Lublin, no leste da Polônia, é uma cidade histórica de 1317, e dessas que a maioria dos turistas estrangeiros ainda desconhece. Eu próprio nem sabia que ela existia, até recentemente.
Num post recente em Resóvia, eu lhes falei sobre a prosperidade da Polônia nos fins da Idade Média e início da Idade Moderna — entre os idos 1300 e 1700, para ser mais preciso. Aqui passavam das principais rotas comerciais da época. Lublin também aconteceu de ser o sítio da união entre Polônia e Lituânia, a chamada República das Duas Nações (1569-1795), que possivelmente não apareceu nas suas aulas de História, mas era das maiores potências europeias nesse período.
Lublin é fruto desse tempo. Um charme de cidadezinha histórica que passaria à batuta dos austríacos, depois dos russos, e desde 1945 está de volta com os poloneses.
Pude ver algo de suas artes, legado e belezas — ainda com um restinho de decoração natalina — no que foi uma nevada semana de inverno polonês.


Localizando Lublin, cidade dos séculos XV e XVI
Lublin se encontra no leste polonês, próximo de regiões do oeste ucraniano que, à época, eram também parte da Polônia. (Seguem sendo áreas com uma importante presença polonesa, ainda que na Ucrânia.) A cidade é pitoresca assim porque conheceu prosperidade em outras eras, já que era um dos principais centros políticos e econômicos da Polônia de outrora.

Duas coisas precisam ser compreendidas desde já. A primeira é que os mongóis e seus descendentes chegaram até aqui nas suas campanhas militares a Ocidente, e arrasaram muito do que havia no século XIII. Assim sendo, quase tudo que se vê aqui — mesmo o que é medieval — data de a partir do século XIV, quando a Polônia se reconstruiu.
A segunda é que a Lituânia, aqui vizinha, em si era também um reino poderoso na Idade Média, e foi o último país europeu a adotar o cristianismo — somente em 1387, e por ação política polonesa. Ela o adotou pelo casamento do Grão-Duque lituano com a rainha polonesa Jadwiga (ou Edwiges).
Ao contrário do que o patriarcado nos faria supor, não foi a Lituânia quem passou a dar as ordens, mas o oposto. A Polônia é que praticamente exerceria domínio sobre a Lituânia nos séculos seguintes, sobretudo após a oficialização política dessa união com a criação da República das Duas Nações (1569-1795).
É nesse bojo que Lublin desponta por ficar entre as terras polonesas e Vilnius, a capital lituana. Era tanto um entreposto comercial quanto foi a cidade escolhida para consagrar essa república, no que ficou conhecendo como a União de Lublin (1569).

A quem ficou curioso sobre como essa (imensa) república funcionava em pleno século XVI, ainda dois séculos antes da Revolução Francesa, era com base na chamada “liberdade dourada” ou “democracia dos nobres”.
Ainda havia estamentos sociais, como em outras partes da Europa, porém aqui os nobres compunham um parlamento que elegia os reis. Aqui, os monarcas estavam longe de exercer um poderio absoluto como seus contemporâneos em muito da Europa ocidental (donde o conceito de “absolutismo”).
Se lá nos outros países europeus os reis podiam ditar o que bem quisessem, aqui havia a tal liberdade com direitos e deveres assegurados, ainda que exclusivamente para a classe nobre. Funcionou bem por mais de um século, até a república ser desestabilizada, sofrer por divisões internas, e ser acossada — e depois abocanhada — pelas potências vizinhas em ascensão (Rússia, Prússia, e Áustria).

O Castelo de Lublin
O Castelo de Lublin é a mais antiga residência real polonesa ainda de pé, estabelecida pelo grão-duque Casimir II, o Justo, ainda no século XII. Naquela época, era habitual que o rei vagasse de morada em morada, de cidade em cidade, para ir verificando seus domínios — e efetivamente garantindo a lealdade dos súditos. Somente séculos depois é que surge a moda de se ter uma capital fixa.
No século XIV, sob a batuta de Casimir III, o Grande, se aumentaria o castelo e edificaria a Capela da Santíssima Trindade, uma maravilha de arte sacra comparável às feitas na Itália.
Os afrescos ali pintados em 1418 estão ainda hoje presentes na capela que é aberta à visitação. São obra de Mestre Andrej, um pintor eslavo sobre o qual pouco se sabe. Seu trabalho é uma eclética mistura de influências bizantinas e ocidentais de seu tempo, que me lembraram um pouco a Cappella degli Scrovegni de Giotto, que lhes mostrei antes em Pádua.



O restante do castelo mudou bastante, e hoje é um museu que você pode visitar. Fecha às segundas e terças, mas a parte da capela está aberta todos os dias.
Como ele foi modernizado em estilo neogótico inglês no século XIX, hoje o museu é mais uma exibição de arte que uma visita por corredores ou calabouços medievais. O que há ainda de antigo é a torre da fortaleza, que segue sendo símbolo de outros tempos.


Lublin seria polonesa até 1795, quando caiu sob domínio austríaco. Em 1815, após o fim das Guerras Napoleônicas, passaria à batuta dos russos — os grandes vitoriosos dessa guerra, após terem derrotado Napoleão na neve.
O domínio russo destas terras duraria 100 anos, até 1915, e foi nesse período que o exterior do Castelo de Lublin foi remodelado no estilo neogótico inglês que se vê hoje.




Voltas por Lublin hoje
Sabe aquela ponte do mural que mostra a Lublin de outrora, na foto mais acima? Aquela ponte ainda existe, e eu passaria por ela, mas hoje ela está bastante diferente. Meu hotel ficava bem ali.
A estação ferroviária de Lublin é um tanto afastada do centro histórico (conte aí uns 25 min de caminhada), o que significa que você precisará passar pela “maravilhosa” parte mais recente da cidade, com edificações mal-acabadas do século XX. É um contraste bastante grande.
Eu chegava vindo de Resóvia a esta cidade agora ligeiramente maior. Seguia o frio intenso de seus -10ºC, e ruas escorregadias feito quiabo com o gelo cobrindo a calçada.
Carros algo velhos estacionados circulavam pelas largas avenidas com a cara do urbanismo modernista de meados do século XX, que o pedestre tem que esperar uns três semáforos diferentes para terminar de atravessar. Acima das calçadas, lojas simples, bodegas, cabeleireiros populares num casario pouco pintado e, às vezes, cinzento.


Quando você chega ao centro histórico, parece que é outra cidade. De fato, é. São como duas Lublin separadas no tempo e no espaço — e na arte.
Aquela ponte de outrora, hoje, é uma mera rua por debaixo da qual se ainda via um córrego semi-congelado passar. Nada muito pomposo.
Mais adiante, sim, se você perseverar, começa a avistar a magnífica catedral da cidade (completada em 1617) prenunciando algo diferente aos seus olhos muito em breve.





É ali que a magia de Lublin começa. Eu logo entraria no centro histórico, não pelo Portão Judaico mostrado antes, mas pelo Portão de Cracóvia (Brama Krakowska) do século XVI na outra extremidade.
Ele é o principal da cidade, e leva esse nome porque daqui se rumava em direção a Cracóvia, mais a oeste.


Ali, aguardam-lhe as estreitas vias do centro histórico de Lublin. Ele guarda o tamanho modesto próprio das cidades fruto daquela época de 500 anos atrás.
A Via dos Portões (Bramowa), a sua artéria aorta, se estende por 300m desde o Portão de Cracóvia até o Portão Judaico, que leva ao castelo.
Entre um e outro, transitei por um espaço tranquilo — ainda que gélido — nesta época do ano. Um flautista de rua fantasiado tocava, o único som que competia com o vento, as aves (há corvos grasnando no inverno), e as ocasionais pessoas conversando.
Ao redor do músico de manto, ratos de mentira no chão. Ele se passava pelo lendário flautista de Hamelin, um conto folclórico medieval aqui da Europa Central, mais especificamente germânico, sobre um flautista que livra a cidade desses animais hipnotizando-os com a sua música.




Se pelo Portão Judaico você chega ao castelo, saindo pelo Portão de Cracóvia você adentra um simpático calçadão, com lojas, igreja, ainda decoração de Natal, e uma praça mais adiante.
Antes de sair do interior das muralhas, detive-se para tomar um quentão (vinho quente) num restaurante aconchegante. Não falavam inglês as simpáticas moças daqui — certamente pouco habituadas a estrangeiros chegando até estas bandas —, mas a esta altura do campeonato eu já havia aprendido a dizer grzane wino.


Numa outra tônica, se você sair mais da cidade (e tiver nervos), pode ir conhecer o ocorrido no passado mais recente de Lublin visitando o campo de concentração nazista de Majdanek.
Embora menor que Auschwitz-Birkenau (cuja minha visita eu relatei aqui), este é dos campos de concentração melhor preservados na Europa, pois foi rapidamente tomado pelo Exército Vermelho soviético e interditado antes que os nazistas destruíssem suas obras.
Inicialmente usado como campo de concentração para trabalhos forçados, logo tornou-se campo de extermínio da população judaica de Lublin e da Polônia afora.
Deflagrada a Operação Reinhardt em 1942, a Alemanha nazista previu eliminar completamente os judeus da Polônia. Um milhão e setecentas mil pessoas assim pereceram, grande parte nas câmaras de gás.

Majdanek estava fechado quando visitei Lublin, então ficou para uma outra vez aqui — quem sabe quando eu vier durante o verão.
No inverno, eu optei pelo aconchego da Lublin do século XXI que aquela do século XX.
A União de Lublin que somou a Lituânia à Polônia teve seu tempo. Acabou, passaram-se os impérios, e a cidade retornou polonesa. Passaram-se também agruras de décadas atrás, e hoje o que temos é este lugar simpático — mágico no natalino inverno.

As ruas ainda exalavam quietude, exalavam História neste lugar ainda pouco visitado por estrangeiros, mas que agora você também conhece.
