Pandemia no ar, gradualmente esvaecendo embora resista ainda em alguns lugares. Países aos poucos se abrindo aos visitantes. Prevejo um revenge travelling (“tirar o atraso”) substancial nestes próximos anos. O apetite (mal)contido já se mostra.

Na Europa, onde moro, a Áustria foi dos primeiros países a abrir — 10% de toda a sua economia sendo dependente do turismo. E com razão: é terra de mais riquezas e belezas do que imaginava eu.
Eisenstadt, com a qual começo esta jornada, é uma pequena cidade a curta viagem de trem desde a capital Viena. Aqui mandavam os Condes de Esterházy, família nobre húngara que nos deixou belo legado, incluso um lindo palácio a se visitar; e terra onde viveu e trabalhou para os Esterházy o compositor austríaco Joseph Haydn (1732-1809), contemporâneo, amigo e tutor de Mozart e Beethoven. (Não é pouco para se ter no currículo!)
Mais sobre ele em instantes, quando mergulharmos na cidade. Há bastante sobre ele e outras coisas neste recanto austríaco pitoresco. Ah! Esta é também a terra natal do bolo Esterházy (Esterházyschnitte) que você encontra por aí, Áustria afora e na Hungria. É claro que eu experimentei.
Acompanhem-me.

Visitando a Áustria no pós-pandemia
Sim, estou chamando de “pós-pandemia” porque, aqui na Europa, o pior parece já ter passado. O clima já está de reabertura, com medidas sendo tomadas para trazer de volta à vida aqueles setores parados da economia. Lamentei muito pelos simpáticos albergues (das minhas instituições favoritas no século XXI), muitos dos quais faliram.
Não sei como está neste exato momento em que você me lê o controle de entrada de pessoas vindas do Brasil — não me consta que esteja aberto, mas também isso tem mudado o tempo todo. Aqui dentro da Europa, basta mostrar o certificado digital de vacinação que é válido em toda a União. (Vantagens da integração.)
Máscaras se usam ainda, mas só nos ambientes internos.
Inclusive, a Áustria adotou já há algum tempo a exigência de se mostrar tal certificado (se não de vacinação, de ter sido testado com resultado negativo nas últimas 72h) para se entrar em hotéis e restaurantes — isso que se está introduzindo sob bastante gritaria na França e na Itália — e na prática não é nenhum fim do mundo. Se deveriam fazê-lo ou não, é uma outra conversa na qual eu não vou entrar aqui; só quero dizer que não é nada “impraticável” como alguns sugerem.
Tudo o que custa é tirar 10 segundos para mostrar um documento pelo celular ou uma folha de papel tirada do bolso. A saber, jamais um austríaco scaneou meu QR code. Era só olhar a data da vacinação, e pronto. Tampouco checavam se aquele documento realmente era meu. Sim, a coisa é um pouco frouxa, mas eles devem achar que ainda assim o esforço coletivo compensa, mesmo que alguns venham a trapacear.
Aliás, às vezes a checagem — inclusive no aeroporto — é tão “nas coxas” e zoneada que, se fosse no Brasil, certamente muitas pessoas entrariam naquele refrão meio vira-lata de “Êêê, Brasil!“, como se fora das nossas fronteiras fosse um paraíso encantado habitado por unicórnios e não humanos.

Distanciamento social foi para as cucuias.
Chegávamos numa noite de trovoada — o piloto só conseguiu pousar na terceira tentativa devido ao vento enquanto os relâmpagos iluminavam as janelas do avião. Vi a hora de irmos pousar em Bratislava, o que talvez tivesse acontecido se a Eslováquia não tivesse regras diferentes de entrada.
Após longa espera pelas bagagens no aeroporto, uma horda de viajantes com suas malas seguíamos pelo metrô Viena adentro. Aquela umidade, friozinho da noite, o clima de pós-trovoada de uma noite de verão.
Eu via o resultado da chuva nas ruas vazias exceto por um outro grupo de jovens cujo falar alto ecoava no silêncio da noite. Já estávamos perto de uma da manhã quando eu, finalmente, cheguei à minha acomodação — um dos albergues sobreviventes.

Indo de Viena a Eisenstadt
Esta é a Baixa Áustria, campestre, de planícies e plantações. Contrasta-se com a Alta Áustria de montanhas e elevações mais a ocidente. (Estes são dois termos administrativos aqui no país, como províncias — não são alcunhas meramente geográficas.)
Estávamos, porém, prestes a entrar numa outra província: Burgenland, que foi da Hungria até 1921. Entrarei nos gostosos detalhes históricos mais a seguir.
Por ora, basta saber que mera 1h de trem separa Viena de Eisenstadt. Você sequer precisa reservar passagens com antecipação; basta comprá-las em qualquer máquina à estação na hora de viajar. Há partidas todas as horas.

Só tenha a atenção de entrar num trem com destino final para — nome ótimo para você pôr no seu cachorro — Wulkaprodersdorf, não Pamhagen. O trem se divide no meio do caminho: a parte de trás vai para Pamhagen, aonde você não quer ir hoje. Verifique que no interior do seu vagão que o letreiro eletrônico esteja mostrando a cidade final certa.
Eu, ainda precisando de me reaquecer, estava com a metade errada do trem e quase fui parar aonde não queria. No meio do caminho, me dei conta e, numa parada, corri por fora para um vagão mais adiantado do trem, já que por dentro eles não se conectavam.
Nada como aquela dosezinha de adrenalina de manhã para começar bem a viagem. Bem-vindos a Eisenstadt.

Visitando o centro histórico de Eisenstadt
Eisenstadt é uma cidade pequena. Meros 15 mil habitantes, embora não seja bem um vilarejo.
Ao desembarcar na modesta estação de trem, vi os prédios modernos que, embora bem menos salientes na sua arquitetura, também eles buscam imitar os tons pasteis típicos aqui da Europa Central.
São prédios ordinários, diria eu sem dourar a pílula, que no entanto são substituídos por edificações mais elegantes conforme você avança nos 15 minutos de caminhada até o centro histórico. A estação ferroviária fica ligeiramente afastada, pero no mucho.



São Martinho de Tours (316-397), você talvez reconheça por conhecimento histórico ou religiosidade, é dos personagens mais emblemáticos do nacionalismo francês. O que estaria ele fazendo aqui?
É que, muito embora tenha se feito famoso na Gália, atual França, ele era soldado romano nascido nesta região daqui — a Pannonia.
Mais precisamente, ele nasceu onde é a atual cidade húngara de Szombathely, do outro lado da fronteira, mas aqui pertinho. Toda esta região é muito devota a ele, e portanto a Catedral de Eisenstadt é em sua homenagem.



A atmosfera era quieta, como se vê. Ali, uma coluna, das que se vê em muitas cidades da então Áustria-Hungria, erigida no século XVIII como monumento por a cidade ter superado uma epidemia da peste.
Não acredito que se farão novos monumentos desta vez, no século XXI, mas se nota o gradual retorno da vivacidade das pessoas.



Ao Palácio dos Esterházy
Vamos ao que interessa. O coração real de Eisenstadt — e atração mais bela — fica ligeiramente fora do centro histórico, a algumas ruas dele. Era habitual. E, como de hábito, vamos a uma breve contextualização.
Toda esta região de planícies desta parte da Europa Central que os romanos chamavam de Pannonia veio a se desenvolver como uma zona fronteiriça durante a Idade Média. Fronteira, inicialmente, entre os cristãos germânicos e os cavaleiros húngaros vindos da Ásia.
Quando os húngaros se convertem ao cristianismo no ano 1000, as lutas passam a ser mais puramente entre reinos e ducados com os seus interesses distintos. A briga religiosa — e a nova fronteira de verdade — emergirá somente nos idos de 1400 em diante, com o avanço dos islâmicos turcos otomanos Europa adentro. Eles tomam todos os Bálcãs, muito do que é a atual Hungria, e atacam Viena (sem conseguir conquistá-la) por duas vezes, em 1529 e 1683.
Os austríacos e húngaros meio que se tornam amigos nesse contexto. Embora houvesse uma preponderância clara dos Habsburgo da Áustria enquanto família imperial, eram muitas as famílias nobres de origem húngara que também compunham o império. Dentre eles, os Esterházy, feitos condes destas terras no século XVII.

Estamos diante de uma mansão do século XVII, com retoques vários do século XVIII, e que é um dos melhores exemplos de arquitetura barroca na cidade.
Você pode visitá-la hoje por dentro, inclusive com um tour guiado, e é visita obrigatória aqui em Eisenstadt.
Aqui viveram os condes de Esterházy por 300 anos, e Joseph Haydn trabalhou — como compositor da corte — quase toda a sua vida.
Vamos adentrar.

Muita gente sequer sabe que há tours guiados em inglês por meros 3 euros acrescidos ao preço da visita. Vale a pena! A guia vai com você lhe mostrando as coisas e explicando tudo por 1h. Você também ganha acesso exclusivo a áreas extras do palácio. (Há tours também em alemão ou húngaro. Não é obrigatório, mas você pode ver os horários e reservá-los com antecedência pelo site oficial.)
Na ausência de muitos outros visitantes e pouco conhecimento que estes tours existem, eu acabei tendo o meu VIP, exclusivo com Sabine, uma simpática guia austro-italiana de seus 50 e poucos anos.



Os Esterházy ganharam estas terras e prestígio muito pela sua lealdade, tanto aos Habsburgo (a família imperial) quanto à Igreja Católica. Sempre havia uma tensão por parte dos húngaros que preferiam se ver livres dos austríacos, e outros que achavam por bem manter o status quo — e beneficiavam-se com isso.

Ajudar os Habsburgo quase sempre significava dar-lhes dinheiro para as suas custosas guerras e palácios. Era empréstimo, mas os Esterházy sabiam que nunca veriam a cor daquele dinheiro de volta.
Recebiam, então, honrarias. Em 1712, o imperador os elevou ao título de príncipes no Sacro-Império Romano Germânico, cuja capital nesse período era Viena.
Aquele, o século XVIII, foi talvez o mais esplendoroso nestas terras. Foi quando, além das artes barrocas que vossos olhos ainda podem contemplar, surgiram os grandes talentos germânicos de Joseph Haydn (n.1732), Mozart (n.1756), e Beethoven (n.1770). Eles todos, cedo ou tarde, vieram parar aqui nestas bandas.



Joseph Haydn tinha a sua própria casa aqui em Eisenstadt (que eu vou mostrar em instantes), mas passava grande parte do tempo cá na corte compondo e apresentando-se nos eventos sociais dos Esterházy, seus mecenas.
Se você acha que não reconhece nenhuma obra de Haydn, está muito provavelmente enganado.
Você já alguma vez ouviu essas notas aí abaixo?
O atual hino nacional alemão tem a sua própria letra, mas a melodia foi adotada do que era originalmente a obra de Haydn “Deus salve Francisco o Imperador” (Gott erhalte Franz den Kaiser), composta em sua honra no ano de 1797.
Haydn havia viajado a Londres no fim do século XVIII e, lá, teve contato com a Deus Salve a Rainha (God save the Queen) dos britânicos. Achou por bem compor uma versão centro-europeia para aquele que foi o último sacro-imperador romano germânico, Francisco II (reinou de 1792 a 1806).
Mesmo a quem não entender alemão, eu recomendo a versão original da música abaixo, no piano, e com a letra que Haydn compôs em honra ao imperador. (Acho que você irá sorrir com a letra lisonjeira.)
Nessas suas viagens pela Europa, Haydn encontrou o Beethoven jovem — aos 20 anos — em Bonn, na atual Alemanha, e o trouxe para cá como seu pupilo.
Haydn também deu aulas ao prodígio Mozart, um fenômeno que nasceu depois e faleceu antes de Haydn. Eu não sei se muita gente se dá conta, mas Mozart morreu ainda aos 35 anos, não se sabe exatamente de quê. A Áustria ficou em luto, ao que Haydn — à época já um senhor quase sexagenário, e que viveria até perto dos 80 — lembrou-lhes que deveriam, em vez de lamentar, ficar felizes que alguém tão esplendoroso viveu em seu meio e que puderam conhecê-lo.
A música clássica de Haydn é quase toda alegre, como você pode notar ouvindo-a por aí internet afora.

Já a família dos Esterházy acabou. A sua última representante, a condessa Melinda Esterházy, faleceu em 2014, mas não antes de criar uma fundação com o nome da família e legar este palácio sob a sua administração.
A Torta dos Esterházy
Algo muito comum aqui na antiga Áustria-Hungria, como você se dará conta, são as receitas de sobremesa. Cada qual mais complexa e rica de ingredientes que a outra — e frequentemente em homenagem a algum lugar ou a alguém.
Se os Esterházy vivem, e seu nome segue pronunciado diariamente, é sobretudo pela receita de bolo desenvolvida pelo cozinheiro daqui e nomeada em sua homenagem.
É claro que eu tinha que experimentar, e nenhum lugar melhor para isso que aqui em Eisenstadt.


Antes de dar esta volta no parque, eu fui almoçar após sair do palácio.
Almocei uma pizza pouco digna de nota num recanto onde uma garçonete solitária pediu para ver o meu comprovante de vacinação. Tomei um fresco enquanto via as nuvens dançarem no céu, aquela tarde de calor que prenuncia outra trovoada como a da noite anterior.
O meu interesse estava na sobremesa — o bolo Esterházy que eles anunciavam ter no cardápio.
Eu aqui preciso dizer duas coisas. Primeiro, que eu jamais havia experimentado desse bolo — foi minha primeira e única vez. A segunda coisa é que, eu venho às vezes chamando de “torta”, mas os austríacos e húngaros têm nomes bem mais precisos para essas coisas.

Os húngaros normalmente a fazem propriamente como uma torta — que na concepção deles aqui é sempre algo redondo e com massa em volta. (Quando os centro-europeus ouvem falar em “torta” retangular eles fazem a mesma cara que eu quando me falam em “moqueca” sem azeite de dendê.)
Os austríacos geralmente seguem a receita em formato de schnitten, que é esse bolo em múltiplas camadas — a mesma estética do biscoito Mirabel, cujo nome vem de um palácio austríaco em Salzburgo (ha!).
O que leva: várias camadas de massa fina levemente banhadas no conhaque, intercaladas com creme de amêndoas, e em cima aquela cobertura branca de açúcar.
Gostei? Não. É doce pra cacete, parece que você está comendo pura massa de manteiga com açúcar. Se a culpa é do confeiteiro e alguém a recomenda num lugar melhor, aceito sugestões. Darei uma segunda oportunidade aos Esterházy experimentando a versão torta — em lugar de schnitten — original lá na Hungria quando eu voltar a Budapeste.

A casa e o túmulo de Joseph Haydn em Eisenstadt
A casa onde Haydn viveu em Eisenstadt é hoje um pequeno museu na cidade, que você pode visitar se for fã do compositor ou interessado em detalhes da sua vida e obra.
Pequeno, você percorre tudo em meia-hora — ou mais se quiser se deter para ler cada detalhe. Aqui Haydn viveu durante os quase 30 anos em que foi mestre de capela (Kapellmeister) dos Esterházy, e você encontra partituras originais de sua obra em Eisenstadt.
Há um audioguia incluso no preço que pode ser útil — mas peça por ele, ou a pessoa da recepção pode deixá-lo entrar sem levantar o assunto. É o que ia acontecendo comigo.



Haydn está enterrado aqui em Eisenstadt numa igreja que hoje leva o seu nome (a Haydnkirche), com um mausoléu.
Visualmente, é um lugar mais impressionante que a Casa de Haydn em si — e a igreja, feita a assemelhar o Gólgota com uma elevação que remonta as paragens da Via Crucis, me impressionaram mais que a catedral da cidade.




A entrada na igreja em si é gratuita, mas há uma tarifa — ou melhor, duas — se você quiser (1) ver o Mausoléu de Haydn detrás de uma porta, e (2) percorrer escadarias por detrás da igreja com dioramas da Via Crucis até chegar ao alto da edificação.
É uma quantia módica, mas mesmo assim achei meio estranho pagar para a funcionária simplesmente me abrir uma porta e eu ver o mausoléu de pedra do compositor. Eu vos mostro gratuitamente aqui.

Mais interessante — e eu recomendo que você o faça — é o percurso com subida até o topo da igreja. Não tanto pelas cenas da Via Crucis, com todo o respeito, que nós vemos dezenas de vezes em vários lugares. Mas a vista lá do alto é que é bela.




É mesmo uma cidadezinha para fazer um bate-e-volta. Não vi muito sentido em dormir aqui; as coisas se aquietam à noite. E sugiro vir cedo, pois os museus e atrações fecham já às 17h – 17:30.
Eisenstadt, prazer em conhecê-la. Outras paragens do interior da Áustria nos aguardam.
Ihh, que cidadezinha fofa, aconchegante!… Que lindos girassóis!… Deslumbrante esse palácio. Belas paisagens.
Maravilhosos seus templos soberbos, com fantásticos interiores, seus casarios lindos, decorados, de belos tons.
Suas floreiras, seus jardins são encantadores. Lindas as pracinhas com seus pisos ricos em arte.
Elegante e estilosa prefeitura, imponentes monumentos e ilustre passado com figuras magnificas. Pura arte, cheia de beleza. Uma graça.
Interessante a história da região. O mudar de dono era pelo visto muito comum nessas época para as regiões.
O compositor é bastante conhecido e apreciado. Não o sabia dai nem da sua influencia em em outros compositores famosos. Gosto muito da musica dele. Vibrante, harmoniosa e ao mesmo tempo suave. Muito bonita.
Aprecio bastante esse hábito de preservar o passado para ser vivenciado no futuro por quem não o conheceu. Infelizmente desse lado de cá da Latinoamérica, em particular do Brasil, não há esse cuidado.
Amei essa capelinha do Palácio, a Igreja do interior rosa, além de ver o órgão original tocado por Haydn. Histórico. Merecida a homenagem a ele.
O senhor está ótimo meu jovem amigo e, data venia, continua parecendo um gato, a subir nos telhados hahah.
Que bela região. Obrigada por essa bela viagem à terra do grande Haydn.
Curiosa e interessante essa história do Hino da Alemanha ter a trilha sonora do grande compositor austríaco Haydn.
Essa pandemia, suas perdas de vida e transtornos!…. Um horror.
Nós, aqui no Brasil temos sofrido muito e desejando que ela se afaste de vez.
Minha filha mora lá é encantadora a cidade.