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Tchéquia

O dia em que eu fui capa de jornal na Tchéquia

Esta é das historietas que eu conto em eventos sociais — é um ótimo puxador de atenção que faz a outra pessoa ponderar se você a está trollando ou se é verdade mesmo. “Capa de jornal na Tchéquia?

Aqui eu já estou dando a imagem logo de cara, então você sabe que ocorreu mesmo.

Eu estava bem longe da capital Praga, quase tão longe quanto é possível estar neste pequeno país.

Eu fora parar na cidadezinha de Vsetín, a poucos quilômetros da fronteira com a Eslováquia — o que os tchecos de Praga gostam de dizer, zoando, que já é praticamente a Ásia.

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Vsetín, no extremo leste da Tchéquia. Vai lá, não é tão pequeno assim, mas há bem uma atmosfera de interior aqui.

Eu vim parar nesse honroso e pequeno lugar por convite de um amiga que é daqui.

Era o meu primeiro mochilão pela Europa, e nada melhor nessas ocasiões que a experiência de ir ficando nas casas de amigos, quase-amigos, e amigos de amigos que você conhece.

Pavlína e eu fomos vizinhos em Amsterdã e já nos conhecíamos há algum tempo. Falava-se destes recantos mais profundos da Tchéquia, distintos da capital.

De fato, aqui parece que você está no campo. As pessoas na rua o olham e, se bobear, o saúdam como no interior miúdo do Brasil. (Aqui com aquela bela reserva cautelosa. Os tchecos são algo introspectivos enquanto povo, talvez por sua História.)

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Vsetín com as colinas que marcam os limites orientais da Tchéquia, onde breve passa a ser Eslováquia.

Tchéquia e Eslováquia falam idiomas (tcheco e eslovaco) que são praticamente iguais — tão distintos entre si quanto português paranaense e português paraibano, talvez até menos. Com a separação pacífica entre as duas em 1993, as pronúncias e gírias passaram a se distanciar mais (por influência dos meios de comunicação, agora separados), mas nada longe. É inconcebível que um tcheco e um eslovaco recorram a outro idioma para conversar, por exemplo. Veem-se como irmãos desde sempre.

Foi por isso que não estranhamos quando, a caminhar pelo bosque para ver essas colinas acima, nada nos estranhou esbarrar no jornalista eslovaco que escrevia para o jornal tcheco daqui.

A estadia estava pacata, sem muito acontecer. Nada muito ocorre nestas bandas. A casa dos pais de Pavlína era enorme, de vários andares, mas eles estavam em viagem. Ficava um silêncio profundo, no interior limpo da casa que além de nós tinha a cismada cadela idosa da família — daquelas que olham de soslaio pra quem chega, não dá ousadia, e fica a deitar-se aqui e ali na casa. Pacífica, embora pouco aberta a novas amizades.

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Eu in loco em Vsetín, nas colinas verdes do leste da Tchéquia.

Dávamos uma volta bem Chapeuzinho Vermelho quando avistamos aquele carro da pessoa visivelmente perdida.

Você sente essas coisas; o motorista parando, detendo-se, com cara de quem não sabia aonde ia. Vinha na nossa direção numa estrada de chão apertada, onde nem sabíamos que passariam carros.

Ao chegar até nós, perguntou algo em tchecoslovaco que Pavlína respondeu no mesmo idioma ou não — a depender de como você queira enxergar a coisa. Depois, quando o carro foi embora, contou-me que ele estava a procurar uma tal escultura de madeira. Pelo visto não havia notícia nenhuma para estampar a capa do jornal do dia seguinte, e o editor-chefe o havia mandado aqui já no fechar do dia para fazer fotos e uma matéria sobre a obra de um artista local. 

Pois bem, não demoraria até nós próprios nos depararmos com a tal obra, uns 20 minutos depois n’alguma direção.

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A obra talhada em madeira de um artista local em Vsetín. Ela mostra a chamada “visão de Santo Huberto”.
Jagermeister
O digestivo alemão Jägermeister (teor alcóolico 35% e gosto de ervas) usa o símbolo da visão de Santo Huberto, patrono dos caçadores, como sua logomarca.

Aquele veado de galhadas com um crucifixo sobre a cabeça vocês talvez reconheçam como o símbolo da Jägermeister, o digestivo alemão.

O cervídeo estiloso com um quê sacro não é invenção de nenhum publicitário contemporâneo — é uma história antiga, de mais de mil anos.

Crê-se que, no século VII, Hubertus ou Hubert — de onde saiu também o nome daquele comediante brasileiro do extinto Casseta & Planeta — caçava nos bosques do norte da França quando deparou-se com uma visão.

Era Sexta-Feira da Paixão, mas Hubert era incrédulo e quis seguir com seus afazeres. Avistou, então, um grande cervo com a cruz de Cristo como que por sobre a cabeça. Ouviu daí uma voz dizendo-lhe que deveria procurar levar uma vida sacra — ou estaria num caminho certo para o inferno.

Hubert assombrou-se, refletiu feito Paulo no caminho para Damasco, e viria a se tornar o primeiro bispo de Liège, na atual Bélgica

Veio a se tornar patrono dos caçadores e um santo muito venerado na Idade Média por toda a Europa — incluso por estas bandas, pelo visto.

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A pose do rapaz com a obra de arte em madeira mostrando a Visão de Santo Huberto. Em Vsetín.

O jornalista eslovaco já estava por lá, quando o encontramos fotografando a escultura sozinha.

Minha amiga lhe disse algo, e meio que aguardávamos ele terminar suas mil fotos para poder ir olhar direito. Era um rapaz de cabelo escuro e conversa rápida de jornalista de rua que, se tinha 40 anos, tinha muito.

Até que ele nos olha com aquele olhar cobiçoso. “Por que vocês não sentam ali?

A sessão de fotos parecia ser quase interminável, mas ficou boa. Eu até então não tinha me dado conta de que esses caras tiram tipo 50 fotos para depois escolher uma que lhes agrade.

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Posando para a foto do jornal com a minha amiga.

Agora sente junto da sua namorada assim“, foi nos dando ordens o jornalista.

Ele não é meu namorado“, respondeu Pavlína com aquele atravessamento contido de quando os escorpianos olham fixamente para esclarecer algo tentando (ainda) não desmanchar a compostura.

Eu me contentava em sorrir diante do causo todo.

O que for. Quem olhar o jornal amanhã não precisa saber“, respondeu leve o jornalista, com aquele tom de e “eu tô lá preocupado com o que vocês realmente são”.

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Pose vai, pose vem…
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Terminamos com esta.
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No dia seguinte.

E isso vai sair no jornal mesmo?“, indaguei eu, talvez brasileiro demais, achando ainda que pudesse ser alguma conversa fiada.

“Sim. O editor me deu a primeira página”, respondeu-me o jornalista já enquanto jantávamos.

Ele nos agraciou com um jantar por conta dele (ou do jornal?) pela nossa contribuição estética. Enviou ao editor já do laptop na mesa do restaurante enquanto eu comia meu queijo frito. 

Smažený sýr (literalmente “queijo frito”) é uma comida típica tanto aqui pela Tchéquia quanto na Eslováquia — onde vegetarianos em geral sofrem para encontrar algum prato principal típico que não tenha carne, nesta terra de antigos veneradores do santo patrono dos caçadores. 

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Smažený sýr (“queijo frito”), comida típica cá na antiga Tchecoslováquia. É basicamente um queijo empanado que derrete por dentro, acompanhado aqui de batatas cozidas e de salada. (Eu ainda me lembro que Pavlína ficou indignada quando eu deixei escapar que estava preocupado com minha nutrição, comendo só destas coisas por aqui.)

Como permaneci nestes cantos alguns dias, fiz de Vsetín também minha base para visitar um pouco do que há neste leste da Tchéquia — e que mostrarei.

Eu, é claro, no dia seguinte fui ver o jornal. Fui lá eu à banca de revistas da estação de trem a ver-me estampado — e, na minha vaidade vã, a me perguntando se seria reconhecido pela vendedora da banca como o rapaz da capa do jornal. Que nada; entrei e saí com a minha cópia sem ser reconhecido.

Claro que está bem guardado entre os meus tesouros pessoais coletados do mundo afora. Foi até hoje a única vez em que eu apareci num jornal. Se um dia eu ficar famoso, o Valašský deník pode se vangloriar de ter sido o primeiro.

Mairon Giovani
Cidadão do mundo e viajante independente. Gosta de cultura, risadas, e comida bem feita. Não acha que viajar sozinho seja tão assustador quanto costumam imaginar, e se joga com frequência em novos ambientes. Crê que um país deixa de ser um mero lugar no mapa a partir do momento em que você o conhece e vive experiências com as pessoas de lá.

One thought on “O dia em que eu fui capa de jornal na Tchéquia

  1. Ihhh que beleza, heimmmm meu jovem amigo viajante, nessa publicação bem mais jovem ainda, hahaha.
    Linda a região, com as charmosas casinhas beges de formosos telhadinhos vermelhos, com suas verdes e belas colinas. Um encanto de lugar.
    Linda ficou a capa do jornal, Ficaram um charme. E que interessante a escultura e a história do vidente santo. Do lado de cá das terras brasílias ele não é conhecido. Não conheço também a bebida. Bonita a embalagem. Gostei também da escultura. E os senhores ficaram charmosissimos. Parecendo atores de “La dolce vita” hhahahah uauu !…
    Essa comilança parece saborosa mas só dá para o “buraco do dente”, como dizia o povo antigo, para pouca comida.
    Bela aventura. Gostei. Vale guardar mesmo, para a posteridade. A questão é o kiprokó da língua hahah para tentar dizer mais tarde o significado da foto hahaha.
    Valeu, jovem viajante. Adoro essas aventuras.

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