Cracóvia, Polônia. O dia 25 de dezembro amanheceu com neve na minha janela. Diante de mim, no segundo andar, um prédio antigo daqueles de janelas retangulares, com paredes de um amarelo desbotado pelo tempo e descascado pela chuva, do jeito que há tantos pelo leste europeu.
Havia um certo romance naquilo. Não era o meu primeiro “Natal branco” de neve, mas já fazia um certo tempo. Eu, que cresci com os natais de verão do Brasil, com a televisão ligada, acostumei-me também à alternativa invernal — a que concebeu frutas secas e nozes calóricas para esta época, que ainda comemos como coisas típicas mesmo estando aí no verão.
Aqui na Europa Central originam-se muitas das lendas, contos e canções associadas hoje com o Natal. Toda essa coisa da árvore, do quebra-nozes, de muitos corais natalinos de igreja e de toda a mitologia deste Natal mais puxado para bosque que para a secura palestina de onde Jesus nasceu.

Hoje, há coisas em comum mas outras que variam na celebração de Natal aqui na Europa Central.
Eu cheguei a postar em detalhes a vez em que o celebrei com uma família de amigos na Alemanha. Como me diz uma outra amiga alemã meio jocosa, há lugares onde se come “um porco morto” em vez de “uma ave morta”. (O namorado dela é dinamarquês, e lá se come o porco; na Alemanha, é a ave.)
Na Polônia, Tchéquia e Eslováquia, é o peixe cristão. Come-se carpa à ceia de Natal, acompanhada de saladas frias e sopas quentes. Não é aquele pega pra capar do todos-os-tipos-possíveis-de-comida que é no Brasil. Aqui, os poloneses guardam inclusive o nome católico de wigilia para a noite natalina, nome que remonta à tradição religiosa de se fazer uma real vigília de orações em conjunto.
Não cheguei (ainda) a fazer parte de uma wigilia polonesa, mas vim sentir o que a Polônia tem nesta época, revendo talvez a sua cidade mais emblemática: Cracóvia. Ou, como a chamam os próprios poloneses, Kraków.

Retornando à histórica Cracóvia no Natal
Lá se iam 10 anos desde a minha vinda anterior aqui. Houve duas, uma durante o verão e outra em fins de outono. Lembro-me com bastante clareza do que fiz e relatei.
Ao desembarcar, agora através de que um imenso shopping center anexo à estação, tive quase um choque de realidade. A Polônia mudou bastante em alguns aspectos — para melhor. Vê-se o dinheiro europeu entrando. Também me contento de circular pelos hoteis e restaurantes hoje, e ver toda uma bilíngüe (e mais solta) geração dos anos 90, com seus 20 e poucos anos, que já cresceu num ambiente bem mais “europeu”, em lugar daquela geração sisuda criada criada nos tempos da Guerra Fria.
No trem de Breslávia (Wroclaw) até aqui, ao que o sol caía bonita sobre as planícies frias, uma senhora idosa de pé olhava para o lado de fora através do vidro da porta fechada. Eu fiquei a imaginar o que ela pensava, como se sentia diante das transformações que vivenciou no país.
Cheguei a olhá-la com afeição, mas a recíproca não foi verdadeira. Logo que viu a minha cara morena e barbada, a fotografar, lançou-me um olhar de suspeita xenófoba que caracteriza as pessoas mais velhas de tanto da Europa. Eles passarão, eu passarinho.



Segui, ainda à noite, os sinais de Stare Miasto (centro histórico) por toda parte até me dar novamente com as muralhas e bastiões do centro de Cracóvia. Ali, pouco mudou. A cidade pareceu-me um pouco mais turística (foi descoberta por mais gente), mas com as restrições de viagem em voga, estava relativamente tranquila.



Instalei-me num hotel ali do centro histórico atendido por uma simpática polonesa que acertou suficientemente no inglês e nos sorrisos. Daqui eu teria minha janela e meu reencontro com a nova velha Cracóvia.
O Castelo Wawel
Cracóvia tem um castelo dentro da cidade, datado do século XIV. O que você precisa compreender sobre Cracóvia é que ela foi por muito tempo a capital do reino medieval da Polônia, que começou com Poznan e depois consolidou-se cá mais ao sul. No século XIII, no entanto, os mongóis de Genghis Khan expandiram-se a ocidente e chegaram até a Europa. Atacaram e arrasaram as cidades polonesas, Cracóvia tombando em 1241. Este foi o limite até onde eles chegaram antes de retornar.
Tudo aqui foi, portanto, construído — ou reconstruído maior e melhor — após esse arraso, nos idos de 1300-1400.
Wawel já existia, uma colina que se impõe ao centro do povoamento. Fala-se em edificações aqui desde pelo menos 970. Aos poucos, foi ganhando contornos de castelo renascentista com amplo pátio, uma catedral, e aposentos vários no cerco das muralhas. Ele lembra um pouco o Castelo de Praga, na Tchéquia. Mais do que as imagens que temos de castelos estilo Camelot, da Alta Idade Média.




Eu lamento dizer que é um tanto confuso visitar o Castelo Wawel. Não há um ingresso all-inclusive, que inclua acesso a tudo. Pelo contrário, há mais de uma bilheteria vendendo “pedaços”, de acesso a isto e aquilo, depois outra vendendo a esta e aquela parte. Você pode visitar o site oficial se quiser detalhes dos horários, etc., mas em geral venha com tempo, e prepare-se para muito fechar às 16h no outono/inverno.
Em resumo, há um acesso à catedral e tumbas da antiga realeza polonesa, e outro à parte mais cívica dos salões de estado (state rooms), etc.. Eu, desta vez, acabei optando pela primeira, mais antiga, mas você pode visitar tudo se vier com tempo e tiver fôlego.



Há toda uma lenda sobre o nome da cidade (Krakow) ter se originado de Krakus, o príncipe polonês que teria matado o dragão que nesta colina morava. É uma lenda antiga, já registrada desde o século XII. Mas, na História, se crê que foi a partir do século XI que os poloneses se instalaram aqui — sem dragão.
De qualquer modo, há ainda hoje uma simbólica estátua de dragão à beira do rio, na parte de baixo da colina, que eu visitei na minha primeira vinda aqui.


O polonês Chopin em piano, e outras voltas no centro durante o Natal
Frédéric Chopin (1810-1849), também grafado Fryderyk Franciszek Chopin, um dos maiores compositores clássicos de todos os tempos, era polonês, ainda que tenha feito fama na França. Era um pisciano que compôs no romântico século XIX e que fez dos mais belos noturnos que há.

Nem todos sabem que ele era polonês — devido à francofonização do seu nome —, mas os poloneses todos sabem, e farão questão de dizê-lo. Eu cheguei a falar mais sobre Chopin neste post em Varsóvia, a capital polonesa.
Se você, como eu, tem uma certa tendência a imaginar os compositores clássicos como figurões da aristocracia, ledo engano. Chopin viveu pobre e relativamente desamparado em Paris, sentimentos que punha em sua música. Morreria antes mesmo de completar 40 anos.
As músicas de Chopin abundam pela internet (este vídeo do YouTube, por exemplo, tem várias das suas composições). Mas escutar ao vivo é outra coisa — ainda que não seja nenhuma sessão espírita com o próprio.
Aos fãs de música, eu recomendo ir assistir a um concerto de 1h na Chopin Gallery, reservando seu ingresso no site cracowconcerts.com. Eu não gravei, mas assisti a uma performance do Prof. Pawel Kubica, da Academia de Música de Cracóvia, que foi de tirar você desta dimensão. Descobri que ouvir estas músicas em gravação não tem nem de longe o mesmo efeito que ouvi-las tocadas no instrumento ali diante de você.
Ele nem usava partitura nem sequer tinha os olhos abertos. Pelo contrário, parecia entrar num transe ao tocar. Era fabuloso. Está recomendadíssimo, e eu torço para que você também assista a alguém desse nível. (As entradas custam 70 zlotys, o equivalente a cerca de 16 euros, compradas com cartão pelo site ou direto no lugar. Nestes tempos de pandemia, não encheu, mas em tempos normais pode ser bom garantir seu lugar com antecipação. Há todos os dias.)


Cracóvia, definitivamente, teve-me bastante a oferecer neste Natal.
Só de rever as suas paragens históricas já era algo mágico. As feirinhas de Natal, que sempre mostro, juntavam-se ao cenário pitoresco que a cidade já normalmente oferece.





Eu já mostrei essa Basílica de Santa Maria, de 1347, catedral de Cracóvia, algumas vezes aqui. Se por fora ela é impressionante, por dentro é mais ainda.
Entrei, e achei curioso que houvesse, tanto aqui quanto nas demais igrejas da cidade, filas de pessoas aguardando a vez no confessionário. Vários padres em atividade. Notei pelo menos uns quatro, e as pessoas — inclusos vários adolescentes e jovens — sentadas ou de pé aguardando a vez para se confessar.
Uma moça polonesa que conheci depois me disse que é hábito os poloneses se confessarem às vésperas do Natal, e perguntou se no Brasil não era assim também.
A Basílica de Santa Maria tinha essa entrada aos fiéis e, muita gente não se dá conta, possui uma entrada lateral paga (módicos 2 euros) que lhe permite acesso a outras partes e tirar as fotos que quiser. Veja o resultado abaixo.




É curioso que regularmente imaginemos a Polônia sem fazer ideia de todo este legado histórico e artístico do país.

A Noite de Natal, afinal
Chegou a noite de Natal, afinal. Uma coisa de que gosto aqui na Polônia é que, ao contrário do que ocorre, por exemplo, na Alemanha, as feirinhas de Natal nem fecham nem acabam antes do Natal. Pelo contrário, aqui como também em Praga — onde passei o último Natal antes da pandemia e registrei aqui —, as feirinhas abrem em plena véspera de Natal, e seguem janeiro adentro, por vezes até o Dia de Reis.
Eu aqui na véspera de Natal fui à cidadezinha montanhosa de Zakopane (visita que relatei no post anterior), mas retornei a Cracóvia à noite.
A feirinha, que eu já havia visitado nas noites anteriores, seguia aberta em parte, com alguns vendedores em atividade e outros desterrados como eu, em plena praça pública em vez de dentro de alguma casa naquela noite fria.




A saber, eu não estava aqui sozinho. É que a minha família imediata é pequena — o que faz com que seja móvel, e possamos passar o Natal em lugares diferentes às vezes.
Às vezes eu gosto de pompa. Outras vezes, não. Se for pretensioso demais, me perturba. Às vezes, chuto o pau da barraca. Minha mãe, quando eu era criança, tirava com a minha cara dizendo que numa outra vida eu devo ter sido favelado. (Eu até hoje rio com isso.)
Ao que chegamos de Zakopane de volta a Cracóvia, eu com pena do motorista que em plena noite de Natal ia dali ainda até Varsóvia, vi as outras pessoas sentadas à espera encurvadas sobre os seus celulares. Nada além de um Burger King servindo a estes filhos de Deus estava aberto na Galeria Krakowska, ao que a cruzei de volta à cidade.
Havia restaurantes abertos em Cracóvia, embora fosse noite de Natal. Nem o Google era confiável, mas os meus olhos viram muquifos vendendo kebabs (daquela carne que gira), sanduicherias abrigando alguns mais jovens, e um restaurante francês. Mais adiante, porém, algo me chamava na praça principal.

Várias barracas já estavam fechadas, mas algumas tantas seguiam abertas. O tempo era frio, de seus 2 ou 3 graus. Sem neve, mas consideravelmente gelado com o vento a soprar.
Era curioso, pois havia certa aura naquele ar úmido. Como se soubéssemos todos que estávamos ali em plena noite de Natal — uma consciência coletiva.
Viam-se pequenas famílias com crianças e pequenos grupos de amigos. Um músico pôs-se certa hora a tocar algo na rua. Um chapa brasileiro, tomando sopa numa mesa da praça, se sentava sozinho numa chamada de vídeo falando do corre-corre do dia-dia com outro rapaz. Depois, seguiria caminhando pela praça diante do celular.
Um trio de portuguesas riu quando, tendo-me ouvido falar português, comentaram algo e lhes dei “boa noite”. Outros circulavam, ao que tomei o meu quentão de vinho e fui procurar algo para comer.

Ali, naquela simplicidade, eu me achei. Um aconchego do lar pode ser fabuloso, mas há também certo gosto na comunhão com os desconhecidos. Somos todos, afinal, irmãos.