Eu não sei o que os austríacos tinham na cabeça ao chamar estas cidades do que parece “leite” e “creme” ao Danúbio. Melk e Krems. Parece até piada pronta.
Já visitamos Melk, e agora — após um cruzeiro deslizando pelas águas do Danúbio num dia de sol — chegada era a hora de conhecer Krems an der Donau, a maior destas duas cidades históricas do Vale de Wachau.
Naturalmente, o Danúbio aqui nada tem a ver com laticínios. Os nomes são “mera coincidência”, como nas novelas. Os produtos típicos aqui são damascos (abricós) e vinho branco. Os damascos chegam ao ponto de proporcionar uma espécie de festival à época da colheita, com temas da fruta enfeitando a cidade. Acho boa valorização da agro-cultura local e do que é típico de vir à mesa aqui.
Mas é claro que nem só de abricós vive Krems, cidade mencionada nos documentos históricos desde o ano 995, quando estas eram terras muito mais selvagens no medievo, aqui a 70 Km de Viena.
Adentremos. É hora de desembarcar do cruzeiro feito (se você ainda não viu, confira) e ver o que Krems tem.


Krems an der Donau, quem és tu?
A maioria dos estrangeiros jamais ouviu falar de Krems an der Donau. É uma destas muitas cidades históricas da Áustria que nunca realmente caiu nas graças do turismo internacional. Os austríacos, é claro, a conhecem. Isso quer dizer que ela, em verdade, está bem mais conservada e tradicionalmente autêntica que lugares que caíram nas garras do turismo de massa, como Hallstatt.
Krems é uma daquelas cidades austríacas que sempre foi pequena. Não inchou nem cresceu. Tem hoje quase a mesma população de apenas algumas dezenas de milhares de habitantes que tinha séculos atrás.
Aqui à margem do Danúbio, ela era uma região de fronteira. Na era medieval, entre eslavos e germânicos, que combateram mortalmente por séculos — constantemente até o fim do primeiro milênio, e depois em guerras ocasionais. A eslava Tchéquia, afinal, está a meros 60 Km a norte daqui.
Você ainda encontra resquícios desse período medieval na cidade, como um dos portões que permaneceram mesmo após as muralhas terem sido removidas no século XIX (pois já eram algo obsoleto para as tecnologias da época).

A cidade vivia de devastações e reconstruções. Coitada de Krems, era sempre invadida. Foi invadida até pelos suecos, que chegaram até aqui na Guerra dos Trinta Anos entre católicos e protestantes — os suecos tendo abraçado o protestantismo basicamente como forma de tomar para si as terras da Igreja. Os austríacos, bastiões do catolicismo naquela Europa, depois libertariam Krems.
Eu não vou entrar aqui em todas as guerras nas quais Krems esteve envolvida, o que incluiria outra invasão, agora pelos franceses de Napoleão em 1805, etc. Basta observar que é uma cidade resiliente, que soube se refazer depois dos conflitos, e hoje vive muito do turismo.
Embora tudo esteja bastante “barroqueado”, transformado neste visual conhecido de tons pasteis e casario característicos dos séculos XVIII e XIX de poderio austríaco aqui na Europa Central, a cidade tem ainda as ruelas de outrora e preserva um charme.

Chegando e adentrando Krems an der Donau
Donau, a quem ainda não percebeu, é como os germânicos chamam o rio Danúbio, este amigo perigoso deles por aqui.
Perigoso porque o rio Danúbio costumava encher e inundar muito da área fora das muralhas da cidade. A ponto de construírem uma segunda igreja mais no alto que lhes permitisse continuar celebrando missa mesmo se a cidade baixa estivesse toda inundada.
Isso hoje é raro, ainda que as chuvas torrenciais acentuadas pela mudança climática global — como aquelas vistas na Alemanha e na Bélgica em 2021 — estejam aí para reavivar tais memórias.
Eu visitei logo ambas, já que o barco em vez de me deixar perto do centro, me deixou lá na p… que o pariu fora das muralhas, a quase meia hora de caminhada até o Steiner Tor, que vos mostrei. (A ter em conta caso você esteja fazendo este percurso no sentido contrário ao que eu fiz e precise tomar o barco daqui até Melk.)




Eu por aqui passei, por aqui caminhei, antes de finalmente rumar ao centro histórico da cidade. Uns moradores breves me olhavam, daqueles que ficam conversando ao lado do carro estacionado na frente de casa. Mas, embora eu fosse dos raros visitantes ali a caminhar, não pareceram estranhar muito a minha presença.
Desci, para poder caminhar até o portão medieval, e segui por um comprida rua deveras quieta nesta tarde de sábado. Os austríacos reservam muito o fim de semana, e exceto por certos espaços mais centrais, tudo fica quieto — para não dizer morto.



Se você estiver a se perguntar por que o portão se chama Steiner Tor, não tem a ver com o nome de ninguém. É que essa área externa que mostrei, que hoje faz parte da cidade de Krems, antigamente era um povoado distinto chamado Stein. Portanto, o portão voltado para ele era o Steiner Tor (Tor significando portão em alemão.)
Adentrando, lá começa a presença das lojas de produtos de abricó e de turistas — quase todos aparentemente austríacos, ou pelo menos vindos aqui do centro ou do norte da Europa, não de muito longe.




Vamos aos damascos
Chegamos na época adequada. Fim do verão (os idos de agosto) é quando os abricós abundam por aqui. A saber, abricós e damascos são a mesma coisa; é um fruto muito dado a ter múltiplos nomes. Também em alemão, os alemães da maior parte da Alemanha o chamam de aprikose, enquanto os austríacos o conhecem por marille. Se vir aqui marillen-isso ou marillen-aquilo, saiba do que estão falando.
Não vou presumir que todos sabem do que estou falando, já que é uma fruta deveras rara na maior parte do Brasil, então ei-la aos que ainda não conhecem.


Na postagem em Melk eu já mostrei um pouco dos licores dessa fruta que são hiper típicos aqui desta regiaõ do Vale de Wachau, a noroeste de Viena.
Como eu disse lá, nas lojas Wieser Wachau você acha vários licores de damasco de diversas potências e preparos. Não vá nos muito âmbar, translúcidos, pois são com pouca fruta e mais álcool com açúcar. Os mais opacos prometem mais polpa de fruta e, portanto, mais sabor.
Já aqui em Krems eu descobri o marillengespritz, uma espécie de refrigerante de abricó. Suco da fruta misturado a água com gás. Você os acha nos supermercados Spar aqui de Krems, se quiser uma opção barata para experimentar. Nos cafés da vida, você acha uma versão menos doce dele.
E eu me assentei, finalmente, para experimentar novamente — depois de muitos anos — os bolinhos de abricó que fazem tanto a cabeça dos austríacos (mais que a minha, mas eu não queria vir aqui à época e sair sem comer um).

Parece Fanta na minha taça, mas não é. É um refresco de abricós com gás, um marillengespritz no linguajar austríaco. Era, porém, bem menos doce que o industrial que provei do supermercado. Este tinha bem menos açúcar e um breve amargor que me lembrava fruta fermentada.
Já os marillenknödel que eles aqui às vezes servem como almoço caem excelentemente como merenda da tarde. (Não espere uma iguaria rica em sabor; o knödel é bastante simples e básico no gosto, mas por apreço cultural não saia sem experimentar.)
Comi um no Café Berger, um dos mais tradicionais da cidade. Sentei-me à mesa que estava vazia na calçada, e não demorou a aparecer a senhora garçonete. Com aquele característico jeito germânico de contar com os dedos — que inclui o polegar e sempre me assalta com uma certa estranheza breve — a veloz senhora loura tomou o meu pedido. Perguntava-me quantos bolinhos eu afinal queria.
“Eins, zwei, drie… ?“, perguntava-me ela simpática fazendo as quantidades com os dedos, daquelas garçonetes elétricas que repetem em voz alta o que você pediu.

“Um“, respondi eu à veloz senhora.
Bastava-me um desses bolinhos. Eu, afinal, os estava comendo mais por experiência cultural que por delírio gustativo. Os knödel são, basicamente, bolinhos de massa fervidos com uma fruta inteira dentro — em geral uma ameixa ou abricó, embora existam outras variedades. Por cima, daqueles quebradiços de forma de bolo e açúcar fino.
Eles são deveras oleosos, e o açúcar é você quem põe — não tem doce na massa, nem necessariamente na fruta, que na verdade oferece um azedo para quebrar a oleosidade açucarada que vira o seu envoltório.

Não fazem a minha cabeça, e eu tenho um certo trauma de quando fui servido deles como almoço na casa de uma avó de uma amiga minha aqui na Europa Central — com uma colherada de manteiga derretida que a senhora sua avó jogou por cima sem me esperar responder se eu queria ou não.
Dez anos depois, a minha relação com os knödel continua fria tal qual aqueles relacionamentos que você sabe que não dão certo, não importa o quanto tente.
Levantei-me do Café Berger, como quando você desliga o telefone se dizendo mentalmente “Eu não sei nem por que que eu tentei de novo“, e fui circular pelo que restava da alegria de Krems ainda naquela tarde. Como de hábito na Áustria, a fuzarca já sempre termina às 6 da tarde com o fechar de tudo, então é lugar pra passeio diurno. A soirée nas ruas é morta.


A Catedral de São Vito e o casario barroco de Krems
Voltas pela cidade eu dei, visitando sua catedral barroca do século XVIII e vendo a beleza de suas ruas.
Krems é maior que Melk e tem um quê mais residencial.



Depois de tantas guerras recorrentes contra húngaros, eslavos, suecos, turcos e outros, foi somente a partir do século XVIII que a Áustria se assentou mais. Tornou-se uma das principais potências europeias — ainda que uma potência continental, e que portanto não obteve colônias além-mar exceto pela sua diáspora de emigrantes aqui e ali.
Com o apogeu sob o reinado de Maria Theresa (r. 1740-1780), fizeram-se as reconstruções e embelezamento que você segue encontrando Áustria afora hoje, como também nos países vizinhos (Tchéquia, Hungria, Eslováquia, Eslovênia, e até mesmo partes da Polônia) que vieram a ser dominados por estes Habsburgo da Áustria.
Aqui, uma dessas principais obras foi a Catedral de São Vito, o mesmo santo homenageado na Catedral de Praga (Tchéquia). Tratou-se de um mártir do sul da Itália da época do imperador Diocleciano e sua perseguição aos cristãos. Enquanto a catedral tcheca é eminentemente gótica, esta daqui é barroca. Um esplendor de outra maneira.



Esta é a principal igreja aqui de todo o Vale de Wachau, ainda que haja muitas outras — e, claro, que a mais visitada seja, ao fim das contas, a capela da milenar Abadia de Melk que vos mostrei anteriormente.
Era hora de, gradualmente, eu começar a zarpar. Ainda vi uns cantos pitorescos no interior da cidade — que é pequeno e quieto — e, devagarinho, rumar ao trem de volta a Viena. Era o fim da minha estadia na Áustria.

Mesmo aqui no coração do continente europeu, navegar é preciso. Eu revejo vocês em outras paragens.
Maravilha, meu jovem amigo viajante.
Fechou com chave de ouro essa vossa estada na bela Áustria da famosa Maria Tereza que a deixou mais bela ainda.
Uma gracinha essa cidadezinha. Amei as construções e seus estilos. Os tons também muito me agradaram. Doces, delicados e elegantes, assim como os estilos.
Muito bonita essa igreja de San Vito. Famoso, ele. Esses interiores barrocos são magníficos. A decoração é esplendorosa . Belíssimo esse mármore vinho. Os toques e recortes dourados dão um ar de distinção , requinte e charme ao ambiente.
Curiosa essa história , cultivo e quase culto ao Damasco. Que bom que valorizam o que tem. Gosto muito do fruto. Muito graciosa a cidadezinha.
Continuo encantada pelo belíssimo Danúbio. Espetacular. Lindas suas verdes águas. Dá vontade de ficar ali contemplar a paisagem maravilhosa. Uma preciosidade.
Amei conhecer a Áustria através dessas gostosas e belas postagens.
Parabéns pela escolha das cidades, da região e do país. Em verdade é mesmo muito pouco conhecido do lado de cá da Latino=América.
Amei. Valeu. Ficou o gostinho de quero mais hahah