Kalmar, Suécia. A temporada do Natal já começou. Um tanto perturbada por ômicron e tantas outras letras gregas, mas ainda assim festiva.
Aqui na Suécia, como se sabe, é um tanto como em 2019: quase tudo está permitido. Não vou polemizar nem entrar nesses pormenores aqui e agora; o fato é que se deu partida às singelas feirinhas de Natal que tanto caracterizam a Europa nesta época do ano — e nenhuma delas aqui no país se compara à de Kalmar, uma cidade histórica no sul da Suécia.
Kalmar por si só já é um lugar histórico de grande nome entre os Países Nórdicos, e que há muito eu desejava visitar. Foi com a União de Kalmar, aqui sagrada em 1397, que todos os reinos escandinavos se uniram sob uma só coroa — e o mando da Dinamarca. O castelo que se vê aqui hoje remonta a essa época.
No Natal, então, tudo fica mais encantado. Eu não sei quem teve a ideia de fazer a feirinha de Natal dentro do castelo, mas foi uma decisão e tanto.

Kalmar, lugar histórico
Eis que estamos nos idos de 1180. Era ainda Idade Média, mas os Vikings já haviam se convertido ao cristianismo. Bandos menores haviam se convergido em reinos relativamente grandes: Noruega, Dinamarca, e Suécia, a base para os países escandinavos modernos.
Porém, o mapa àquela época não era do jeito que ele é hoje.
Primeiro, as áreas mais ao norte, habitadas pelos lapões (o chamado povo sámi) não eram realmente governadas. Segundo, a Suécia era menor do que é hoje. Mais importante, seu sul, a chamada região da Scania (de onde vem a marca de caminhão) era território dinamarquês.


A Dinamarca era o mais poderoso desses reinos. Não era à toa que, mais tarde na sua peça Hamlet (1603), William Shakespeare realiza muito da obra inspirado no reino medieval dinamarquês, e sagra aquela frase imortal do “há algo de podre no Reino da Dinamarca“. (Mais sobre isso aqui, nesta outra postagem.)
Só que a Dinamarca não estava contente com seu próprio território. (Qual imperialista jamais está?) Ela possuía colônias no que hoje são os Países Bálticos, como cheguei a comentar em visita a Tallinn (Estônia) e Riga (Letônia).
Diante da expansão da chamada Liga Hanseática das cidades do norte germânico a partir dos idos de 1200, elas que ameaçavam tomar conta do comércio naval naqueles mares do norte, a Dinamarca reagiu.
(Se você não sabia, o nome da cia aérea nacional alemã Lufthansa significa “Hansa do ar” [luft]. É como uma reedição aérea da sua rede naval mercante de outrora.)

A Rainha Margarete I (1353-1412) da Dinamarca, que você vê ali ao fundo na imagem acima, foi a grande pivô desta união. Eu não vou aqui dar um nó na cabeça de vocês com os parentescos entre fulano e beltrano, mas vocês todos sabem que a realeza europeia casava-se entre si (para manter a pureza do seu o sangue azul).
Ela foi casada pelo seu pai, rei da Dinamarca, ao rei da Noruega. Seu filho, portanto, reclamava direito às duas coroas. Esse era Olaf II. Sua mãe era a regente, como tantas vezes ocorreu.
A ventura de Margarete, contudo, não foi fácil. Olaf morreria antes dela, assim como seu marido. Resultado: ela estava viúva e regendo sem rei. Ela então adotou o sobrinho-neto Eric da Pomerânia para vir herdar as coroas em 1387.
Quando a aristocracia sueca se desentendeu com o próprio rei, pediu impeachment. Digo, pôs a sua cabeça à venda, e solicitou a Margarete e ao rei Eric que interviessem para resolver a coisa. Tolinho, o rei Albert da Suécia estava tentando reduzir as terras da aristocracia. Foi deposto. (Deixo as semelhanças com João Goulart por conta do leitor.)

Para concluir esta etapa, eis que aqui tivemos então esta União de Kalmar, que preservou legalmente os três distintos reinos como entidades separadas, mas na prática uniu-os sob um único monarca. (Um tanto como ocorreria mais tarde na Espanha, em 1492 sob os reis católicos, onde Castela e Aragão tinham leis diferentes, etc., ainda que politicamente unidos.)
A união não era exatamente uma seda. Tensões latentes entre os suecos e os dinamarqueses volta e meia vinham à superfície.
O estopim para o fim da união foi o chamado Banho de Sangue de Estocolmo (literalmente de Stockholms blodbad em sueco) em 1520, quando o novo rei da p**** toda Christian II foi coroado. Apesar do seu cristão nome, ele chamou para o banquete os aristocratas que haviam apoiado um regente sueco antes da sua coroação, e o nobre arcebispo indagou se aquilo não havia sido heresia.
Concluíram que sim, ora. Nos próximos dias, quase 100 pessoas seriam portanto executadas em Estocolmo, a capital sueca. Foi o gatilho para os suecos darem um basta no domínio dinamarquês por aqui, e portanto para o fim da União de Kalmar.

O fim da União de Kalmar
Em pleno inverno de 1520-1521, deu-se como resultado dessa pressão dinamarquesa uma das fugas mais épicas da História: dizem que o futuro rei sueco, o nobre Gustavo Vasa, escapou de esqui das tropas do rei Christian II, percorrendo uma distância de nada menos que 90 Km sobre a neve.
Essa rota (Vasaloppet) todo ano é refeita por esquiadores na Suécia como reedição daquele feito — um pouco como uma versão invernal da célebre corrida de Fidípides na Grécia Antiga, que correu para buscar a ajuda de Esparta antes da Batalha de Maratona, e cuja distância de 42 Km é reeditada desde então nas “maratonas”.
Em 1523, Gustavo Vasa retornaria na chamada Guerra de Libertação da Suécia, para então tornar-se rei e dar início à dinastia dos Vasa, a que governaria a Suécia pelos séculos seguintes e faria o país viver sua chamada Era de Ouro. (Eu mostrei anteriormente minha visita ao Museu do Navio Vasa, em Estocolmo, onde está o exemplar preservado do navio de um futuro rei Vasa que afundou em 1628. É de impressionar. O nome da dinastia também não deixa de ser curiosamente fatídico.)
Os Vasa transformariam o Castelo de Kalmar, de acordo com as tecnologias da época (pois nos idos de 1500 já existiam canhões, etc.), num castelo renascentista. Aliás, nós no Brasil temos a mania de imaginar que todos os castelos são medievais, mas grande parte deles é renascentista, desse início da Idade Moderna (1453-1789).

Um castelo renascentista é algo distinto de um castelo medieval.
Primeiro, as muralhas precisam ser mais fortes, para resistir a balas de canhão, e as torres são em geral redondas. Há ainda os parapeitos e brechas de onde ter defensores atirando (em geral, com mosquetes, já não de arco-e-flecha). Porém, há também espaço para os canhões defensivos.
Segundo, a estética interior muda. Há, em geral, capelas um tanto mais requintadas estão presentes, assim como decorações nas paredes e pinturas. Não chega, naturalmente, aos requintes gloriosos de Versailles e outros palácios de 1700-1800, mas já há um certo esmero na decoração. A vida da nobreza europeia havia, afinal, mudado, das batalhas constantes a um certo luxo com a riqueza advinda das Américas e do comércio de especiarias com a Ásia.
Crucialmente, estamos falando ainda de castelos, não de palácios. Palácios são da época dos estados e reinos consolidados, quando passou a ser impensável que tropas inimigas fossem atacar o lugar. As batalhas já se davam em campos, a caminho da fronteira do inimigo. Daí os palácios serem, em geral, desprovidos de muralhas ou aparato defensivo. Os castelos renascentistas de 1500-1600, como este aqui, precisavam se preocupar ainda com isso. E Kalmar, de fato, foi atacado várias vezes.



Visitando Kalmar hoje
Kalmar hoje é uma cidadezinha de seus 40 mil habitantes, na costa sudeste da Suécia. A cidade histórica é uma ilhota, dantes fortificada, a um passo do castelo. As construções de época da cidade já não são mais, destruídas pelas batalhas aqui travadas e substituídas ao longo do tempo, mas volta e meia se encontra algo daquele tempo.
Estamos a 3h30 de trem desde Copenhague ou 5h30 desde Estocolmo, curiosamente mais perto da capital dinamarquesa que da capital sueca. A Suécia, em tempo, tomaria todo este território que era dinamarquês, mas culturalmente (e no sotaque) estes suecos do sul ainda se sentem meio híbridos entre os dois países.
É tempo demais de viagem para vir a Kalmar como um bate e volta de qualquer uma das duas capitais, então eu vim de Estocolmo disposto a virar a noite aqui. (Claro que não na rua, já que é quase inverno.) Kalmar é um ótimo programa de fim de semana.
(Como outras pessoas pelo visto tiveram a mesma ideia, o trem de retorno a Estocolmo no domingo à tarde voltaria picado de gente. Mas eu chego lá.)

Vocês podem notar que eu estou respingado.
Depois de mentira dos amigos, da família ou da pessoa amada, a mentira que mais dói é a da previsão do tempo. É uma coisa indigna quando lhe prometem um fim de semana com neve e, ops!, a temperatura está um cadinho mais alta e ele vira fim de semana de chuva. Sacanagem.
Enfim, eu já estava aqui quando me dei conta, sob os 3-4ºC molhados de chuvisco, vento me lavando os óculos, e eu a trafegar por estas ruas quietas de fim de novembro.
A razão? É que todo ano aqui ocorre — durante apenas um único fim de semana — a feirinha de Natal mais especial de toda a Suécia, dentro do castelo. Se qualquer ano você cogitar vir, sugiro avistar primeiro qual será a data dessa feirinha no site oficial do castelo. Costuma ser várias semanas antes do Natal propriamente dito.


Meu hotel ficava bem na praça principal da cidade, à qual foi um alívio chegar para ter uma trégua do chuvisco frio.
Bem ali ficava a catedral da cidade, aonde eu fui dar uma espiadela.



Os tesouros do navio Kronan (1676)
Ainda antes de ir ao castelo ver ele próprio e a feirinha de Natal, dei uma passada no Museu Regional de Kalmar (Kalmar läns museum) para ver os achados de um outro navio da Renascença que não o Vasa.
Eram os idos de 1676 quando afundou a nau capitânia da marinha sueca. O Kronan ou Stora Kronan (“grande coroa”) era à época dos maiores navios do mundo.
Os escandinavos unidos em Kalmar haviam logrado, até certo ponto, contrabalançar o domínio comercial das cidades germânicas hanseáticas cá no norte da Europa. A partir de Gustavo Vasa, então, a Suécia se lançaria como um poder regional ainda maior que a Dinamarca — a conquistar territórios antes com os dinamarqueses ou noruegueses, e a fazer colônias ao redor de todo o Mar Báltico, como na atual Estônia e na Polônia (colônias estas que seriam, depois, perdidas.)
Claro, a expansão sueca gerou inimigos. Aqui, nestas águas ao redor de Kalmar, dinamarqueses e holandeses entrariam juntos numa batalha naval contra os suecos.
Na década de 1980, mergulhadores acharam enfim o tesouro do navio — e não era pouca coisa.



Este museu é a principal atração em Kalmar afora o castelo. Ele é relativamente simples, e tem outras coisas (pouco dignas de nota) afora as coisas deste navio, mas o principal da exibição são realmente os achados.
Kronan não era simplesmente um navio com tesouro, ele era a menina dos olhos da Coroa sueca — daí seu nome. Chamavam-no um palácio flutuante, com esculturas a bordo, arte, e muito armamento pesado. Havia mais de 110 canhões a bordo. Quase mil homens compunham a sua tripulação.




Os dinamarqueses e holandeses venceriam esta batalha e pilhariam toda esta costa da Suécia — razão também pela qual não há tanto um centro histórico pitoresco aqui, já que punham fogo em tudo.
Estima-se que nada menos que 3 mil árvores foram consumidas para construir o Kronan. Elas seguem sob o mar, e os tesouros seguem gradualmente sendo trazidos cá a este museu. Vale a visita. Você passa uma boa hora imaginando ele e sua sina.
Então é Natal. Enfim, o castelo.
A feirinha de Natal aqui em Kalmar entra pela noite (você pode verificar os horários no site oficial), então não me preocupei em chegar lá mais tarde. Ademais, aqui na Suécia nesta época do ano, anoitece deveras cedo (15-16h). A pessoa se acostuma a estar no escuro.
O chuvisco me aborrecia, e eu já antevia o meu vinho quente, ainda que estivesse a imaginar que visitar as barraquinhas debaixo d´água não seria exatamente ideal. Fui ainda assim, e o castelo noturno me surpreenderia.


As fotos de divulgação na internet não haviam me preparado para o que eu encontraria.
Eu achava que se tratava (apenas) de barracas no pátio do castelo, não que haveria coisas de Natal por todo o interior do castelo. Fiquei fascinado, confesso.
Os pátios, na verdade, eram o que havia de mais vazio. (As pessoas sabiam que estava chovendo.) Por dentro, porém, os porões e celas haviam se transformado em recintos de venda de comida; os salões diversos contavam com venda de artesanato local; e pelos corredores circulavam funcionários caracterizados como à época dos Vasa no século XVI.



O ar ali ainda era de noite de chuva — daquelas boas de você ficar em casa. Ainda não se via grande movimento. Mais gente saía que entrava a esta altura, e vendo o pátio meio vazio eu até senti um clima de fim de festa. Achei que tivesse chegado tarde, mas eu estava enganado.


De certa forma, era como se houvesse devolvido ao castelo a vida que ele deve ter tido um dia. Esta noite, ele não era mais mera atração turística, mas um lugar habitado e com vida.




Esta é uma forma sui generis de se visitar o castelo. Única. Você não apenas o vê no quieto da noite, como também com todo o espírito natalino à solta.
Arrastei o meu manto lá e cá, passando por pessoas caracterizadas, e até encontra um coral natalino de época.



Se você tiver a curiosidade de conhecer o cantar dessas mulheres, pode conferir abaixo um vídeo que fiz. Puseram-se bem nas escadas do castelo, e começaram a entoar.
Eu circulei por ali quase já com vontade de me instalar. Achar um quarto quieto no castelo, e quem sabe dormir por ali. Estava aconchegante toda aquela atmosfera.
Circulei, e achei cantos quietos, ainda que não exatamente aconchegantes para dormir.





Havia também pães e salsichão, mas isso eu não preciso mostrar.
O vinho quente sueco era vendido sobretudo às garrafas. Ele tem menos álcool (e ha versões sem álcool), e especiarias diferentes daquelas do glühwein alemão. O glögg sueco e dinamarquês é mais doce e mais puxado para o cravo, canela e cardamomo. Contém passas. (Eu cheguei a mostrá-lo e a falar mais sobre ele num Natal em Copenhague e num Natal em Gotemburgo.)
Provei, tomei (inclusive uma versão boa com açafrão), e comprei um pote de geleia caseira de amora-ártica para não dizer que não levei nada.

Acima de tudo, era período natalino apesar de todos os pesares.
Era preciso vivê-lo.

