Ghent, que os flamengos e holandeses escrevem Gent (e leem Rhent, como em o rato roeu a roupa do rei de Roma) é das cidades mais belas e pitorescas que há na Europa. É subvalorizada. Muito embora vários a conheçam de nome, acho que seu renome é insuficiente para a beleza e o calibre histórico que ela oferece.
Os belgas francófonos a chamam de Gand [Gã], e nós de línguas ibéricas acabamos por chamá-la de Gante. Uma histórica cidade de origem medieval, surgida nos idos do século VII, e que à altura do século XIII era a segunda maior cidade europeia a norte dos Alpes — menor apenas que Paris. Como eu digo, é uma cidade sub-apreciada no seu quilate.
Gante talvez seja a minha cidade favorita na Bélgica. Bruxelas, como capital belga e europeia, pode ser a que oferece mais coisas, mas sua muvuca lhe tira algo da elegância que poderia ter. Brugge (Bruges) é uma fofura, mas hoje cidade pequena essencialmente turística (não deixe de vê-la!).
Gante, por outro lado, é uma cidade de porte, turística mas também estudantil, com 470 mil habitantes e muita vida própria. É estilosésima com seus marcos e marcas de todo o último milênio, por onde caminham jovens intercambistas e tantos outros além dos turistas.



Embora o astral de Gante hoje remonte mais aos períodos gótico e barroco, suas raízes estão na Alta Idade Média dos castelos, monges, e cavaleiros.
Neste lugar que os celtas antigos chamavam de Ganda (“boca do rio” no seu idioma), monges cristãos estabeleceram abadias já no século VII, ambas dedicadas a missionários que andaram por aqui nesse século: Santo Amando e São Bavão, este último o padroeiro da cidade. Não são nomes muito conhecidos nos países latinos, mas são santos corriqueiros aqui na Bélgica e na Holanda.
O biógrafo do famoso imperador Carlos Magno (748-814), um erudito dos francos chamado Einhard, viria a ser o abade de ambas aqui em Gante.
A cidade, porém, seria seguidamente pilhada pelos Vikings depois, em 851 e 879, e foi somente a partir do século XI, integrando-se no medieval Condado de Flandres, que ela veio a prosperar.


Vale explicar um pouquinho do pano de fundo de como esta cidade tão especial se tornou o que é.
Gante, cidade comercial no medieval Condado de Flandres
É algo difícil explicar Flandres — ou a Bélgica como um todo — a pessoas nascidas no século XX, que fomos condicionados a enxergar o mundo todo em termos de países, bandeiras, e nações onde ali dentro todo mundo supostamente é igual.
Isso é uma abstração da nossa cabeça, não é como o mundo funcionou na maior parte do tempo — nem como ele funciona mais no século XXI, diriam alguns.
O que é a Bélgica hoje já é há pelo menos mil anos uma zona fronteiriça de culturas e governos.
Quase todos sabemos que a Europa na Idade Média era uma colcha de retalhos. As monarquias eram muito descentralizadas, e os monarcas eram por vezes de fachada. Sendo a era do feudalismo, certos pedaços de chão atendiam a algum nobre (ex. um conde, duque, marquês) e ao mesmo tempo a um soberano maior.
Na prática, porém, o suserano mais alto, fosse rei ou imperador, muitas vezes mandava bem menos que o nobre mais imediato, que estava ali mais perto da realidade local: no controle dos homens, das armas e da coleta de impostos.
Flandres era um pouco mais complicado, porque parte desse condado fazia parte do Reino de França (a chamada Flandres Real) e outra parte no Sacro-Império Romano Germânico (a dita Flandres Imperial). O que é a Bélgica hoje já é há pelo menos mil anos uma zona fronteiriça de culturas e governos. Aqui floresceu Gante, na riqueza desse encontro.

Flandres floresceu como um condado de facto autônomo entre os séculos IX e XIV, vinculado ao Reino de França, mas poderoso por si próprio.
Gante era a maior cidade da região. Seu esplendor e riqueza comercial se viam nas lindas e imensas catedrais que seriam erigidas aqui no século XIII: a Catedral de São Bavão (Sint Baafskathedraal) e a Igreja de São Nicolau (Sint-Niklaaskerk). Ambas parecem saídas de algum cenário de fantasia.




Essa catedral gótica de São Bavão é um esplendor por dentro, com certos detalhes renascentistas e neoclássicos que lhe seriam posteriormente adicionados — e que já mostrarei.
Aqui viria a ser batizado ninguém menos que Carlos V (1500-1558), o grande rei espanhol e sacro-imperador romano germânico do século XVI. Ele nasceu e cresceu aqui em Gante. (Você veja como nossa costumeira transposição de concepções do século XX para os outros tempos é imprópria: garanto que muita gente acha estranho que o famoso rei espanhol não tivesse nem nascido nem crescido na Espanha.)
Mais notável ainda nessa catedral, porém, é o impressionante painel de altar dos irmãos Hubert e Jan van Eyck. Completado ainda em 1432, o chamado Políptico de Gante (denotando uma pintura com diversas partes) é um retábulo com imagens sacras que já mostram a transição da arte medieval para a arte renascentista, mais humanizada nas suas expressões.
Talvez seja possível dizer que, depois da Itália, Flandres e esta região dos países baixos tenha sido o maior expoente artístico europeu do Renascimento.


Aos fins da Idade Média, Flandres ganhava dinheiro e patrocinava as artes, meus caros.
Alguns holandeses de hoje em dia gostam de dizer que localização é tudo. Alegam que ficaram ricos meramente por os grandes rios europeus (como o Reno) acontecerem de desembocar aqui perto, e por estarem nesta frutuosa interseção entre os mundos francês e germânico.
De fato, é uma região estrategicamente posicionada, quase equidistante entre os grandes centros da Europa Central, como também da Península Ibérica e da Itália. Paris aqui pertinho, Colônia e outras cidades germânicas também, e Londres logo ali do outro lado da água.
Mas não é só isso.

O Condado de Flandres foi próspero também porque conseguiu usar estrategicamente os seus recursos. Planícies inundáveis se prestaram à criação de ovelhas, e os flamengos desenvolveram uma poderosa indústria de tecidos já no século XII.
Claro que não estamos falando ainda de máquinas a vapor, mas não se engane achando que produtividade econômica só existiu a partir da dita Revolução Industrial de 1760-1840. A importância do saber-fazer e ganho comercial com a manufatura de produtos sempre houve.
Foi com esse dinheiro, do comércio e da proto-indústria medieval organizada em guildas (grupos organizados de pessoas de um certo ofício) que se levantou também o enorme Campanário de Gante no século XIII.
Bem ao lado do Hall dos Tecidos (cloth hall) — o que era um mercadão de manufatura à época, esse campanário era a terceira das três grandes torres de Gante, junto com aquelas da Igreja de São Nicolau e da Catedral de São Bavão.



Agora você entende melhor por que é que Flandres é esse nome tão recorrente na História, um nome que ecoa e que muitos de nós reconhecemos mesmo sem saber pô-lo no mapa.
Passear por Gante é reviver esse período — e o que viria em seguida.
Em 1369, a última condessa de Flandres, Margarete III de Dampierre, se casa com Filipe, o Audaz, duque da Borgonha.
(A Borgonha era um ducado — e, durante certo tempo, reino completamente independente — no que é hoje o leste da França, mas não era a França. Via-se como uma entidade e identidade separada, que desapareceu ao longo da História.)

O Condado de Flandres passou à suserania dos borgonhos, e assim seria até o final do século XV com a morte da última duquesa da Borgonha: Maria de Valois, a rica. Ela morreu numa queda de cavalo aos 25 anos, mas não antes de se casar — e já grávida do quarto filho.
Recusou ofertas de casamento do vizinho, o rei francês Luís XI, e foi se casar em vez disso com Maximiliano I, dos Habsburgo da Áustria — casamento que se deu aqui em Gante.
Eis como Flandres e todos estes países baixos foram parar no Sacro-Império Romano Germânico governado desde Viena.
Sobre como parte destas bandas se separam para formar a Holanda e, muito posteriormente, a Bélgica a partir das partes protestante e católicas, eu já contei no post anterior. A Borgonha propriamente dita, em tempo, seria abocanhada pela França, da qual hoje é uma região (onde fica Dijon).

A Gante da Era dos Descobrimentos
Umas voltas em Gante, e você se depara também com bastante do período posterior aos fins da Idade Média: a era dos descobrimentos. É quando Gante e outras cidades da região começam a adquirir aquelas feições semelhantes às de Amsterdã e demais cidades holandesas, que prosperaram nesse período.
Já no interior da estação ferroviária Gent St. Pieters, a principal da cidade, você vê dedicações à época — quando o comércio com a África e de especiarias com as Índias, orientais e ocidentais, começaram a dar a tônica destes países baixos nos idos de 1600.
É por onde eu sempre chego à cidade — e onde eu sempre esqueço que, ao contrário do típico das cidades europeias, esta não fica no centro histórico: é preciso tomar o bonde n.1, e nuns 10 minutos você está lá. (Pode descer em Korenmarkt se quiser desembarcar no coração da fuzarca.)



Você hoje caminha por aqui e encontra canais margeados por flores, restaurantes, e o casario antigo dos mercadores — tal como em Amsterdã. A diferença é que Gante já era notável e rica antes deste tempo, como vimos, e portanto tem edificações e torres góticas de pedra que a Holanda não tem.



O centro histórico de Gante é relativamente compacto, e você caminha nele como quem se deixa perder. Para todo lado há algo a olhar. Num raio de 1 Km, você circula como num parque temático verdadeiro, atravessando as épocas.



Encontrei-me com meu amigo Erasmus (que não é Carlos, mas Justus — o meu amigo Erasmus Justus) a ver as coisas da cidade, inclusive o “esquizofrênico” prédio da Prefeitura de Gante.
São os próprios belgas, na sua característica ironia e auto-depreciação, que a chamam assim pela mistura curiosa de estilos que talvez não caiam muito bem juntos. Um lado da edificação é num enfeitado estilo gótico, e o outro num limpo renascentista. (O próprio site oficial da cidade chama o prédio de “esquizofrênico”.) A cara da Bélgica.

Falando em quimera, eu volta e meia virava a cara para ver se, aqui no centro, revia um restaurante “brasileiro” que tive o infortúnio de visitar alguns anos antes, quando vim a Gante pela primeira vez.
Chamava-se Brasil, e me convenceu não só porque eu estava com fome quanto o avistei, mas porque — pasme — dizia-se especializado em moquecas e comida nordestina costeira. Achei que era uma miragem.
Convenci, à ocasião, a amiga estrangeira que viajava comigo a entrarmos e jantarmos lá. No ambiente de adega do seu interior, um chapa indiano trabalhava ao computador à média luz. Quando nos viu, levantou-se, convidou que nos sentássemos, e acendeu as luzes — já iriam abrir.
Pôs uma música brasileira autêntica (uma Marisa Monte da vida) e nos entregou um cardápio que continha umas estranhezas, tipo casquinha de siri catado com queijo, mas outras coisas que pareciam normais, como moqueca de peixe.
Ô engano! Numa das ocasiões em que veio à mesa coletar nossos pedidos, perguntei-lhe se o chef era brasileiro. “Não, sou eu mesmo que cozinho“, respondeu ele autoconfiante.
“E como você aprendeu a fazer comida brasileira? Você morou no Brasil?“, perguntei eu quando ele nos trouxe as bebidas, começando a achar a coisa toda pouco digna de confiança.
“Eu tenho vontade de ir! Ainda não conheço. Eu aprendi aqui mesmo; um belga me ensinou.“
Visshhh… Senhor Deus meu pai…
Chegaria a casquinha de siri com queijo mussarela derretido da minha amiga, de fazer Caymmi e Jorge Amado se revirarem no túmulo, e breve a minha “moqueca” entre muitas aspas em que ele tomou a liberdade de trocar dendê por molho de tomate. Eu quase dei no pé da orelha do indiano por ultraje cultural.

Eu diria a vocês que fujam desse restaurante como o cão foge da cruz, mas não precisa mais. O restaurante fechou — ou pelo menos mudou de nome e parece servir outras coisas agora. (Já não servia nada brasileiro mesmo…) Acho que fiz o review mais negativo da minha vida no TripAdvisor, e hoje o lugar se chama La Cave, caso você queira conferir ou evitar.
Com o meu amigo Erasmus, fomos em vez disso ao Vrijdagmarkt — o mercado da sexta-feira, como que a “sextar” avant la lettre. É uma praça onde hoje, ao redor da estátua do senhor Jacob van Artevelde do século XIV, jovens e outros reúnem-se a tomar um drink e a conversar.




Ei-la aqui, a verdadeira herdeira do Condado de Flandres. Estejam convidados. Você pode fazer bate-e-volta desde Bruxelas, mas passar umas duas noites aqui vale bem mais a pena.


Belíssima essa cidadezinha belga. Impressionante o seu complexo arquitetônico de intensa beleza. Belíssimos estilos, preciosos coloridos e extrema elegância. Essa arquitetura da Catedral é magnifica, portentosa, impar e exibe toda a graça, elevação e arte do gótico e seus correlatos. O casario, por seu turno, revela os deliciosos contornos e tons, ora do estilo do N da Europa ora de partes da vizinha França. Que maravilhoso complexo. Que belos tons, que pujança artística que desafia o tempo. Um colírio para os amantes da arte e da História. O casario parece de chocolate. Lindo
Os lindos recantos e as ruelinhas floridas, enchem de alegria o coração e os olhos da vossa amiga aqui, meu jovem. Amo esses recantos bonitos com pedras e flores. São encantadores. Parecem saídos do pincel de um divino pintor.
Que linda paisagem com as casinhas recortadas, as flores em uma sacada e o belo canal!… Coisa de cinema!… hahah. E essa pracinha, arborizada com mesinhas ahhh!.. que fofura. Um sonho!… Amo esses recantos.
A arquitetura dá um show com o casario de tijolinhos, as torres delicadas, a catedral portentosa , e demais templos, e o impressionante campanário, além das belas e aprazíveis pontes. Parece em algumas partes, com Amsterdã. A catedral de São Nicolau parece com o gótico francês.
Belo teatro e lindo Hall dos tecidos. Vê-se o forte tom comercial da histórica região naqueles idos tempos.
Magnífico esse castelo medieval.
Belíssima essa estação Central. Arrojada. O ser do sec. XX não quebrou a harmonia e a graça da cidadezinha.
Fiquei encantada com a cidadezinha. Espero conhecê-la.
Valeu, viajante. Obrigada pelas belezas reveladas.
Adorei o belo resgate histórico de Flandres e de Ghent descrito pelo senhor, meu caro jovem viajante brasileiro. Interessantíssimo. Flandres é famosíssima, mas essa cidadezinha me era desconhecida.
Esses casamentos entre a nobreza eram famosos e curiosos. Mudavam o jogo do xadrez das regiões a cada casamento.
Interessante abordagem sobre os artesãos, suas produções e fortes associações que movimentaram a economia da Idade Média, integraram a Revolução Comercial, na média e baixa I. Media e precederam a Revolução Industrial na I. Moderna.
Flandres era uma florescente região nesses tempos. Famosa, inclusive como polo de atração de artistas, ja que corria muito dinheiro e a nobreza gostava de se cercar de artistas.
E que horror essa experiência malograda de comida pseudo brasileira hahaha .. coitado do viajante… Quell’hourrreurrr… C;est la vie. hhaha. ainda bem que não prosperou. haha
Gostei da postagem , da cidade e dos conhecimentos adquiridos hahah Valeu.