vangloriando o imperialismo europeu na Ásia, mas — como digo reiteradamente que não sou maniqueísta, pois acho isso certa preguiça intelectual — preciso reconhecer que foram os holandeses quem deram um basta na obliteração que os islâmicos aqui pretendiam fazer das demais religiões.
É claro que esses mesmos holandeses, em tempo, escravizariam os balineses para seus serviços. A realidade é sempre complexa. Os balineses se tornariam típicos escravos domésticos — como ocorreu aos africanos nas Américas — das famílias coloniais holandesas em Java, na sua capital colonial que chamaram de Batávia (atual Jakarta).
Bali, porém, se manteve hindu. Enriqueceu-se culturalmente das muitas práticas e artes hindus javanesas, como a dança, o teatro, a arquitetura e outras coisas que vos mostrei em Yogyakarta e Prambanan há pouco.



Se você vê a decoração com muito branco e amarelo, como verá também nas vestes das pessoas daqui a pouco, isso é porque são as cores de Saraswati, a deusa hindu das artes e do conhecimento — celebrada na ocasião da minha visita.
Como comentei no post anterior, os balineses têm um calendário lunar de 210 dias, o que faz com certos festivais “anuais” se repitam num mesmo ano civil.
Saraswati é comumente retratada como uma mulher de quatro braços, cada qual com a sua simbologia. Uma mão segura um rosário, outra um livro, e com as demais duas ela toca um instrumento indiano de cordas chamado vina.
Na mitologia hindu, ela é a mulher de Brahma, o deus criador. Este é frequentemente retratado com 4 cabeças — a simbolizar os quatro Vedas (textos sagrados), quatro pontos cardeais, etc.
A simbologia dos quatros braços de Saraswati é que ela é a ação que advém dessa energia do deus criador. Seus braços representam: a noção (manas), o raciocínio (buddhi), a imaginação ou criatividade (citta), e a auto-consciência (ahamkara).

Templo Besakih (o maior de Bali) na ocasião do Festival de Saraswati
Besakih é o maior dos templos hindus na ilha de Bali. Seu nome significa “felicitação”, uma corruptela de basuki em sânscrito — a língua ancestral dos textos sagrados do hinduísmo.
Ele é popularmente conhecido como “Templo-Mãe” pela sua importância como sede mais importante do hinduísmo balinês. Sabe-se que quando os javaneses primeiro invadiram Bali em 1284, ele já estava aqui.
Ele se tornaria um templo de estado quando Bali fica independente de Java no século XVI e é governada pela poderosa dinastia Gelgel, que anda sendo muito lembrada nestes tempos de pandemia.
A minha visita se deu algo antes da hecatombe sanitária, por isso sem preocupações com aglomeração. Ainda bem, pois nos aglomeraríamos bastante aqui.

O complexo deste Templo Besakih fica a mais de 1.000m de altitude, nas elevações sul do Monte Agung — a montanha mais sagrada de Bali, um vulcão ativo.
Você nem nota muito, exceto que o tempo se fecha um pouco com a maior proximidade das nuvens, como você vê na foto. A temperatura cai um tiquinho.
Ainda de carro com o guia, víamos procissões de toda sorte; as pessoas a caminhar paramentadas com oferendas de frutas, flores e dinheiro. Parecia uma romaria hindu rumo ao templo. Se todos iam mesmo para lá ou alhures, eu não sei.




Aos carros não é permitido chegar até a entrada do templo; é preciso deter-se num estacionamento circundado de lojas e com uma bilheteria.
Como visitante estrangeiro, você paga um ingresso (60 mil rúpias indonésias, o equivalente a meros USD 4) que inclui carona de moto desde o estacionamento de carros até a entrada propriamente dita do complexo ladeira acima.
Antes de tomar rumo, porém, é preciso vestir um sarongue, um pano tradicional que você amarra à cintura como um saião. O sarongue é algo mais comum no budismo que no hinduísmo, mas eles aqui em Bali sofreram das duas influências e, portanto, fazem uma mistura.
É preciso vestir um ainda que você esteja de calças compridas — o que era o meu caso. O nosso guia trouxe para emprestar, mas se não você pode alugar por aqui. Não há dificuldade, embora para andar eu ficasse com certo receio de pisar numa das pontas do pano.
Ouviu-se dizer que eu andava a passos curtos como se estivesse cagado.



Entre turistas, balineses fiéis, e fiscais de plantão, havia centenas de pessoas pelo complexo. Uma área ampla, asseada, de pisos de concreto margeados por gramados bem-cuidados onde as pessoas se sentavam para olhar o celular ou conversar.
Balineses marchavam como que vindos de longe, aquele ar de peregrinos trazendo coisas.

Os trajes típicos faziam com que fosse um espetáculo ver as pessoas passarem — seus trajes ricamente coloridos contrastando com a simplicidade de suas havaianas no pé.
(Antes de serem nossas, as havaianas já eram deles. Embora apareçam em diferentes culturas mundiais desde o Antigo Egito, as sandálias de dedo chegaram ao Ocidente via o Japão, trazidas pelos soldados norte-americanos no pós-guerra dos anos 50. Daí as pessoas antigas no Brasil as chamarem de “sandália japonesa”. Já eram comuns na Ásia.)

Os ciprestes desta altitude de clima sub-tropical competiam em altura com as torres dos templos, a imitar o Monte Meru, morada dos deuses na mitologia hindu. Seus telhados aqui são feitos com piaçava, um agregado balinês à arquitetura de pagodes trazida da Ásia continental.
Uma sequência de pequenas ou grandes escadarias se punham no caminho dos fiéis até o principal e mais alto dos templos lá adiante, com a torre mais elevada. Nas partes mais externas, ficavam como que as pessoas que já tinham entregue o que queriam e permaneciam por ali, crianças a brincar sob o olhar das famílias enquanto mulheres vendiam milho cozido.
Sim. Achei curioso ver. E, como o São João brasileiro, as festas de Saraswati se estendem por um período de vários dias. Como o calendário da festa varia no ano, não acredito que haja alimentos específicos da data, mas foi o caso pelo menos desta vez.



Eu olhava com curiosidade as oferendas que os balineses iam levando. Sobretudo flores, mas às vezes também alimentos e notas de dinheiro arrumadas em arranjos bem recortados.
Como é da prática comum também no budismo, isso serve ambos os propósitos devocional e social da religião. Esses alimentos e dinheiro, em geral, se tornam doações ou integram o trabalho de caridade dos templos — um trabalho que, aqui entre nós, me parece mais substancial que no Ocidente, com volumosas refeições gratuitas para pessoas carentes, etc.


Era hora de eu subir. Escadas, plano, escadas, plano, num trajeto margeado pelo branco e o amarelo do dia. Pessoas iam em vinham. Se nas fotos, por vezes, os lugares parecem até meio vazios, é que eu às vezes esperava um tempo para fotografar sem o bolo de gente na frente. Mas mostro uma para vocês verem.


É preciso observar que os templos balineses são em geral muito externos, a céu aberto. Não há grandes construções com interiores decorados como em igrejas, mesquitas, ou mesmo em templos budistas. Os templos hindus são costumeiramente mais decorados por fora que por dentro, e neste caso balinês têm mais áreas abertas que cobertas.
O mais belo aqui, a meu ver, é a grande — e íngreme — escadaria maior que leva aos grandes portais lá no alto, entrada para o recinto final. Uma escadaria margeada de jardins.


Hora de subir.

A vista lá do alto é surpreendente. A beleza de ver todo o perímetro, com as pessoas nas cores dos seus trajes a circular no ambiente de chão escuro, margeado por verde simples e sob um céu cinzento.




Eles não me deixaram seguir adiante, pois reservam o recinto interno cá em cima a quem vem orar e fazer devoção. Eu não quis mentir. Ademais, não há muito o que ver dentro.
Uma foto através do portão mostrava nada mais que uma área simples, de suas típicas plataformas cobertas porém arejadas, sem grandes imagens nem altares suntuosos.
Em verdade, eu não sei se muita gente sabe, mas foi somente após a campanha de Alexandre, o Grande, na Índia em 327-325 a.C. que os hindus e budistas tiveram contato com essa ideia (grega) de se fazerem elaboradas estátuas de suas deidades.
Se você hoje vê impressionantes estátuas de Buda por aí, deve isso ao Reino de Gandhara no norte da Índia, que na Antiguidade adotou e adaptou esse costume helênico. A partir daí é que os budistas passaram a fazer imagens realistas como as dos deuses gregos, mas os hindus nunca abraçaram muito isso. Às vezes o fazem um pouco hoje em dia, mas não é algo arraigado.


Hora de descer, absorvendo aos poucos as últimas vistas daquele lugar antes de ir embora.




São inúmeros os templos hindus em Bali, e eu ainda conheceria alguns outros, além de ver algumas das belas paisagens da ilha. O tour continua.
Uaauu. Meu jovem que maravilha de festa e de postagem. Quanta beleza, que movimento, que sobe e desce de pessoas, que lindos coloridos, que gente bonita e disposta a se engalanar, a andar e levar suas belas oferendas aos seus protetores e seres espirituais!… Que maravilha de manifestação popular religiosa, pacífica, harmônica na sua diversidade, multicor, tranquila, alegre e bela. Fantástico acontecimento.
E toda essa multidão, ordeira colorida, vistosa e bela se coloca respeitosamente diante da exuberante natureza, e dos seus vetustos, imponentes, pujantes,
magníficos templos, homenageando os seus antepassados, suas entidades, mantendo e preservando sua cultura, sua religiosidade, ímpares e singelas. Um espetáculo para os olhos e os corações.
Que beleza de festa. Sortudo o senhor, meu jovem amigo viajante. Parabéns pela postagem e pela oportunidade de nos mostrar essas belezas raras.
Hahaha, desculpe mas o senhor está engraçadíssimo de sarongue. hahaha.
E que portais magníficos. Este com flores vermelhas é coisa de Deus, com certeza foi inspirado pelos anjos. Belíssimo. Com o verde da natureza então, ficou mais bonito ainda. A piaçava penteada ficou um charme. Linda. E as pedras escuras completam a espetacular estrutura. A natureza parece em festa também.
Foto para a Posteridade, meu amigo. Linda.
Belíssimos os tons e coloridos das indumentárias. E que bom que as oferendas são destinadas a quem precisa.
Vale comentar que mesmo não sendo ricos ainda dividem o que tem, inclusive com dinheiro em espécie. Exemplo de religiosidade participativa, que falta em muitas das ditas Religiões de massa, sobretudo do lado de cá do Ocidente. Aqui prevalecem a riqueza das igrejas e suas empresas e a pobreza do povo.
Magnifico esse ambiente, bela esplanada, lindos monumentos, imagens e portais.
Ameei essa linda entidade de 4 braços, com seu belo pavão azul. Fascinante. Gostaria de ter uma figura significativa e bela dessa na minha casa. Transmite muita Paz. Encantadora.
Singelo esse interior dedicado à oração. Que maravilha!…
Esta foto com essa galeria de parassóis brancos e amarelos, o verde da vegetação, os elegantes ciprestes longilíneos e as espetaculares estruturas dos templos e portais ao longe está de uma beleza impar. Parece um postal. Perfeita.
Adorei a pose do senhor com o sarongue hahah. Parece o dono da bola hahah