Era um dia de sol quando eu zarpei de Viena rio acima. Não literalmente de barco, mas rumando às cidades históricas austríacas a jusante do rio Danúbio — isto é, antes de ele chegar à capital.
Não há Áustria sem Danúbio (vocês já sabem), mas ele tampouco fica restrito a Viena.
Uma dessas cidadezinhas turísticas rio acima se chama Melk an der Donau, que carrega o nome do Danúbio (Donau, como os germânicos o chamam) já consigo. Seria algo como “Melk ao Danúbio”, para especificar sua localização.
Fica a mera 1h de trem desde Viena, e você pode chegar até aqui num pacote vendido online com a companhia ferroviária austríaca. Inclui trajetos de trem entre Viena e as cidadezinhas de Melk an der Donau e Krems an der Donau, somado a um cruzeiro de barco no pelo Danúbio entre uma e outra.
Eu tratarei desse pacote em detalhes mais tarde. Por ora, comecemos pelo começo: a cidadezinha de Melk.



Brincadeira. Não faço ideia de quem eram, passei em meio às fotos e à festa meramente de penetra ao que circulava.

Melk an der Donau, cidadezinha de mil anos
A manhã começou de sol, mas depois bambeou ameaçando-me com algumas nuvens que, por sorte, não materializaram nenhuma chuva. Entre cinzas e azuis no céu, desci na estação ferroviária pequenina e caminhei o que não são nem 10 minutos até o centro.
Melk sempre foi modesta em tamanho — nasceu pequena e ficou pequena. Olhamos às vezes as grandes metrópoles do mundo, que começaram como povoados, e nos esquecemos de que nem todas tiveram esse destino de crescer. Algumas cidades antigas permanecem modestas, mignon.
Esta aqui surge nos idos do ano 831 (!), naturalmente não ainda como cidade, mas um mero povoado no campo. A sociedade europeia era eminentemente rural naquela altura da Idade Média. Somente aos poucos, após o ano 1100 na transição para a Baixa Idade Média, é que as cidades aparecem de forma mais significativa e com certos direitos de autonomia em relação ao senhor feudal.
Aqui, na colina onde hoje se vê um portentoso mosteiro barroco (mais sobre ele daqui a pouquinho), ficava um castelo da família dos Babenberg — a dinastia mais poderosa nestas bandas na Idade Média, antes da ascensão dos Habsburgo.

Eu descrevi anteriormente como estas terras, naquelas alturas do ano 1000, eram fronteiriças entre germânicos cristãos e povos do leste europeu ainda não convertidos. Fortificações eram, portanto, fundamentais para defender a Cristandade da época dos ataques de eslavos e húngaros.
Fundou-se aqui o Margraviato da Áustria, então ainda uma terra que girava em torno da Baviera, sul da atual Alemanha. Mandava o marquês, responsável pela “marca” que delimitava o Sacro-Império Romano Germânico aqui no leste. (“Áustria”, Österreich em alemão, até hoje significa algo como “reino do leste”.)
Em 1089, Leopoldo II, o Justo, Marquês de Áustria da casa dos Babenberg, tomaria uma decisão que marcaria os próximos mil anos da cidade: cedeu o castelo na colina aos monges beneditinos. Estes aqui construiriam um mosteiro, a Abadia de Melk, a qual segue sendo o ponto mais notável da cidade e o seu principal atrativo.

Melk tem pouco mais de uma rua ou duas no seu centro. É um lugar mimoso, pequenininho, e com um calçadão central enfeitado por um casario amarelo, verde-claro e rosa em tons pasteis.
Como tantas cidades turísticas aqui na Europa, nota-se certa quietude matinal — e a coisa começa a ganhar movimento conforme o dia avança, os restaurantes abrem, e mais visitantes chegam.



Ao que eu por aqui passava naquele fim de manhã, na sensação das coisas aos poucos se abrindo e a cidade ganhando vida, os breves envolvidos no casório se movimentavam com fotos, e um rapaz sob aquele toldo azul de campanha de vacinação tocava o acordeom.
Tal como quando você vê um garoto que é a cara do pai, é impossível não notar a filiação daqui com o Sul do Brasil. O gatilho foi menos o visual século XVIII de tons pasteis típicos da Europa Central e mais a música, que por ora me deu a impressão de que o Gaúcho da Fronteira iria começar a cantar. Uma palhinha vai abaixo.
Não me demorei. Ainda no fim da manhã, rumei à abadia beneditina lá no alto para visitá-la antes do almoço. Eu voltaria cá embaixo depois.

Visitando a Abadia Beneditina de Melk
Uma ruela íngreme, um bebedouro de rua. São o que, por entre as pedras da rua antiga, você encontra no trajeto à abadia.
Não é complicado, nem difícil de achar.
O fim é uma longa escadaria por sob uma torre medievalesca que, hoje pintada num amarelinho singelo, parece noutros tempos mais violentos ter tido portões para controlar o acesso à abadia no alto.
Pouco tempo e — com um pouco de pernas — você está à entrada do que é hoje um verdadeiro palácio neoclássico em tons de branco e ocre. Amarelo e branco são as cores do Vaticano — e, há muito, também em Constantinopla, as cores da Igreja — vale lembrar. A escolha aqui não é ao acaso.




Eu não sei vocês, mas eu quando vejo um castelo ou fortificação, logo me pergunto se ele foi invadido e por quem.
Não faltavam assaltos de várias sortes na Idade Média, mas o ataque mais recente e devastador veio dos turcos otomanos em 1683, quando invadem a Áustria e sitiam Viena. (Lembrando que, à época e durante quase toda a segunda metade do milênio, os turcos governavam a maior parte dos Bálcãs no sudeste da Europa. Viena estava quase à fronteira com eles.)
Os austríacos seriam salvos àquela ocasião pelas tropas do rei polonês Jan Sobieski (1629-1696). A abadia seria então remodelada ao gosto da época, já sob a influência pós-medieval do neoclassicismo.

Se parece um pouco que você está no Museu do Louvre ou em algum palácio francês, é por causa da época. Influências dos séculos XVII e XVIII, com a diferença que aqui na Europa Central (um tanto como na Itália) eles usam estes tons pasteis de pintura, enquanto que os palácios franceses tendem a ser na cor da pedra.


A visita ao interior da Abadia de Melk pode se dar tanto por conta própria quanto como parte de um tour com guia. Você pode consultar os preços sempre atualizados na página oficial deles.
Note que se fizer este passeio pelas cidadezinhas do Danúbio comprado com a companhia ferroviária austríaca, o pacote já inclui um voucher de acesso aqui à abadia, que você troca por uma entrada na bilheteria. (Vale a pena.)
O interior é um misto de museu e passeio pelas estruturas históricas da abadia. O mais impressionante, a meu ver, são a biblioteca e a “capela”. (Entre aspas porque chamam-na assim, mas é uma senhora igreja.)
Caso você esteja a se perguntar, não há mais monges enclausurados nem a circular de hábito marrom naquele estilo de O Nome da Rosa por aqui. O prédio, no entanto, continua a pertencer à Igreja, e serve de lugar tanto a atividades pastorais quanto a uma escola religiosa (mas não vi sinal de alunos, talvez por ser verão, ou por eles ficarem noutra parte do complexo).



Adentremos, afinal. Começa-se por uma escadaria rosa, sem nome, onde veem-se estátuas e, ao seu final, um extenso corredor marcado por pinturas de época.



Seguindo adentro pela Abadia de Melk, chega-se a uma parte mais com jeito de museu, onde há objetos religiosos expostos e eles não permitem fotografar. Afora a beleza das cruzes e as vestes vetustas de gentes de outras épocas aqui, o curioso era observar o tom claramente confessional das descrições, em contraste às legendas mais neutras dos museus comuns.
No outro lado das salas, chega-se a uma área aberta onde você tem um avarandado com lindas vistas para Melk e região, e onde fica de frente para a igreja propriamente dita — o coração da Abadia de Melk.





Daqui a coisa fica ainda mais interessante.
A biblioteca vem em seguida. Abrem-se aquelas portas duplas, tal qual num filme, para o espaço interno tomando de livros em elaboradas estantes de madeira (hoje protegidas com uma tela para ninguém bafar um livro e ir embora com ele).
No alto, um teto pintado, formando o que é uma esplêndida livraria barroca. Dessas que tem até temática do YouTube com música fixa pra quem quiser fingir que está naquela atmosfera. Aqui você a tem de verdade.


Termina-se, por fim, com a capela.
A capela — ou, melhor dizendo, a imensa igreja — é escandalosamente bonita, de um barroco quase rococó, róseo e dourado, com o teto pintado com afrescos e muito ouro por toda parte, nichos de um lado e do outro entre colunas planas de mármore vermelho escuro.
(Vê-se que o ascetismo simples de São Benedito ficou para trás há muito tempo.)

Eles aqui, todo meio-dia, realizam uma breve oração coletiva de 15 minutos, onde todos são bem-vindos a participar.
Se você não tiver interesse religioso, vale ainda assim pelo interesse artístico de ouvir o magnífico órgão da igreja em ação.

Se você gostou, eu sugiro reservar umas 2h para a visita a esta abadia como um todo. Afora o que mostrei, há ainda uns jardins de estilo francês de época — uma orangerie que sugere que os monges pelo visto eram fãs de Luís XIV.
O nome, aos curiosos, advém da ideia francesa de cultivar laranjeiras em espaços dedicados nos jardins onde elas estariam abrigadas do inverno — já que não é exatamente uma planta de clima temperado, mas os monarcas queriam cultivá-la mesmo assim, inspirados talvez nos palácios mouros de Sevilha, Granada, e outras partes do sul da Espanha.
Com o tempo, virou um nome Europa afora — e usado ainda hoje — para lugares que por vezes viraram cafeterias para turistas ao jardim. Nem sempre há mais laranjas.

Preparando-me para zarpar
Eu gosto muito de usar o verbo “zarpar” de modo coloquial, mas desta vez era literal: eu estava mesmo para tomar uma embarcação que estava por partir. Afinal, esta visita era parte do combo adquirido com a companhia ferroviária austríaca para vir passar um dia nesta região de Wachau. Detalhes a seguir, no próximo post, com a continuação da empreitada.
Porém, eu não poderia sair de Melk sem antes verificar algo dos seus produtos típicos — nem sem almoçar.
Antes de subir à abadia, eu havia passado por lojinhas oferecendo licor de damasco (ou abricó, de que qualquer maneira aqui na Áustria recebe o nome de marille). Se você disser aprikose como fazem os alemães, acho que os austríacos entenderão, mas não é o nome que eles usam.
Esta região de Wachau é notória por seus abricós, então vê-se de tudo feito com marillen (no plural).

Foi aí que eu entrei numa loja com degustação livre e fiquei de papo com o vendedor.
Era um simpático sujeito gordinho vestido de preto, com a minha idade, cabelo penteado, camisa por dentro das calças fazendo a forma da barriga, e que gostava de conversar.
Foi me explicando coisas. Começou já deixando claro que na abadia não se faz mais licor nenhum.
“Daquele ali eu também tenho. Eu lhe dou pra você provar, e você vai ver. Ali eles pagam uma empresa pra fazer pra eles, põem o adesivo da abadia pra vender mais caro, e pronto. Aquela coisa de monge de capuz fazendo coisa artesanal? Nah. Não tem mais.”
Eu fui acompanhando a conversa ao que o licor cor de âmbar caía no meu copo.
“Eles hoje cuidam é de dinheiro“, terminou o rapaz com um sorriso mal-contido, como que tivesse achado ingênua a minha ideia de que pudesse ainda haver coisa artesanal feita pelos religiosos ali — como ocorre ainda em certos outros lugares.
Na rede de lojas Wieser Wachau você acha vários licores, inclusos os muitos de abricó, mas não vá nos muito âmbar, translúcidos, pois são com pouca fruta e mais álcool com açúcar. Os mais opacos prometem mais polpa de fruta e, portanto, mais sabor.
Segundo o rapaz, mais de 14% destrói a fruta, aí vira aquela coisa açucarada e alcoólica mas sem o gosto do abricó. Você nota a diferença se provar. Acabei preferindo um 10% com bastante gosto da fruta, com ar mesmo de fabricação local. Há também os schnapps, já quase sem gosto de fruta, aqueles destilados estilo aguardente.

Há vários lugares onde comer aqui nesta cidadezinha, por sinal. Geralmente, coisas austríacas algo básicas, como os bolinhos de abricó (marillenknödel) ou schnitzel de frango, vulgo frango empanado.
Se nada lhe agradar — ou preferir algo com mais tempero — há um restaurante chinês chamado Wok In vizinho ao centro de informação turística. Foi o que fiz, apelando para um gosto exótico mais asiático depois de tantos dias aqui na Áustria.
Era hora de seguir para o barco. O Danúbio nos esperava.
Que linda esta cidadezinha. Parece de brinquedo. Mais uma joia dessa região encantadora da vetusta, histórica e sempre bela Áustria. Eita Áustria bonita, sor.
O casario com sua arquitetura de época, deslumbrante, com tons deliciosos de apreciar, com balcões eternamente românticos, ruelinhas fofas, belas e decoradas praças, jardins, flores, arcadas, ladeiras, belíssimas todas, dignas de compor as telas de brilhantes pintores.
Amei ,como sempre, os belíssimos e arrojados estilos arquitetônicos de graciosos detalhes com tons, fortes uns, delicados outros, todos eminentemente belos. Maravilhosos.
O verde da bela vegetação, o azul diáfano do céu austríaco e o verde das águas seja do histórico Danúbio ou de seus tributários, tornam essas paisagens, fantásticas, incríveis, “coisa de cinema”hahah. Parece mesmo uma cidade cinematográfica como suas irmãs mostradas nas diversas postagens dessa série.Um espetáculo!…
Essa Abadia é fenomenal!… Que delicadeza desses tons da fachada, diante desse mimo de jardim e de praça, e das elegantes e sobranceiras colinas azuladas. Lindíssima.
Belo o seu interior bem cuidado com formosos corredores, vias de acesso antigas com belos arcos, escadarias e pátios com direito a belas fontes. Um primor.
Meu amigo, uaaauu!… que é que é isso pessoal… diria um locutor esportivo brasileiro. Quanta beleza nessa capela!… Notre Dame!… esfuziante a impressão que dá a quem aprecia tamanha beleza e seus ricos detalhes de arte e grandeza sem fim. Que maravilhoso espetáculo de cor, tons, rebuscados, luzes, coloridos, num espetáculo difícil de acreditar exista de fato. Incrível, espetacular, belo, magnífico. Que combinação estupenda de vinho, dourado com doces coloridos de rosa e azul. O efeito é difícil de descrever. Magnífico. O teto é uma pintura de perfeito. Toda ela é pura arte. Um espetáculo. Grandiosa, esplendorosa, elegante e charmosa.
Do lado de fora chama atenção o seu tom ocre que contrasta com o céu de um azul suave e as verdes e delicadas colinas.
Essa Biblioteca é outra obra prima, de nível de arte e beleza ao da capela, inclusive com tons semelhantes. Nesse caso predominando o castor, o bege, o marrom. Belíssima, magnífica. Também ela elegantíssima e muito charmosa.
Que maravilha de viagem, de postagem, de região. Meu jovem amigo, preciso conhecer essas maravilhas. Desde já encantada. Uma joia da cultura, da Arte e da História.
Parabéns pela viagem e por nos trazer tamanhas belezas que engrandecem a arte , a cultura e enlevam a alma.
Congratulations.