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Bélgica

As 4 maravilhas de Huy e o Principado de Liège, Bélgica

Na colcha de retalhos medieval que eram estas terras baixas do Sacro-Império Romano Germânico estava o Principado de Liège. Aqui, a hoje pequena Huy, e não outra, teria sido em 1066 a primeira vila a ser contemplada imperialmente com os direitos de cidade a norte dos Alpes.

Direitos de cidade não eram uma coisa qualquer; eles garantiam certa autonomia econômica e tarifária em relação ao senhor feudal da região.

Bem-vindos a esta modesta, mas pitoresca, cidadezinha belga às margens do rio Mosa (Meuse em francês ou Maas em holandês), o qual eu mostrei no post anterior em Namur. Foi dos rios que inundariam em julho, mas que aqui você vê antes — em condições normais.

De quebra, eu vos falo das quatro maravilhas de Huy, que alguém na Idade Média resolveu classificar assim no francês medieval da época: (1) Li Tchestia, (2) Li Pontia, (3) Li Rondia, e (4) Li Bassinia. Calma que eu chego lá.

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Bem-vindos a Huy, na curva do rio, onde o Mosa faz uma volta na metade do caminho entre Namur e Liège aqui na Bélgica.

De cara eu já vou lhes dar duas das maravilhas de Huy — infelizmente as duas que não mais existem.

Li tchestia era uma maneira medieval de dizer o que em francês atual se escreve le château, ou “o castelo”. (Notem como na época parecia até italiano.)

Dizem que Huy possuía um portentoso castelo digno de nota, original do século IX, que no entanto foi destruído no século XVII nas tentativas do rei francês Luís XIV de tomar estas terras. A fortificação foi reconstruída no século XIX noutro formato, que vos mostrarei.

Li pontia, a segunda maravilha, é a ponte — uma ponte de pedra do século XIII por sobre o rio Mosa. O que há hoje é uma réplica inspirada na que existia.

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Como era o Castelo de Huy tido como sua primeira maravilha — Li tchestia, uma fortificação originalmente do século IX, mas derrubada nas guerras entres estas terras baixas do Sacro-Império e o vizinho Reino de França de Luís XIV no século XVII.
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Li Pontia, a ponte do século XIII que cruzava o rio Mosa nesta que foi a primeira cidade reconhecida como tal no sacro-império a norte dos Alpes. (Note que este belo prédio não é o castelo, mas uma igreja da época — que segue de pé e que veremos daqui a pouco.)
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Hoje o que há é uma réplica de Li Pontia, que era tida como a segunda maravilha de Huy na Idade Média. Note, todavia, como a cidade segue fofinha em tempos atuais.

Bem, se duas das maravilhas medievais foram destruídas, o que há por aqui para ver, afinal?

Foi o que eu vim descobrir. Chegava eu de trem — meio de transporte definitivamente não-medieval — num destes dias de calor do fim de junho. O termômetro à cruz verde da entrada da farmácia registrava 30 graus, ao que belgas em clima de verão armavam ou visitavam barracas de comida e outras diversões no meio da rua. Havia um certo clima de quermesse dominical, sem igreja.

Este lado moderno da cidade é indigno de muita nota. Afinal, não se faria a estação ferroviária em pleno centro antigo. Para ir lá, é preciso caminhar um pinguinho e atravessar a sucessora de Li Pontia.

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Quando desembarquei do trem na parte moderna de Huy, Bélgica.
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Atravessando a ponte sobre o Mosa — o centro histórico lá do outro lado. Prontos para mergulhar em Huy?

Huy e o Principado de Liège

Estamos na região da Valônia, a metade francófona da Bélgica, seu lado sul.

Nos tempos medievais do Sacro-Império Romano Germânico, que abarcava toda a Europa Central, havia dentro dele ducados, condados… e aqui um principado bispal, senhoras e senhores.

Sim. Muito ocorria de o imperador conceder — com a anuência do papa — títulos nobiliárquicos, vinculados a pedaços de chão e suas rendas, a bispos da Igreja, que daí se tornavam também príncipes. Muitos principados eram assim, onde bispos ou arcebispos acumulavam poderes espiritual e temporal.

Não precisa ninguém dizer a vocês que uma razão chave para os sacerdotes não se casarem na Igreja Católica é bastante mundana. Tem a ver com não permitir que tais bispos viessem a legar aquelas propriedades às próprias famílias. Não podendo se casar, as propriedades permanecem com a Igreja. (Se os bispos teriam “casos” e filhos bastardos por aí, como muitos tinham, não importava; afinal, apenas filhos legítimos podiam herdar.)

Principado de Liege
Ilustração do que era a corte do principado bispal de Liège — aqui onde estamos — durante a Idade Média.

Inclusive, esse compadrio sacro-mundano entre eclesiásticos e feudos foi uma das grandes razões pelas quais a Alemanha e a Itália só se unificaram muitos séculos depois de lugares como a França.

Na França, que não pertencia ao Sacro-Império, os bispos não eram nobres. Tais sacerdotes, portanto, precisaram se aproximar tanto quanto possível do rei para proteção e garantia de estar junto do poder.

Não é à toa que a História da França está repleta de cardeais-chanceleres que, junto dos reis, passavam a mandar no país. Foi o caso do famoso Cardeal Richelieu, do Cardeal Mazarin, e tantos outros. Contribuiu para uma centralização. 

Já aqui no Sacro-Império não era assim. Os bispos, sendo também nobres, não tinham interesse na centralização do poder. Desta forma, este longevo Principado-Bispal de Liège duraria até a Revolução Francesa, de 980-1791, por quase mil anos.

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Nós no centro histórico de Huy.

A Colegiada de Notre-Dame de Huy

Quando você atravessa a ponte e adentra a parte antiga, o que primeiro lhe chama a atenção é a igreja medieval de Huy.

Esta pequenina cidade tem uma magnífica igreja gótica datada de 1311, quando o príncipe-bispo Thiébaut de Bar pôs sua pedra angular. É a edificação que você vê ali acima — e que viu na ilustração antiga com Le Pontia.

Uma curiosidade é que não se trata de uma catedral, mas de uma colegiada. Isso significa dizer que há um conselho de cânones composto também de não-eclesiásticos, ou seja, pessoas de funções civis e seculares, não apenas sacerdotes. É, historicamente, de onde vem a figura do reitor, hoje usada amplamente pelas universidades.

Isso, para ser claro, inicialmente não tinha funções exatamente educacionais (no sentido geral), mas administrativa e de catequese. Lembrem-se do Pátio do Colégio em São Paulo; sua principal função era sobretudo religiosa; o aspecto educacional mais amplo vinha em segundo plano.

No mundo luso, há o exemplo notável da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira em Guimarães, Portugal. Mas decididamente era algo mais comum cá no sacro-império onde os bispos — como visto — tinham títulos e exerciam funções também civis. As coisas se misturavam mais.

Interior da Igreja de Notre-Dame de Huy
O interior da Colegiada de Notre-Dame de Huy, gótica, erigida nos idos de 1300-1500. Sim, é claramente uma igreja, mas que também acumulava funções civis-administrativas.
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La Collégiale Notre-Dame de Huy, como é aqui chamada em francês.
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A fronte do chamado Portal de Belém, com as figuras dos reis magos.
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A magnífica arquitetura gótica dos séculos XIV-XV, aqui com o altar, arcadas, e os vitrais lá ao fundo.

Falando em gótico e em vitrais, eis que temos a terceira maravilha de Huy: La Rondia. Consegue identificar o que é?

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Ao fundo da igreja, a rosácea conhecida como La Rondia — tida como a terceira maravilha de Huy.
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A verdade é que, a meu ver, são os vitrais de modo geral nesta igreja a grande maravilha.

É um estilo bastante franco-germânico, comum a esta região, presente tanto na Catedral de Colônia (aqui perto) quanto em Notre-Dame de Paris ou na Sainte-Chapelle na capital francesa. 

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Dê uma olhada final na Colegiada de Notre-Dame de Huy antes de sairmos.

Em busca da quarta maravilha

A busca pela quarta maravilha nos levaria ao meio do centro histórico de Huy, hoje um elaborado — pequeno e simpático — centrinho com edificações barrocas, de tijolinhos e enfeitadas como é típico destes países baixos. Tem mais a cara dos séculos subsequentes, do começo da modernidade, que da Idade Média.

Chegaríamos à Grand Place de Huy, a sua praça principal com a prefeitura de época.

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Rumo ao centrinho histórico de Huy.
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Sua Grand Place, a histórica praça principal, hoje com bares e ali adiante a prefeitura.
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Esta prefeitura data de 1766, com sua arquitetura típica.
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Eis as crianças a jogar gude na rua. Escultura de 1992, cujo nome original é Les Joueurs de Billes (literalmente, os jogadores de gudes).

Se a escultora tinha alguma afeição ou se ela própria jogara gudes aqui quando criança, não sei. Esta praça há muito é muita coisa para Huy — o seu coração. Como de hábito, ela era chamada de Place du Marché (“praça do mercado”) por razões óbvias.

Não se sabe ao certo de quando ela data, mas certamente dos primórdios desta cidade no medievo.

É onde encontraremos a quarta maravilha, La bassinia.

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Reparem nesta ilustração desta praça de Huy em 1872. O que vocês veem ali no meio?

Li bassinia, tida como a quarta maravilha de Huy, é aquela fonte medieval aonde se vinha retirar água. Uma cisterna pública, como era de praxe haver. (O nome tem a mesma raiz da nossa palavra “bacia”.)

Sabe-se que ela é, no mínimo, de 1406, mas seguramente mais antiga que isso.

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Li Bassinia, a fonte medieval no centro da Grand Place de Huy, com a prefeitura da cidade ali atrás.

Hoje, já não se retira água dali, mas a fonte segue sendo a quarta maravilha de Huy.

Minha amiga e eu demos uma voltas antes de nos determos para comer algo num restaurante marroquino chamado La Delicia. Comida boa, e pessoal ótimo. 

Huy, noutros tempos, enriqueceu com o fabrico e o comércio de tecidos — um tanto como Gante, aqui perto.

Hoje, nada muito acontece aqui. São apenas 21 mil pessoas no que é realmente uma cidadezinha pacata, mas como a Bélgica francófona atrai também imigrantes francófonos do norte da África, ei-los aqui. Resolveram pôr o nome do restaurante em espanhol, numa mistura. 

Vai ver, Flandres, a Valônia e toda esta terra mesclada que é hoje a Bélgica está voltando a assumir o seu papel histórico de misturadora geral de povos e tendências — centro de gentes e culturas, como já foi centro do comércio mundial em outros tempos. Isto na pequena Huy.

Deixo-vos, por ora, com o rio Mosa e com a Bélgica. Hora de singrar outras bandas.

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Huy. Lá atrás você vê aquela fortaleza quadrada que os holandeses aqui construíram em 1823 no lugar de Li Tchestia, o castelo antigo, após as guerras napoleônicas. Eu diria que, no fim das contas, a maior maravilha de Huy talvez seja mesmo a quinta delas: o rio.
Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

One thought on “As 4 maravilhas de Huy e o Principado de Liège, Bélgica

  1. Uuuuuuu, que linda!… Preciosa. Aconchegante, fofa, essa cidadezinha. Lindinha. Com certeza com muito mais que 4 maravilhas, Ela em si já é uma maravilha.
    Impressionantes essas Construções medievais. Pujantes, cheias de estilo. E que belo estilo, este.
    Belíssima essa fortificação original. Magnifica nesses seus recortes, seus tons corais e suas elegantes torres.
    Belas e vetustas pontes, emolduradas pelo verde da vegetação e pelas belas águas do rio Mosa.
    Magnifica essa igreja de Notre Dame de Huy Lindíssimo exemplar desse espetacular estilo que é o gótico. Que beleza que é seu interior. Que belos e coloridos vitrais , linda rosácea, que altar magnifico, que lindos e imensos arcos, seu ar de recolhimento, um encanto.
    E o que dizer dessa pracinha gostosa, desse chafariz que é uma verdadeira obra de arte e dessa linda Prefeitura, por si só um espetáculo de arquitetura.
    A cidade toda é uma obra de arte. Parece saída, como algumas outras, de contos de fadas e filmes medievais. Belissima. Amei essa cidadezinha fofa.
    Fiquei impressionada com a beleza antiga desse novo pais, a Bélgica.
    Adorando conhece-la.
    Valeu, viajante.

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