Era uma tarde gélida e quieta de inverno quando descemos do trem em Resóvia (Rzeszów), cidade polonesa de que você muito provavelmente nunca ouviu falar. Eu tive até trabalho para desvendar o nome latino daqui.
É que o sudeste da Polônia segue sendo, indevidamente, quase que sumariamente ignorado pela maior parte dos turistas estrangeiros ou mesmo mochileiros intrépidos, geralmente focados em Cracóvia, Varsóvia e Gdansk. Eu próprio — admito — nada sabia desta região até vir conhecê-la.
Rzeszów, que os poloneses pronunciam algo semelhante a “Jé-Shuv”, é uma pequena fofura. Ela é uma cidade de origem medieval em 1354, e que se desenvolveu na Renascença como rota entre o então próspero Reino da Polônia e o Império Turco Otomano mais ao sul.
A cidade esteve por muito tempo sob o controle de uma nobre família polonesa, os Lubomirski, antes de passar às mãos do Império Austríaco dos Habsburgo controlado desde Viena. Você nota o estilo da Europa Central por toda parte, assim como algumas adições mais recentes nesta pequena e singela visita.

Resóvia encruzilhada de impérios
Entendamos primeiro onde estamos. Se você precisar se localizar, os mapas abaixo podem ajudar.
Nos idos de 1400-1700, a Polônia era dos reinos mais ricos da Europa, e operava uma próspera rota comercial entre as terras do Mar Báltico no norte e as do Mar Negro no sul.
Ainda que estejamos, hoje, muito habituados a imaginar a Europa em termos de oeste e leste, ou a conceber ainda o chamado “Leste Europeu” nos termos da finada Guerra Fria, esta aqui já foi uma terra muito próspera. Mais que outros como Alemanha e França.
Nos idos de 1400-1700, a Polônia era dos reinos mais ricos da Europa, e operava uma próspera rota comercial entre as terras do Mar Báltico no norte e as do Mar Negro no sul. O comércio à época era intenso, e desde a Idade Média ele passava por Resóvia.


Hoje, o que você imagina sobre este lugar?



Resóvia cresceu no século XIV e atraiu o “olho grande” de vários, desde os húngaros a oeste quanto os suecos vindos do norte quanto os tártaros (ou tatars, descendentes do império mongol) vindos do leste.
A cidade foi múltiplas vezes destruída e refeita. Os golpes mais duros vieram no chamado “dilúvio”, uma série de guerras contra os russos e os suecos na metade do século XVII — já não mais os Vikings, mas os suecos cristãos do rei Gustavo Vasa e outros que lograram expandir o país escandinavo moderno até terras que hoje são Finlândia, Polônia, e os Países Bálticos.
Por duas vezes os suecos conquistaram Resóvia e foram expulsos pelos poloneses. Com os Lubomirski a partir de 1638, a cidade seguiria crescendo, atraindo grande comunidade judaica, que chegou a representar metade da população à altura de 1750.
Hitler viria a encontrar muitos judeus na Polônia porque a Polônia havia sido próspera, lugar de economia pujante e cosmopolitismo nos séculos até o XVIII.

Em suma, a Polônia era um lugar bastante próspero durante o medievo e Idade Moderna. A partir dos idos de 1750 é que começa a fraquejar após todas aquelas guerras, e seus vizinhos russos e germânicos em ascensão — e farejando sangue — se aproveitam para retalhá-la em pedaços. Dividem-na entre eles em 1772, e assim deixou de existir “Polônia” até o século XX, quando ela finalmente volta a constar outra vez no mapa.
Esta região de Resóvia ficaria com os austríacos, dos Habsburgo, que a governariam por quase 150 anos até perderem as guerras mundiais do século XX.



Arte, arquitetura e religião em Resóvia
Como Resóvia veio a ser destruída e reconstruída seguidas vezes, tudo o que você encontra de herança artística hoje na cidade data dos séculos XVIII ou XIX, o que a torna algo semelhante às suas irmãs Europa Central afora.
Os tons pasteis e a arquitetura neo-renascentista não me deixa mentir.
O maior exemplo é a própria prefeitura de Resóvia, de uma singeleza só.


Como os poloneses já eram mui católicos, diferenciando-se pois da população judaica, ao menos essa estranheza eles não tiveram sob o domínio dos também católicos austríacos.
As muitas igrejas aqui são originalmente mais antigas, porém quase sempre beneficiaram-se de alguma reelaboração artística nos séculos recentes.
Aliás, se alguém se indagar o porquê de os poloneses serem em geral tão católicos, não é simplesmente porque tiveram um dos seus como papa (João Paulo II) recentemente. É, em grande medida, por uma quase-fusão entre filiação religiosa e identidade nacional, avizinhados pelos russos ortodoxos e pelos alemães luteranos sob quem foram dominados.
Nesse contexto, manter-se católico era, juntamente com a língua, uma forma de não deixar a identidade polonesa morrer.



Há também outras.





Visitando Resóvia
Eu comecei este post falando do frio e da quietude de quando cheguei. Em verdade, a cidade estava um ermo. Era 25 de dezembro, o dia de Natal, e que acontecia de ser também um dia nublado com cerca de -10 graus de temperatura.
Proveniente de Cracóvia, onde passei a noite de Natal, sentia-me agora desembarcando numa não-cidade, um cenário cinzento e vazio, de prédios retilíneos do tempo comunista nas vizinhanças da estação ferroviária — fora do centro histórico — e onde nem muitas janelas acesas havia. Não sei onde estavam as pessoas.
Por sorte, o meu hotel era um refúgio magnífico, onde tocavam músicas de Natal num ambiente para lá de charmoso e aquecido em todos os sentidos.



Se a vinda desde a estação ferroviária Rzeszów Glowny ao hotel naquela tarde foi por sobre a neve e sob um céu escuro, ao menos no dia seguinte o sol abriria.

Fora do centro histórico, Resóvia se revelaria uma cidade de contornos modernistas-comunistas daquele tempo da Guerra Fria, com suas edificações de concreto, prédios residenciais retilíneos cinzentos, e monumentos grandiosos de pedra ou bronze ao movimento revolucionário de outrora.
Bem diante de mim havia um deles, num cruzamento de largas avenidas — características do urbanismo modernista que inspirava os comunistas, além de outros também no Ocidente.


Já quando você adentra o centro histórico de Resóvia, logo ali, ela ganha uma beleza outra.
A cidade, aos poucos, ia também ganhando maior presença humana, ainda que fizesse um frio de -11ºC e vento de gelar aos mãos inocentes que iam tirar fotos.
Lembrei-me de que era domingo ao ver, perto do meio-dia, as pessoas feito formiguinhas encherem gradualmente as igrejas. Entrar podia ser uma decisão religiosa, artística, ou térmica. Em muitos casos, uma combinação das três. O cheiro de incenso nos interiores era também uma arte.
Fui desde o teatro, passando pelas geladas e nevadas ruas ensolaradas, até o Castelo Lubomirski que já vos mostrei e, em seguida, até a praça principal da cidade, onde ainda pude tomar um vinho quente. Resóvia estava, de repente, encantadora.




No centro, onde ainda remanescia algo da feirinha de Natal (ainda que este já tivesse passado), as pessoas logo começariam a se juntar. Havia barraquinhas ainda funcionando, e brinquedinhos de parque de diversão (carrossel etc.) aonde as pessoas vinham trazer as crianças e ficar por ali. Era um cenário alegre, apesar do frio crasso.



Tive a fortuna de encontrar ali perto um restaurante indiano onde almoçar. #FicaADica caso queira algo mais temperado. No meu caso, era dos poucos que estavam abertos. Se vierem, mandem um abraço meu a Ana, a simpática polonesa trabalhando lá. (Eis o site e o Instagram do restaurante. A comida é boa.)
Desloquei-me ainda para ver de perto um Monumento de Gratidão ao Exército Vermelho, erigido durante a Guerra Fria para honrar as forças soviéticas que expulsaram a Alemanha nazista da Polônia. Fui pela simbologia, mas o monumento em si é extremamente simples.
Ele faz parte de uma série de monumentos hiper-controversos ainda presentes desde os anos 1950 na Polônia. Certas partes do governo e da população preferem conservar, em respeito à História; já outros ordenam derrubar, ressentidos pela dominação russa durante o século XX. Seja como for, muitos deles seguem aí.
A Polônia ali se enxerga como tendo saído um pouco do fogo para cair na frigideira. A ditadura comunista foi um mal menor aos campos de extermínio dos nazistas, muitos concordarão. De qualquer modo, no frigir dos ovos, o que a maioria dos poloneses prefere é estar na União Europeia — apesar de todos os arranca-rabos do atual governo com Bruxelas.

Caindo a noite — ou, melhor dizendo, chegando o anoitecer vespertino às 15:30 — a cidade se iluminou. A praça central se tornava encantada, ainda que gélida. Uma certa Nárnia antes da quebra do feitiço. Aqui, o frio de fato era parte do encantamento.



A Polônia segue ressurgindo. Com uma geração cada vez mais europeia, vai encontrando o seu lugar. Ou melhor, reencontrando.