Beethoven é uma dessas figuras europeias conhecidas através das gerações no Brasil. Sabe-se que ele era alemão, mas poucos conhecem sua vida — exceto o fato de ter ficado praticamente surdo e, ainda assim, composto peças magistrais — ou que ele viveu aqui na Áustria. Na simpática cidadezinha de Baden, que visitamos hoje.
Baden, porém, não é só Beethoven. Esta simpática cidadezinha a meros 40 min de trem desde Viena é famosa por suas termas (Baden em alemão quer dizer “banhos”), servia de “retiro da cidade grande” para as pessoas de posse nos séculos XVIII e XIX (ainda serve), e com isso registra uma elegância barroca tipicamente austríaca.
De quebra, alinhada com interesses germânicos perenes, há bosques e riachos nos seus arredores, onde ainda se podem ver ruínas de castelos medievais — de quando os austríacos precisavam defender-se dos húngaros ou dos otomanos. Você ainda pode ver o que sobrou disso.
Se vier no verão, fica um passeio agradável onde se veem os austríacos a passear com seus cachorros, ao lados de corredeiras que correm. Foi quando viemos, saídos algo que repentinamente da região montanhosa no oeste do país.

Chegando a Baden
Viemos a Baden meio que de supetão. Não era o plano. Tínhamos o plano de visitar mais coisas no oeste da Áustria, sua região montanhosa, após correr por Bad Ischl, Hallstatt, e as demais belezas do Vale Gosau e seus arredores. Contudo, a chuva nos botou para fora. Quem acompanhou o noticiário soube dos dilúvios na Alemanha, e muito embora não tenha havido problemas da mesma dimensão aqui na Áustria, as pancadas diárias com trovoadas estavam recorrentes.
Viemos então de volta à Panônia — esta região baixa da Áustria, onde fica Viena, e que inclui também as planícies Hungria adentro. Outro clima. Outra Áustria, se diria, exceto pela onipresença do barroco de seus tempos áureos dos séculos XVIII e XIX.
Refugiamos-nos em Baden, como Beethoven já havia feito, a experimentar do charme tranquilo desta cidadezinha.

Como Baden surge, e Beethoven por aqui
Baden já é local de fontes termais desde sempre, e os próprios romanos já tinham aqui suas chamadas Thermae Pannonicae — batizadas assim por ficarem na Panônia, como então chamavam esta região.
Houve aqui castelos medievais que mostrarei num instante (o que sobrou deles), mas o interesse por banhos só ressurge mesmo no século XVIII. É quando aparece na Europa, sobretudo nos países de língua alemã, o interesse por banhos de sais. Surge a cultura do refugiar-se numa cidade pequena, seja nas montanhas, seja num balneário como este, para cuidar da saúde.
(Acerca de banhos enquanto tal, registre-se que os turcos eram muito mais limpos, e fizeram banhos públicos nos territórios europeus que conquistaram. Foi o caso dos tantos que ainda existem em Budapeste, na Hungria, e como você também vê nos hamams em Istambul e Turquia adentro. Como os árabes da Idade Média na Ibéria eram também mais higiênicos que seus contemporâneos cristãos.)

Higiene de modo geral na Europa é algo bem mais recente, sobretudo na Europa Ocidental. Você ainda encontra apartamentos antigos sem banheiro próprio, e vê — em plena terceira década do século XXI — acomodações recém-feitas e sem pia para lavar as mãos no sanitário.
O que (re)surge no século XVIII na Europa é o interesse da Antiguidade de balneários como “sanatórios“. Não no sentido atual, de lugar para pessoas como problemas mentais, mas no sentido original de lugar onde sanar-se.
Assim foi com Ludwig van Beethoven (1770-1827), que veio para cá já famoso na maturidade, a recuperar-se de seus problemas de saúde. E aqui em Baden, onde morou nos anos 1821, 1822 e 1823, compôs — já praticamente surdo — a nona sinfonia, considerada por muitos a sua obra mais magistral.


A Nona Sinfonia de Beethoven, a quem não reconhecer de imediato, é aquela que inclui o famoso Ode à Alegria, que se tornou hino da União Europeia.
Essa é só uma fração do que é a Nona Sinfonia por inteiro, mas o pedaço mais conhecido. Se você não associa o nome à melodia, escute-a abaixo. Muito provavelmente já vai ter ouvido estas notas antes.
O Ode à Alegria começa com notas obviamente dramáticas — como que a trilha para uma grande crise, e que aos poucos se dissolve em uma composição cada vez mais alegre, esperançosa.
Não foi à toa que a escolheram em 1972 para ser o Hino da Europa. Viu-se o terror que o continente passou durante as duas guerras mundiais, e ainda assim a sua resolução de superar o drama e buscar a harmonia, prosperidade e alegria conjuntas.
Há uma lenda o título original da obra seria Ode à Liberdade (Ode an die Freiheit) em vez de Ode à Alegria (Ode an die Freude), mas não parece haver evidência disso. O título, de qualquer maneira, provem de um poema de 1785 do alemão Friedrich Schiller, e cujas palavras Beethoven integrou à sua composição musical terminada em 1824. É uma das raras obras clássicas com vocal.


Beethoven veio para cá já aos 51 anos de idade. Ele sofria para danar. Teve tifo, pneumonia, hemorróidas, sofria de reumatismo, bebia demais, tinha icterícia, e morreria de cirrose hepática em 1827.
Sem falar, é claro, na perda auditiva cuja causa não é exatamente compreendida no caso dele. Foi gradual, de modo ficou sendo preciso gritar para falar com ele, até o ponto em que as conversas passaram a se dar completamente por escrito.
E como pôde um surdo compôr? Há quem diga que isso, na verdade, o ajudou. Da mesma maneira que um cego passa a identificar melhor o ambiente ao seu redor, sugere-se que a surdez de Beethoven deu asas a uma imaginação auditiva superior àquela de quem ouve.
Ele veio se tratar desde cedo aqui em Baden. A sua primeira visita sazonal à cidade se deu em 1803, até as suas estadias mais longevas nos seus últimos anos, a última em 1825.


Ele, que nasceu em 1770 na cidade alemã de Bonn (que eu visitei e mostrei há alguns anos, e onde também há um museu em sua homenagem), faleceria de cirrose em Viena em 1827 aos 56 anos.
(Se você ficou a se perguntar “E qual era aquela mesmo que tocava na propaganda política do saudoso Enéas Carneiro?“. Aquela é a Quinta Sinfonia. Isso sem falar em Für Elise, a que ficou irritantemente eternizada como música de espera em chamadas telefônicas por muitos anos. São muitas as obras de Beethoven, e das mais variadas as nossas emoções com as músicas dele — mais do que ele jamais imaginaria.)
Baden como cidade de veraneio do imperador
Em 1803, o austríaco imperador Francisco II decidiu fazer de Baden a sua morada de veraneio. A cidadezinha experimentaria um boom, e toda a aristocracia da época vinha para cá.
Houve um incêndio em 1812, então muito — do que você vê hoje — viria a ser construído naquela pegada neoclássica, afora alguns elementos de maior floreio.
A cidade segue sendo um charme, e segue atraindo a gente rica de Viena, com casas aqui.




É uma joiazinha.






A cidadezinha tem todo um ar de classe, embora obviamente nem todos aqui sejam da aristocracia. Há famílias menos abastadas passeando, gente que vem dar um pulo desde Viena, e turistas em geral (embora poucos estrangeiros). Isso é uma herança de como ela surgiu.
Aqui a Baden, que às vezes ainda é chamada de Baden bei Wien para não confundir com as outras de nome similar na Alemanha ou na Suíça, os nobres e demais pessoas de posses na Áustria-Hungria imperial vinham descansar, relaxar, tomar café, e jogar. Há até hoje um cassino, que você pode visitar se for do seu feitio.
Ele fica adequadamente localizado próximo das termas (hoje um banho pago) e de um agradável parque florido e bem recortado, naquele estilo mesmo das realezas europeias.



Esse Strauss que você vê na estátua não é aquele que compôs o Danúbio Azul e outras valsas de renome internacional, mas o pai dele. O mais famoso internacionalmente foi Johan Strauss II (1825-1899), e esse era Johan Strauss I (1804-1849).
Não que eles tenham reinado em lugar algum, mas certas famílias adotavam esse sequenciamento nos nomes. (“Junior” é invenção de americano.)
Tanto a família Strauss quanto a família Lanner dedicavam-se a compor valsas, mas enquanto a primeira fez tours pela França, Inglaterra e alhures — ganhando assim renome internacional —, Lanner dizia que os estrangeiros não estavam preparados para apreciar suficientemente a valsa vienense. Pois bem, ficou menos conhecido.
O francês Hector Berlioz viria a dizer depois que “Viena sem Strauss é como a Áustria sem o Danúbio.“



Talvez o principal impedimento para Baden “bombar” como destino de veraneio é que tudo fecha às 18h. Você quase se sente num balneário de beira-mar, é quase como se alguma parte do Mediterrâneo estivesse ali próximo por detrás das casas, exceto pela quietude que o lugar adquire antes mesmo de o sol se pôr.
As lojas fecham às 18h não por tradicionalismo, mas por direitos trabalhistas. Acho um certo exagero; poderiam simplesmente empregar outras pessoas para o turno da noite. Às 19h, tudo já está relativamente quieto, com somente alguns na rua a circular — em meio a tudo fechado — à procura de restaurantes onde jantar. Estes, sim, estão abertos, mas silenciosos ficam, com um certo clima de Sexta-Feira da Paixão.

Os arredores campestres de Baden — e com ruínas medievais
Eu já observei de outras vezes que a cultura germânica tem, talvez desde sempre, uma certa ligação primeva com o natural, os campos, as matas, as florestas. (Não à toa que a noção de Partido Verde, que viria depois a ganhar todo o Ocidente, tenha primeiro surgido na Alemanha — nos idos de 1970, 1980.)
Portanto, ninguém há de estranhar que o atrativo de Baden — do qual Beethoven e outros gozavam — não foi apenas a parte urbana, bem decorada com as artes; eram também os arredores campestres e com bosques onde fazer caminhadas.
Nisso, os suíços, alemães e austríacos modernos parecem ter puxado aos seus ancestrais. A coisa segue na cultura. Embora não haja mais os Bosques de Viena na proporção que havia séculos atrás, há ainda agradáveis matas com trilhas fáceis — e planas — onde realizar caminhadas tranquilas.
De quebra, você pode esbarrar num dos vários castelos medievais do século XII ou XIII que seguem em ruínas por aqui nas colinas.


Um café da manhã destes, que tomamos antes de ir dar uma volta, você obtem facilmente em qualquer supermercado — se não for domingo e ele estiver fechado.
Comemos algo, preparamos uns sanduíches, e tocamos breve marcha para ver um dos castelos medievais em ruínas.

Fomos às ruínas do Castelo Rauhenstein (do século XII) pela margem de um córrego na mata. Nada selvagem, mas agradável o bastante com aquele som gostoso da água a correr.
Em vez dos ursos de outrora, aqui trafegavam nas águas rasas os muitos cães de uma família que passeava. Um tinha medo da água, ou temia pelos outros, e ficava ansiosamente a emitir sons de angústia quando os demais se recusavam a vir embora.
Umas libélulas negras voavam entre nós lá e cá no que era uma manhã de sol.


Uma mera meia hora de caminhada fácil separa o centro de Baden de onde fica a ruína do Castelo Rauhenstein.
Se você for do tipo que gosta de gozo e conforto, saiba que bem aqui há uma filial da famosa rede de hotéis Sacher — produtor da homônima Sachertorte, a torta Sacher.
Inventada pelo confeiteiro austríaco Franz Sacher em 1832, alega-se que para o Príncipe de Metternich, é um denso bolo de chocolate com uma leve camada de geleia de damascos. Ela hoje é feita por várias partes, mas “a original” — que vem com selo do nome Sacher e tudo estampada na cobertura — você encontra nos hotéis desta rede.
Eu, pessoalmente, acho que estas tortas austríacas são magníficas quando feitas em casa e desapontadoras quando compradas. Tive minha experiência com a linzertorte em Linz, que relatei. A sachertorte eu nunca tentei fazer, mas as que comi — mesmo as tais originais vendidas pelo hotel — perdem pra bolos de chocolate feitos em Feira de Santana ou qualquer lugar do Brasil. (Perdoem a franqueza.)



Estas são ruínas realmente arruinadas — não é uma atração turística, com bilheteria, trabalho de restauração nem nada disso.
Há os portões ainda do século XII no meio do mato, e ninguém lá. Se você puser no Google para encontrar a localização exata, verá que está “fechado”. E de fato está, só que não.
Traduzo: puseram uma grade nos portões para ninguém entrar, devido aos riscos de alguém despencar, mas é possível adentrar se você subir a quase-trilha que há à direita do portão. Por sua conta e risco.

Não se conhece muito da história desse castelo, exceto que deve ter pertencido à família Tursen, de cavaleiros. Foi destruído e arruinado ao longo do tempo. Hoje, persistem a torre e suas muralhas de até 20m. Não há muito o que ver no interior do portão; o principal é a vista. Acaba mais sendo uma curiosidade, aonde ir dar uma espiada num sábado de tarde com os amigos.


Retornaríamos a Baden pelo mesmo trajeto, naquela tranquilidade que caracteriza a cidade mesmo no verão. Não sei o que Baden é em outras estações, mas me pareceu claro que é um destino para se visitar preferencialmente entre abril e outubro. Talvez no outono também fiquei bonita.
Desde 2021, juntamente com várias outras pequenas cidades europeias, Baden integra um raros transnacionais Patrimônios Mundiais da Humanidade da UNESCO, a dos Grandes Balneários da Europa — todas elas cidades históricas. Estão inclusas Baths (Inglaterra), Vichy (França), Spa (Bélgica), Františkovy Lázně, Karlovy Vary e Mariánské Lázně (Tchéquia), Montecatini Terme (Itália), além de Bad Ems, Baden-Baden e Bad Kissingen (Alemanha).
Baden é a única representante austríaca, que aqui lhes está modestamente apresentada.
Ah! Se você quiser ouvir a versão integral da Nona Sinfonia de Beethoven, ei-la aqui. Ela não são só aqueles poucos minutos do Ode à Alegria; ela inteira dura cerca de 70 minutos, portanto mais de 1h, no que se sente como toda uma saga musicada. É um esplendor, a se assistir com quem vê um concerto. Talvez o único feito por um homem surdo.
Linda, a cidadezinha: belas ruas e ruelinhas bem conservadas, cheias de verde, lindas praças com belos e floridos canteiros, arquitetura pujante, belíssimos monumentos, bosques encantadores com rios de águas límpidas. Cercada de natureza, com elegantes colinas. Pequena, simples, singela, garbosa no seu passado histórico, rico de arte e bom gosto. Um primor. Linda.
E que maravilha os seus bosques cantantes e parques, seus elegantes e belos prédios de estilos soberbos. Cercada de “belas colinas e sob o encanto de um céu azulado”, como diz uma poetiza brasileira e nordestina.
Belíssima. Participa desse colar precioso de custosas, artísticas e históricas cidadezinha, verdadeiras pérolas dessa maravilhosa Áustria.
Meu jovem amigo viajante, que emoção ouvir essa magistral obra desse gênio fabuloso que foi Beethoven!… Nossa, meu coração ficou aos pulos em reouvir os belos acordes, dessa Sinfonia maravilhosa. E mais ainda em perceber a simplicidade , a resiliência, presentes na vida desse grande homem. Que maravilha. Que vida simples. E quantos obstáculos superados em relação à sua grande obra musical. Impressionante. Amei ver o cachinho dourado do cabelo dele. Que ele esteja na Luz. Fazendo sinfonias lindas para o Senhor da vida.
Linda postagem. Valeu, viajante brasileiro. Obrigada por nos mostrar tantas belezas.
By the way, adorei as comilanças. parecem saborosas.
E concordo com o senhor, meu jovem, aqui no Brasil há muito boas sobremesas, inclusive de chocolate. hahaha