Foi a primeira vez que eu ouvi falar de Basileia. Lembro-me de como a minha professora de filosofia na universidade se referia a ele como “o senhor Nietzsche” — o que eu achava engraçado, ainda que ela não o fizesse de forma irônica.
Basileia é a terceira maior cidade suíça, após Zurique e Genebra. Um lugar de certo porte; quase 200 mil hab. (o que é bastante para padrões europeus), e muita História pra mostrar.
Aqui as pessoas falam predominantemente alemão, mas dizem merci, como em francês, para agradecer. A Suíça tem destas misturas culturais curiosas. (Não é só queijo e chocolate.)
São 13 anos desde que eu vim pela primeira vez a Basileia, uma das primeiras cidades suíças que eu conheci, por razões de amizades por aqui. A ela eu retornaria muito anos depois, bem às vésperas do Natal.

Basileia, cidade histórica e humanista
Basileia possui a universidade mais antiga de toda a Suíça, fundada em 1460. Por aqui passaram Erasmus de Roterdã (1466-1536), Friedrich Nietzsche (1844-1900), e Herman Hesse (1877-1962), entre outros. Ela tem, portanto, uma forte tradição de pensamento nas humanidades.
A cidade é pelo menos tão antiga quanto a ocupação romana desta região que eles chamaram Germania Superior. “Superior” por estar no alto, em contraste com as terras baixas mais lá próximas do Mar do Norte, como a Holanda. Há quem indique, no entanto, que já havia povoados gauleses aqui. Estamos, afinal, no extremo norte da Suíça, onde este país já encontra a França e a Alemanha.

Basileia está literalmente à fronteira, onde andando menos de 1 Km você cruza para aqueles países.
Quem passa aqui é o rio Reno, nascido nas montanhas suíças e que desce para ser a divisa franco-germânica.
Sempre histórico, ele desde a Antiguidade já era a separação entre o mundo latino e o germânico. Como o rio faz uma curva aqui em Basileia, os romanos antigos acharam que este seria um bom lugar onde se instalar para defender o império dos “bárbaros” germânicos.
A cidade nunca mais deixaria de ter certos ares de entreposto cultural europeu.



Olhem que belo mancebo.
Ainda me recordo de passar a tarde dando umas voltas, vendo as belezas da cidade e comendo marroni — como eles aqui chamam as castanhas-portuguesas (chestnuts), daquelas que se encontram por toda a Europa Central nesta época do ano, que se vendem torradas pela rua. Eles aqui a chamam assim por influência italiana.
Lembro quando chegamos à mui rubra Prefeitura de Basileia e minha amiga quase me atira no rio por eu dizer que o prédio tinha um ar meio chinês. Talvez seja o vermelho. Repare.


Eu acabo associado esse vermelho cheio de detalhes coloridos mais à China (ou à Ásia continental em geral) que à Europa, mas é que esse prédio é renascentista, de 1514, antes de as cores passarem a ser vistas na Europa como sinal de atraso civilizacional.
Se hoje a moda (europeia) é sobretudo de tons neutros, e no inverno você vê praticamente todo mundo vestido de preto, marrom ou cinza, isso nem é acaso nem nenhuma novidade da indústria da moda. Começou no século XVIII, com parte do pensamento humanista europeu (sobretudo alemão, com Goethe e outros) argumentando que cor demais era atraso intelectual.
Eles viam as estátuas de mármore branco da Grécia Antiga — seu ídolo como apogeu do pensamento humano universal — e, sem se darem conta de que a maioria delas haviam sido originalmente pintadas e perderam as cores ao longo dos séculos, notaram como os tons neutros são indício de superioridade civilizacional. (Bah!)
Nietzsche, de quem vos falo, foi dos últimos grandes nomes de uma secular tradição de pensamento humanista alemão que emergiu dos idos de 1780 com Kant e Goethe até meados do século XX.

Essa catedral que vocês veem ali, aqui chamada de Basel Münster (ou Minster na grafia inglesa), é ainda mais antiga que a prefeitura renascentista da cidade. Como vocês hão de deduzir, ela é uma catedral medieval, que começou em 1019 pra ser em estilo romanesco, e ao longo do tempo adaptou-se ao estilo gótico, sendo completada em 1500.



Daqui, de quebra, você tem uma bela vista para o rio.

Há uma tranquilidade serena no ar em Basileia, ao menos nesta época do ano. Um silêncio, uma impressão de que as pessoas estão dentro das suas casas. Até o rio corre quieto. Você tem a impressão de que ele nem corre.

Buenos Aires, Montevidéu e demais metrópoles sul-americanas que sempre se sentiram meio europeias, vocês talvez saibam, “neutralizaram” as suas cores de propósito. O escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) comentava sobre como sua capital foi “acinzentada” por decretos governamentais no início do século XX que proibiram as pessoas de usar cores que não fossem neutras nas edificações. O resultado hoje está lá para ser visto.
Alegro-me que esse não seja o caso de Basileia, e que esta exerça a sua liberdade artística.
É sempre um pouco assim: quem anseia ser, por vezes o é com mais rigidez que aquele que dita as normas e, portanto, se sente livre para moldá-las a gosto.


Falando em arte, aqui em Basileia fica a mais antiga galeria pública de arte da Suíça — inaugurada e aberta à visitação ainda em 1661 (!). Ela hoje é o Kunstmuseum Basel, ou Museu de Arte de Basileia, cujo site oficial você pode visitar para saber sobre horários de abertura, etc.


Nietzsche passaria a maior parte da sua vida adulta ativa nessa universidade.
Aos 24 anos, foi-lhe oferecida uma cátedra para lecionar aqui. Numa das curiosidades da época, ele abandonou sua cidadania prussiana ao vir para cá, permanecendo apátrida o resto da vida.
Ele aqui viveria lecionando de 1869 a 1878, quando escreveu sobre a Grécia antiga e publicou o seu famoso livro Humano, demasiado humano (1878).
Os principais trabalhos que fizeram Nietzsche famoso, porém, viriam depois. Nos anos seguintes, desfiliado da universidade e vivendo como pensador independente, ele escreveria Assim falou Zaratustra (1883-1885), o Anticristo (1895), entre outros.
O que muitas vezes se confunde é que Nietzsche não tinha nada de essencialmente anti-cristão; ele pouco se ocupou com a figura de Jesus, e tampouco se identificava com a figura bíblica do “anticristo”. Sua crítica era contra o que fizeram do cristianismo, o tipo de sociedade e de indivíduo que a Europa produziu.
Nietzsche, que sofria tremendamente com uma série de problemas de saúde, ficou insano em 1889 e passaria sua última década de vida em cima de uma cama, até falecer em 1900.
Basileia, que não morre nem vira purpurina, segue aqui.


Basileia no Natal
Basileia abraça com muito gosto toda a tradição germânica e centro-europeia das feirinhas de Natal no período do Advento. Este, pra os nietzscheanos pouco familiarizados às tradições cristãs, é o período litúrgico das quatro semanas que antecedem o Natal — quando ocorre o advento da chegada do Cristo.
No Brasil, a minha impressão é que isso é algo só socializado entre os mais religiosos, mas não é esse o caso aqui na Europa Central. O período do Advento aqui é o que marca o período natalino (enquanto que, no Brasil, quem define são os shoppings e supermercados, quando decidem se enfeitar e começar a vender coisas de Natal.)
Há decorações do Advento que mesmo quem não é religioso põe em casa, e até chocolates contados para cada dia do Advento para as crianças e outros chocólatras.
Aqui, é claro, não faltam tampouco as Feirinhas de Natal (Christkindlmarkt) que se iniciam nesta época com muito vinho quente (glühwein) nas ruas e aquelas xícaras (bem coloridas) comemorativas e que você pode levar para casa como recordação. Em geral, cada cidade tem a sua, e a cada ano os modelos variam.






Se há um lugar, porém, que não fica tranquilo nem no Natal aqui, este é a estação ferroviária. Poucas vezes vi um frenesi tão grande na Europa, de gentes a disparar para lá e cá, quiçá a buscar suas casas na própria Suíça, na vizinha França, ou na vizinha Alemanha. (Não falta quem trabalhe na Suíça, para ganhar mais, e more num país vizinho onde aluguel é mais em conta.)
Eu próprio, que havia pousado aqui e dado um bordejo breve antes de tomar o trem, estava prestes a seguir viagem Suíça adentro. Rumávamos a Zurique, para de lá então irmos até Lucerna, uma das cidades mais elegantes da Suíça. Eu revejo vocês lá.



