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Bélgica

Namur, a capital da Valônia (Bélgica)

Namur parece amor, e talvez seja.

A maior cidade turística da Valônia (pois as duas outras mais populosas, Charleroi e Liège, não são necessariamente de grande interesse turístico) é também a capital desta metade francófona da Bélgica, sobre a qual comecei a falar no post anterior.

Namur é uma cidade antiquíssima, do tempo dos celtas. Localizada na confluência de dois rios, ela já era um entreposto comercial importante antes mesmo de os romanos aparecerem por aqui.

Muito tempo depois é que apareceria eu, a encontrar uns amigos.

A Cidadela de Namur
A Cidadela de Namur, com o rio Mosa ali adiante.

Bem-vindos a Namur

Namur fica a 1h a sul de Bruxelas, onde o modesto rio Sambre encontra-se com o caudaloso Mosa (Meuse eles o chamam aqui em francês, o mesmo que os holandeses chamarão de Maas mais adiante, e que dá nome à cidade holandesa de Maastricht.)

Foi o lugar onde os celtas e, depois, os romanos acharam de construir uma fortaleza que segue em pé. Claro que com incontáveis ampliações e reparos ao longo dos séculos.

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A chamada Cidadela de Namur, no alto da confluência entre os rios. Este na foto é o rio Mosa, maior. (Está vendo também aquela janelinha ali entre as torres redondas? Daqui a pouco a gente estará lá.)
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Por cá vem o modesto rio Sambre, e a cidade propriamente dita fica ali do outro lado.

O Condado de Namur

Namur foi um condado próprio na Idade Média. Era relativamente pequeno, vizinho aos maiores Flandres e Brabant.

Tem-se nota dele a partir de 832 d.C., após as conquistas de Carlos Magno unificando muito deste miolo da Europa — desde a atual França até Viena e Roma.

Os condes, a quem não sabe, eram representantes do rei ou imperador, figuras de sua confiança postas para tomar conta de algum lugar em seu nome. Inicialmente, não eram posições hereditárias — eram postos administrativos.

Com o tempo e o passar das gerações, porém, começou um processo de feudalização na Europa. As famílias queriam manter tais postos e privilégios dentro da família. Com bem menos expansão ou conquistas se dando nesta parte da Europa após o ano 900, as coisas se assentaram, então os nobres passaram a ficar bem mais autônomos e, na prática, independentes.  

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Bastião medieval no centro da cidade de Namur.

A partir dos idos do ano 1100, com o surgimento das cidades, ativação de um comércio maior (como vimos com Bruges e Gante, ou com o surgimento das primeiras grandiosas catedrais de pedra, como mostrei no post anterior em Tournai), teremos então o começo de um processo reverso: a concentração de poder nas mãos dos aristocratas principais, os mais poderosos de todos.

Mais à frente, nos idos de 1500-1600, isso vai levar ao absolutismo, às cortes reais onde os nobres se aglomeravam, mas por ora levava simplesmente alguns condes e duques a tomarem a dianteira dos demais.

Foi o caso do conde de Flandres, que enriquecia horrores com o comércio próspero em Bruges e Gante. Em 1263, ele então compra este Condado de Namur. O chefe da nobre família lá dos Dampierre então vira conde de Flandres e marquês de Namur.

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O casario em Namur.

Restinho de primavera em Namur

Era fim de junho quando eu cheguei a Namur — fazia um calor do cão. Engana-se quem acha que estes nortes da Europa são frios o ano inteiro.

Aqui eu dormiria de janela aberta e ainda passaria um certo calor na casa do casal belga quase idoso que nos recebeu. Era um AirBnB, então eles não ficaram lá após nos acolher num francês bem conversado. (Eles não falavam inglês — falavam um francês devagar, supondo que aí você entende. Minhas amigas boiavam enquanto eu resolvia.)

Embora já fosse tecnicamente o verão, ainda havia um restinho de primavera no ar, aquela atmosfera de princípio de estação, e algumas flores a remanescer.

O centro da cidade, embora relativamente pequeno, é uma graça. Seu Marché aux Légumes — uma arborizada praça apelidada de Mercado dos Legumes — e meandros estreitos que hoje fazem a graça dos pedestres do século XXI. 

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O Marché aux Légumes, praça no simpático centrinho de Namur onde ainda se dão as feiras semanais de produtos da região.
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O cálido rio Sembre margeado pelo casario — e, hoje, por flores aqui.
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Ruas pedestrianizadas do centro de Namur.
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Igrejas, é claro, não faltam naquele miolo urbano de época.

Uma cidade do albor da Idade Moderna

A gente no Brasil muitas vezes esquece que a Europa não passou direto da Idade Média à Revolução Industrial. A Idade Média formalmente acabou em 1453. Daí então teremos toda a chamada Idade Moderna até a Revolução Francesa (1789).

É muito desse período que data Namur enquanto cidade. Se você observar na igreja acima, verá o ano 1616.

Namur é uma cidade que praticamente vibra a partir da reação católica e imperial espanhola (e posteriormente austríaca) aos calvinistas e à secessão protestante que forma a Holanda em 1581.

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Arte sacra em madeira na igreja barroca jesuíta de São Loup, do século XVII.

 

Se você não pegou minhas explicações dos posts anteriores, estas terras eram condados e ducados que pertenciam ao Sacro-Império Romano Germânico.

A coroa imperial variava entre famílias reais europeias. No século XVI, ela estava com os Habsburgo, que governavam tanto o vasto império espanhol quanto o sacro-império na Europa Central.

Com o advento do protestantismo e sua difusão nestas partes da Europa, guerras se deflagram nos idos de 1560-1640 entre católicos e protestantes. É então que esta região chamada informalmente de países-baixos se divide entre uma república de maioria protestante (a Holanda, surgida em 1581) e províncias de maioria católica que o império consegue reter, e que muito mais tarde (em 1831) se tornarão a Bélgica.

É no bojo da Contra-Reforma, de reação ao protestantismo, que surge a Companhia de Jesus (os jesuítas) e todo um movimento de reforço religioso.

Por um lado, derrama-se muito sangue. O princípio reinante era o de  Cuius regio, eius religio. Cujo rei, sua religião. Em outras palavras: onde o rei fosse protestante, todos tinham que ser protestantes. Onde a coroa fosse católica, nenhuma outra filiação religiosa era tampouco aceita. (Só se vai variar disso muito mais tarde, com a Revolução Francesa e a formação do Estado laico — que alguns hoje gostariam de derrubar.)

Por outro lado, porém, é também nessa época do século XVIII que floresce a bela arte barroca. A Igreja de São Loup aqui em Namur é magnífico exemplo disso.

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A bela Igreja de São Loup, jesuíta e barroca, erigida entre 1621-1645.
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A fachada barroca da Igreja de São Loup em Namur. (Se você está a se perguntar, São Loup foi um santo francês do século VII.)

Esta igreja originalmente era atribuída a Santo Inácio de Loyola, o fundador da Companhia de Jesus. Porém, quando o Marquês de Pombal decreta a expulsão dos jesuítas do reino português e de suas colônias em 1759, e em seguida outros monarcas católicos europeus fazem o mesmo (por questões de poder e disputas teológicas), o papa acaba por extinguir a ordem em 1773 (embora ela ressurja em 1814).

Assim, a obra passa a ser dedicada ao francês São Loup. Sua beleza, porém, em nada muda. 

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O interior barroco da Igreja de São Loup em Namur. É considerada a mais bela igreja jesuíta de toda a Bélgica.
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A Catedral de São Albano (Cathédrale Saint-Aubain), num estilo barroco tardio, edificada entre 1751 e 1767.
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Este que você viu mais acima é o campanário de Namur, a torre do sino, original de 1388 e portanto mais antiga que a atual catedral. Isso é porque antes de ter funções religiosas, os sinos eram parte da comunicação da guarda da cidade.

Subindo à cidadela hoje

A cidadela medieval de Namur, como tantas outras pela Europa, é menos um castelo fechado a visitar e mais — hoje — uma área verde com muralhas de pedra, aonde ir dar uma volta e tomar um café com vistas para a cidade.

Não há tarifas de entrada nem nada do gênero, a menos que você queira fazer um tour pelo subterrâneo ou prefira subir aqui de trenzinho. (Você pode verificar os horários e preços no site oficial.)

Eu optei por exercitar as pernas.

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Este trenzinho o traz até o alto da cidadela, se você preferir. (No site oficial é possível obter passagens e combos com ingresso ao subterrâneo, caso queira.)
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Subindo a pé, você é agraciado com estas vistas. (Pode também subir de trenzinho e ir descendo.) Aqui o singelo rio Sembre margeando a cidade histórica.
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Do outro lado, o mais caudaloso rio Mosa. Hoje, é claro, há cidade em ambos os lados. (Eu breve iria ao outro lado do rio para comer, e recomendo.)
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Lá do alto da cidadela.

Como ditam os bons costumes, há aqui no alto da cidadela um pequeno restaurante ou cafeteria onde se deter.

Fazia aquele vento agradável de verão. Não quente demais que fosse um bafo, mas uma brisa fresca para aquele dia quente.

Namur, apesar de tudo, é quieta. Afora seu Marché aux Légumes no centro, havia um jeito pacato na cidade. (Não é um lugar badalado.) Você sentia a tranquilidade a ponto de poder ouvir os seus pensamentos.

Eu a achei um lugar melhor de vir com amigos mesmo do que sozinho. Lá no alto tomamos algo, as minhas amigas a se dirigir em inglês à garçonete que respondia em francês. 

Não importava. O importante era o bucolismo, a floreirinha e e tranquilidade deste começo de verão.

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Lá no alto da Cidadela de Namur, um certo bucolismo em pleno século XXI.
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Aqui nos assentamos um pouco. Há uma cafeteria.
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Olha que coisa fofa neste princípio de verão.
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A fortaleza vista lá de baixo, ao entardecer.

Três graças em Namur

Nós breve cruzaríamos o rio Mosa pela ponte para ir jantar do outro lado.

Antes, porém, preciso mostrar a consagrada escultura “Buscando a utopia” (Searching for utopia), do artista belga Jan Fabre. Era uma das graças que encontraríamos na cidade.

Ela fica lá no alto da cidadela. Foi trazida cá para Namur em 2015, com a sua figura do homem a montar a tartaruga em busca do horizonte.

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Buscando a utopia, obra do artista belga Jan Fabre, trazida em 2015 à Cidadela de Namur.

Desapontarei os instagrammers loucos por tirar uma selfie ali com a tartaruga, mas preciso informar que não é permitido chegar mais perto ou montar nela. Ela foi trazida para cá precisamente porque, onde estava antes, não faltavam crianças e adolescentes aparentemente loucos para subir na tartaruga e buscar, eles também, alguma utopia.

A segunda graça que encontraríamos em Namur, porém, é consumível e não apenas com os olhos.

Deixo aí a recomendação da cerveja belga Dubbel, escura e riquíssima de sabor. Mesmo quem não é fã de cerveja deve experimentar, pois o que passa por “cerveja” na maior parte do mundo não se compara. (Você pode dizer que não gosta de “cerveja” sem nunca ter realmente tomado cerveja.) 

Isso foi no restaurante Le Binôme, onde jantamos, e que está recomendadíssimo.

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Escura e forte cerveja dubbel no restaurante Le Binôme, em Namur.

Qual era exatamente o binômio matemático, eu não sei. Talvez a combinação de boa bebida e boa comida.

Sei que ali ficamos um tempo, no conversa vai, conversa vem. Como em fins de junho os dias aqui são bastante longos (escurece só às 23h), retornamos pela ponte e à cidade histórica ainda em tempo de ver os últimos raios de sol sobre as suas edificações de época.

Foi ali também que nós encontramos a terceira graça de Namur: os caracóis de bronze.

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A ponte de volta ao centro histórico de Namur naquele entardecer tardio de início de verão na Bélgica.
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O chamado Palácio do Congresso em Namur é, na verdade, sua antiga bolsa de valores do século XIX, e hoje um centro de eventos.

Está vendo acima dois sujeitos ali perto de onde está o caminhão branco?

São Djoseph e Françwès (corruptelas propositais de Joseph e François), personagens atrapalhados do cartunista belga Jean Legrand (1906-2002). Ele fazia caricaturas para o jornal valão aqui de Namur L’Avenir. Em 2000, portanto antes da partida do nonagenário artista, a escultora também belga Suzanne Godard pôs aqui os célebres personagens com os seus caracóis que simbolizam a vida lenta e tranquila de Namur.

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Djoseph e Françwès, personagens do cartunista de jornal Jean Legrand, esculpidos aqui pela artista belga Suzanne Godard. Os caracóis simbolizam o ritmo assumidamente lento da vida aqui.

Os belgas, como já comentei antes, são animados para o lado do cartum, dos quadrinhos e do humor. São belgas os criadores de As Aventuras de Tintin e dos famosos Smurfs também. Há outros muitos que não nos chegaram no Brasil.

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Desçamos por ora o rio Mosa, ainda aqui nesta Valônia, antes de ele adentrar terras holandesas.

Após breve mas significativa estadia aqui em Namur, rumamos à pequena Huy, rio abaixo.

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O lindo rio Mosa (Meuse) em Namur, Bélgica.
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Ponte antiga sobre o rio. Belezas que permanecem.
Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

One thought on “Namur, a capital da Valônia (Bélgica)

  1. Linda cidade, bela natureza. a cidade parece saída de um conto de fadas.
    Amo esse clima medieval cheio de História e estórias em meio a essas imponentes construções que revelam parte das vidas, lutas, valores e emoções de uma época. Fascinante.
    Belíssimas paisagens, bucólicas, serenas, com seu lindo verde e gostosos cursos de água de lindos tons. A beleza e a tranquilidade prespassam pelas fotos, tudo emoldurado pelo lindo céu de anil. Belíssima. Sugestivo o caracol hahaha Curiosa tartaruga. hahaha
    Lindo o estilo arquitetônico da cidade. Majestoso! … A cidadela é um encanto!…
    Belo e elegante campanário, templos magníficos!… Belíssimo Palácio do Congresso. Vetustas e românticas pontes. Um charme. Os interiores dos templos são um espetáculo à parte. Esplendorosos.
    Belíssima Catedral. !… Imponente frontispício. E que riqueza essas esculturas em madeira. Um primor.
    Essa cidadela dourada ao entardecer está maravilhosa. Belíssimas imagens.
    Lindas as floreirinhas nas janelas. Amo flores com pedras.
    Adorei o trenzinho. Uma graça.
    By the way, essa cerveja parece ótima, adoro cerveja escura.
    Linda postagem. Bela região
    Valeu, jovem viajante. Amei.

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