Leuven, Louvain, Lovaina. Parece até que estou repetindo “preta, preta, pretinha” na voz de Moraes Moreira.
Leuven, Louvain, e Lovaina são a mesma cidade — mas alto lá que a coisa não será tão simples. Leuven [lœven] é seu nome original, em flamengo/holandês, cidade histórica do medieval Ducado de Brabant, hoje dividido entre Bélgica e Holanda. Falarei mais sobre esse ducado neste post, ele que era vizinho do histórico Condado de Flandres.
Louvain [luvã] é como a chamam os franceses e belgas francófonos.
Algo que você aprende aqui é que todas as cidades belgas têm pelo menos dois nomes, em idiomas diferentes — e eles nem sempre se parecem. Antuérpia, do original Antwerpen em flamengo, é Anvers para os francófonos; Mechelen vira Malines; e Lille, que foi capturada pelos franceses e atualmente fica na França, os flamengos chamam de Rijsel. É como se os goianos chamassem Belo Horizonte de Vista Bonita.
Tende atenção para não se confundir nas viagens por aqui.
Eu comentei em detalhes anteriormente sobre como a Bélgica é hoje dividida em duas grandes regiões que não se comunicam muito. Falam idiomas distintos: francês no sul e flamengo, que é uma variedade quase idêntica do holandês, no norte. Como comentei antes, em geral um não fala a língua do outro, e na prática é como duas nações num só país.
É neste contexto que temos uma curiosa, charmosa e vetusta cidade universitária.

Historieta de uma tradicional cidade universitária (ou sobre como os belgas não se entendem)
Permitam-me apresentar um pouco o pano de fundo histórico desta cidade antes de mostrá-la.
Leuven — que é como eu vou chamar a cidade por apreço à língua local — é cidade universitária desde 1415, berço da prestigiosa Universitas Lovaniensis, que foi fechada por Napoleão em 1797, mas reaberta como uma universidade católica em 1835 após a restauração do Antigo Regime e a criação do Reino da Bélgica em 1831.
Lovaina? Não é nenhuma droga produzida aqui; é o nome em português e espanhol, derivado do seu nome latino, mas somente usado por alguns estrangeiros. Foi-se o tempo em que todo o ensino nas universidades europeias se dava em latim. Aqui, porém, a transição do erudito latim para as línguas vernáculas do povão criou mais problemas que nos outros lugares.
Quando a universidade reabriu em 1835, foi com ensino em francês. Afinal, estávamos em pleno século XIX, e embora Napoleão tivesse sido derrotado em Waterloo, o francês seguia sendo a língua ilustre, dos saberes, das nobrezas e da diplomacia.
Aqui estamos, entretanto, em Flandres — que fala flamengo/holandês e não francês. Rusgas logo apareceram entre os dois lados belgas, até que em 1930 se criou um setor com ensino na língua flamenga.

Em 1968, não teve outra: a universidade se dividiu em duas.
Aqui, no sítio original, ficou sendo a Katholieke Universiteit Leuven, que segue sendo a maior do país. Numa nova cidade planejada batizada de Louvain La-Neuve (“a nova”) do outro lado da divisa linguística, na região da Valônia, fundou-se a Université Catholique de Louvain.
Portanto, se você esbarrar nesses nomes, saiba que não se trata de uma mera tradução: são hoje duas instituições distintas, com ensino nas respectivas línguas diferentes. (O mesmo se dá em Bruxelas, onde há uma Université Libre de Bruxelles, com ensino em francês, e a Vrije Universiteit Brussels, com ensino em holandês. Claro que, hoje, acaba também muito presente o inglês em ambas.)
Louvain-la-Neuve, conjurada do éter na década de 1970, é francamente uma cidade esquisita, que parece toda ela um campus universitário.
Eu estive lá também, e ela não é exatamente feia, mas não parece uma cidade — parece uma grande acomodação estudantil com prédios habitados por intercambistas aqui, lojinhas ali, um restaurante onde os estudantes vêm almoçar… Nada de errado, mas dá a impressão que você está o tempo inteiro num ambiente planejado, pouco natural, e que passa aquela sensação de estar o fim de semana, as férias, e toda a sua vida dentro do campus.
Já a Leuven histórica é outra coisa completamente distinta, uma cidade com lastro (se me permitem).

A Leuven histórica: Bem-vindos ao Ducado de Brabant
Eu cheguei a Leuven agora no século XXI para encontrar uma cidade de médio porte, de seus 100 mil habitantes e ruas pacatas. Meros 25 minutos de trem o trazem de Bruxelas até cá, com trens saindo a cada 15 minutos. Basta chegar à estação e comprar passagem para o próximo — nada de reservas antecipadas.
A estação ferroviária de Leuven, onde desembarquei, dá para uma longa avenida comercial com ares do século XIX, repleta de um enfeitado casario vertical característico desta região da Europa. Vamos descer essa longa rua rumo ao centro para conhecer Leuven e ver o que encontramos no caminho.

A arquitetura mais adiante lembra em algo as casas da Holanda, como aquelas vistas em Amsterdã, mas com a diferença de que aqui na Bélgica elas são menos padronizadas.
Há maior diversidade de cores e formatos — o que os belgas não perdem a oportunidade de dizer que ilustra bem a esculhambação do país. (Você achava que os brasileiros eram os únicos que tiravam com a própria cara?)


Esse senhor na fila do pão, retratado aí na estátua, é ninguém menos que Justo Lípsio (1547-1606), tido com o maior pensador renascentistas destas bandas da Europa depois de Erasmo de Roterdã. Ele foi um escolástico, e autor do atualíssimo livro “Sobre a constância em tempos de mau público” (De Constantia in publicis malis).
Justo Lípsio fez uma leitura do estoicismo antigo mesclado ao cristianismo (um tanto como Santo Agostinho adaptou Platão, e São Tomás de Aquino adaptou Aristóteles e os comentários sobre ele do andaluz mouro Ibn al-Arabi).
O estoicismo, a quem não reconhecer, é aquela filosofia da Antiguidade — de expoentes como os romanos Sêneca e o imperador Marco Aurélio — que enfatiza o auto-controle e a serenidade diante das paixões da vida e do mundo. Há paralelos com o budismo. A obra estoica de Sêneca, Sobre a Brevidade da Vida (49 d.C.), tem se tornado popular no Brasil e você pode baixá-la na íntegra em português aqui.
Sobre a constância em tempos de mau público (1583) praticamente inaugura o neoestoicismo cristão. A tônica é a necessidade de uma retidão moral e de uma vida interior virtuosa mesmo diante do caos do mundo. Eu, infelizmente, não achei a obra online em português para vocês (há em inglês), mas serve aí para se ver que são preocupações que não se limitam aos dias de hoje. Elas já eram salientes no século XVI.
Caminhemos agora o restante daquela rua extensa para chegar ao mercado e à catedral no coração da cidade.

Nós aqui estamos no histórico Ducado de Brabant, uma entidade medieval que ficava vizinha ao Condado de Flandres, o qual lhes apresentei em detalhes na postagem anterior sobre Gante.
Se Flandres floresceu na Idade Média, Brabant foi a região vizinha que lhe substituiria a partir dos idos de 1500 no estrelato econômico. Surgiu das mãos do imperador Frederico Barba-Ruiva (ou Barbarossa) em 1183, e esteve quase todo o tempo na alçada do Sacro-Império Romano Germânico.

Quando as cidades de Gante e Bruges (ambas em Flandres) perdem algo do seu poderio em 1500 e estas terras são absorvidas pelos Habsburgo da Áustria e da Espanha, são as quatro grandes cidades do Ducado de Brabant que ascenderão: Leuven (a capital), Antuérpia, Bruxelas, e ‘s-Hertogenbosch. Das quatro, apenas a última fica hoje na Holanda.
Certa vez, minha amiga holandesa Koosje (que lhes apresentei em Waterloo) me dizia pelo telefone de onde o seu trem procedia, para que eu a esperasse na estação em Haarlem, onde eu morava.
Quando ela falou o nome da cidade, eu não entendi. Pedi que soletrasse.
— “Apóstrofo. S. Hífen…“, lá ia ela.
— “Peraí, isso é o nome da cidade??“, indaguei eu confuso.
O nome formal da cidade é des Hertogen bosch, ou “a floresta do duque” [de Brabant], mas os holandeses escrevem hoje daquela forma (‘s-Hertogenbosch) e a chamam informalmente de Den Bosch [lê-se bós e não bósh].
Deixemos agora a floresta pra lá e voltemos à formosa capital do duque…

Aquele prédio gótico bonito que você vê à esquerda do quadro não é uma igreja, mas a prefeitura da cidade.
A Prefeitura de Leuven, erigida num estilo chamado de gótico brabantino entre 1448 e 1469, é um esplendor de esmero e floreios arquitetônicos. Segue aqui sendo provavelmente a edificação mais bela da cidade.



Como de costume, ali fica o Grote Markt — o grande mercado, como ainda se chama a praça principal onde tinham lugar as feiras da cidade.
Você caminha por uma rua estreita entre o casario e chega também ao Oude Markt, o mercado antigo, outra praça onde hoje há restaurantes e mesas.




É claro que, na praça principal, ao lado disso tudo vai sempre também a igreja matriz da cidade. Aqui, trata-se da Igreja de São Pedro, também gótica do século XV. (Não estou usando o nome “catedral” porque não há bispo aqui, então tecnicamente não é uma catedral. Leuven pertence à arquidiocese de Bruxelas.)


Uma voltinha maior e você chega, também, à biblioteca da universidade católica. Lá, a edificação de 1637 já do período barroco exibe uma elegância distinta, ao lado de uma torre.
Uma curiosidade triste é que, quando Napoleão invadiu estas terras em 1797, levou embora boa parte dos históricos livros para a Biblioteca Nacional da França. (É público e notório que os franceses acham que Paris é o centro do mundo, e que tudo de valor precisa estar lá — vide o Louvre.) Enquanto parte voltou, muitas obras estão Europa afora e nunca foram devolvidas a Leuven.
Uma “falta de sacanagem”, como disse a menina do meme.

O Grande Beguinário de Leuven (Groot Begijnhof)
Afastei-me algo mais do centro de Leuven após ver esses sítios principais, e por ruas bastante quietas fui ao beguinário.
Um beguinário é onde vivem beguinas, mulheres solteiras, religiosas, em geral voltadas a obras sociais, mas que não fazem votos monásticos — ou seja, não são freiras. São como as beatas.
Sendo assim, não vivem num convento, mas desde o século XII começaram, aqui nestas terras baixas onde hoje são a Bélgica e a Holanda, a organizar-se numa vida comunal com certas regras de convivência e ajuda econômica mútua.
É algo que sobrevive até hoje. Há beguinários históricos antigos em Amsterdã, Haarlem, Bruges, e tantas outras cidades desta região. Eu já tive, inclusive, uma jovem amiga que vivia no de Amsterdã vinculada à igreja. Homens podiam visitar, mas não era permitido pernoitar. (Eu sempre tinha que cair fora antes das 23h. Você podia tranquilamente partir do princípio que as vizinhas saberiam se você não o fizesse.)
Aqui em Leuven, o beguinário é uma área pitoresca da cidade — a uns 20-30 min de caminhada desde o centro — e que você não deve deixar de visitar.

Eu via alguns visitantes a passear por aqui e a fotografar, mas não muitos. Outros poucos passavam de bicicleta, e estes eram por vezes os únicos ruídos que havia.
Era, todavia, uma quietude curiosa. Ainda que no silêncio, há ali uma presença.
Não sei se são as muitas portas e janelas destas casas (que, sim, são habitadas) ou se é viagem minha, mas você se sente na companhia de pessoas quietas — não desacompanhado.


Se são almas penadas, tampouco sei. Só sei que há uma paz quieta — de mosteiro — por entre aqueles tijolinhos que, no verão, ficam acompanhados de árvores verdes e flores a contrastar com o laranja das paredes.


Talvez a presença seja mesmo as viv’almas das pessoas que, quietas, habitam essas casas. Este segue sendo dos maiores beguinários que há na Europa.


Após dar umas voltas, eu daqui corri. Não, não corri nem das beguinas nem de alma penada — corri para pegar o trem que me esperava para Antuérpia.
Se você vier num sábado e for fã, pode ir ainda conferir a fábrica-sede da Stella Artois, a cerveja que tem ganhado admiradores no Brasil. Ela é originária daqui de Leuven, e você pode fazer um tour na sua sede aos sábados à tarde, com degustação. No site oficial há detalhes que você pode conferir.
Eu, por ora, tomava o meu rumo depois de ver esta universitária e antiga capital de Brabant. Um lugar pitoresco onde vir passar o dia.
Maravilha!… Uma verdadeira mergulhada no tunel do tempo. Que delícia. Parece um mundo mágico, saído das historias infantis que chegavam até às crianças brasileiras de antigamente, no pós guerra, como João e Maria, Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, Soldadinho de Chumbo, Pinocchio e outras. A cidade. parece de chocolate hahah Lindinha.
Que maravilha essa Prefeitura que cheguei a pensar ser uma igreja, haha. Meu jovem, impressionante esse estilo repicado, decorado, parecendo bolo de chocolate hahah. Lindíssima. Magrinha, alta, elegante de ricamente decorada. Lindos estilo e tons.
E que cidade alegre. Os tons mais claros e diversos dos casarios tornam o ambiente mais alegre, menos austero que o de algumas partes de Amsterdã, por exemplo. Ao meu ver torna o casario mais bonito e o clima mais leve sem deixar de ser elegante e gracioso. Gostei muito desses tons mais claros, dos tijolinhos alaranjados.
Que recantos agradáveis, belas praças, linda avenida, elegante, larga com bela arborização, um encanto.
Muito bonito esse templo., sobretudo seu interior elevado, elegante, relativamente simples, delicado e belo. Amo o gótico e seus desdobramentos e adaptações às diversas regiões.
Belíssimo e portentoso esse prédio da vetusta e famosa Universidade, com a sua Biblioteca secular, seu belo estilo, assim como o do teatro. Lindos. Magníficos. Um show de beleza e arte.
Que belo, e que paz traz esse beguinário. Com certeza o senhor sentiu o pulsar daquelas vidas atrás das portas e janelas. Lindo e aprazível ambiente. Respira paz e tranquilidade. Convida ao recolhimento e à prece. Lembro de ter visitado um desses em Amsterdã quando da minha ida por lá. Era o mesmo astral.
Interessante esse relato sobre os primórdios da região e a construção desse novo país chamado Bélgica.
Gostei muito de tudo, sobretudo da arquitetura e do astral da cidade. Lindos e linda.
Obrigada jovem viajante por nos mostrar essas belezas muitas vezes inusitadas.