Zamość, Polônia. Não foi somente na Itália que o Renascimento se deu. Berço, sim, mas a renascença das artes e estilos clássicos espalharia-se pela Europa e viria ganhar corpo com os pintores flamengos da atual Bélgica assim como aqui na Polônia, no centro-leste da Europa.
Houve obras em telas de pintura, obras esculpidas, e obras de cidade inteira, como esta aqui. Sim, uma cidade renascentista, representando os conceitos urbanísticos do que se concebia como sendo uma “cidade ideal” na época.
Zamość (za-móshtch, como leem os poloneses com os seus peculiares acentos) fica no extremo leste da Polônia, e é um Patrimônio Mundial da Humanidade tombado pela UNESCO por ser uma preservada cidade renascentista do século XVI, tempos áureos da Polônia.
Parece que você está visitando uma cidade da fantasia — uma cidade das artes, não da espontaneidade ou da natureza. Pequena, ela faz um bate-e-volta perfeito desde Lublin (cidade que lhes mostrei no post anterior).

O conceito de Cidade Ideal renascentista
Brasília está longe de ter sido a primeira cidade planejada. Muito antes, desde a Antiguidade, pensadores no oriente e ocidente concebem teorias sobre a melhor forma de se organizar uma cidade. Por vezes, a preocupação é com a praticidade e a governança; já noutras, o critério é a beleza.
Na Renascença, já no século XV, o polímata italiano Leon Battista Alberti (1404-1472) resgatou obras gregas e de romanos como Vitrúvio (séc I d.C.) para definir como a simetria, os arcos circulares romanos e outras características poderiam formar uma cidade ideal. Ao contrário de predecessores medievais construindo catedral X ou Y, Alberti se preocupava com a harmonia da cidade inteira.
Ele pensava a perfeição das obras, e dizia que “uma obra está completa quando nada pode ser acrescentado, retirado ou alterado, a não ser para pior“.
De acordo com os preceitos de uma cidade ideal renascentista, era preciso haver uma praça central. As ruas precisavam ter largura mínima e regular, garantindo acesso e segurança aos cidadãos. Acima de tudo, era preciso simetria e harmonia. Se na cidade medieval a torre era o maior símbolo de poder (como visto em Pisa e em tantas cidades medievais italianas), na cidade renascentista o tamanho das edificações era pré-definido e harmonioso. O principal, claro, estaria para o governante.

Surge Zamosc na Polônia
Foi ao mando de um polonês, Jan Zamoyski, e por obra de um italiano, Bernardo Morando, nativo de Pádua, que esta cidade de Zamość — ou Zamoscia, como a chamavam em latim — se fez.
Jan Zamoyski (1542-1605) era um nobre polonês nos tempos em que a Polônia era o reino mais poderoso da Europa Central e do Leste. Dizem que ele não tinha o que fazer com tanto dinheiro, lucrando no comércio oeste-leste assim como entre o Mar Báltico e o Mar Negro. A Polônia era bastante rica, como comentei em posts anteriores nas cidades de Resóvia e Lublin, e seus aristocratas se tornariam mecenas das artes, trazendo à Europa Central e do Leste as tendências italianas.
O paduano Bernardo Morando (1540-1600) foi o escolhido para, em 1580, desenhar esta artística cidade. A praça central viria a ter exatos 100x100m de dimensão. Passeios cobertos com arcadas circulares a margeiam, coroada pela prefeitura que vos mostrei acima.


Enquanto a prefeitura funciona como âncora do conjunto arquitetônico, a praça é cercada de casas de mercadores, todas de mesmo estilo e variadas cores. As que mais chamam a atenção são as chamadas casas armênias, de mercadores com origem na Armênia.

As ruas do centro histórico são todas retilíneas, formando quarteirões de tamanho idêntico. Ao redor de tudo, uma muralha octogonal com fosso e bastiões de defesa em cada ponta do polígono.
Não tudo, mas parte disso segue visível ainda hoje.
Porém, a cidade renascentista não se reduzia à forma. Era preciso também o espírito, e assim foi Zamosc. Tão logo foi feita com o dinheiro polonês e a arte italiana, fundou-se aqui uma universidade (a Academia de Zamosc). Acolheram-se diversas etnias e religiões, no que era então uma cidade cosmopolita.
Intempéries históricas a afetariam ao longo dos séculos seguintes. A Polônia perderia a sua glória de outrora, esta cidade ficaria em mãos austríacas e depois russas, mas foi preservada. Segue hoje acolhendo a visitação, ainda que pouco visitada (ou mesmo conhecida) por estrangeiros. Foi aonde eu acabei vindo.

Vindo a Zamosc no inverno
Fazia um frio de doer as bochechas e arder as mãos neste leste polonês que nos parecia meio desolado em pleno inverno. Ao menos do lado de fora, nas ruas.
Zamosc é uma cidade pequena (63 mil hab.), mal-conectada às cidades maiores da Polônia apenas um por trens regionais pinga-pinga. (Parece até que fazem o difícil acesso a propósito, como desafio.) De Lublin até cá, são quatro saídas diárias em trens que levam pouco mais de 2h de viagem para chegar. Para visitar o centro histórico, sua melhor estação ferroviária de destino não é Zamosc, mas Zamosc Starówka, a penúltima estação da linha. (Neste post anterior eu expliquei tudo que sei sobre reservas e compras de passagens de trem na Polônia.)
Tanto numa quanto noutra não há propriamente abrigo do frio à estação — você fica ao léu e ao vento frio na plataforma, de onde percorre alguns lados-de-pista ou calçadas compridas até chegar às muralhas. Tudo era deveras deserto neste inverno, um tanto como em contos da Branca de Neve perdida na floresta obscura.



Percorri esse caminho que vocês veem, tomando o cuidado para não escorregar no gelo formado no chão. É preciso andar a passos cuidadosos, pois muita ambição pode derrubá-lo antes mesmo que você entenda que escorregou.
Uma vez passado por debaixo daquele portão de pedra cinzenta, você está dentro da área histórica. Lá, as ruas retilíneas e de casario renascentista me aguardavam, contrastando-se com o exterior (das muralhas) onde a cidade cresceu desgovernadamente — sem ideia qualquer por detrás.




Se as ruas de Zamosc são afáveis mas nada de tão excepcionalmente diferente do que se vê noutras cidades desta Europa Central, esta praça principal se encarrega de impressionar.
Já mostrei o casario colorido, e por debaixo das arcadas, cada porta parece decorada de maneira própria como se fosse um portal mágico, com cada porta de madeira emoldurada pela decoração em pedra.
Tem-se a impressão de que, detrás de cada porta, há um segredo. E há, mesmo, segredos em Zamosc.


Segredos em Zamosc
Não me demorei a entrar n’algum lugar para tomar um café em Zamosc, movido tanto pelo chamariz da cafeína quanto pelo drama térmico destas ruas onde o vento não precisava fazer curva.
Revelo o segredo que, por detrás de uma daquelas portas (o Google Mapas pode lhe dizer qual) fica o Kawa na Lawe, um misto de cafeteria, doceria, salão de jogos e casa de chás. Na prática, era um refúgio secreto onde adolescentes e jovens se reuniam como se fossem algum salão comunal saído de Harry Potter.
Nenhuma referência ao bruxo inglês, mas é que havia ao de curiosamente mágico ali na atmosfera daquele lugar — e tanto os bolos quanto o café são ótimos.



A outra recomendação é o Figa z Makiem bistrô, este para almoço, e aonde eu viria mais tarde. Por detrás de outra das portas na praça principal, ele tem uma pegada meio italiana, com menu só em polonês, mas pessoal simpático e comida deliciosa. Venha experimentar.
Saindo de lá, ao que eu me escondia do frio e da quietude invernal das ruas, o céu já estava quase escuro — destes entardeceres prematuros nesta época do ano. Um restinho de decoração natalina ainda se fazia presente junto com a pista de patinação que mostrei antes. Se o idealizador Bernardo Morando e os demais renascentistas combinariam com isso na harmonia da cidade, eu não sei.

Até, Jan Zamoyski
Como lhes disse, esta é uma visita rápida. Um meado de dia — do meio da manhã ao entardecer precoce no meio da tarde — é suficiente para sentir Zamosc. Casava bem com a duração da luminosidade neste período de inverno.
A bela prefeitura que vocês viram segue servindo como prédio público. Você pode subir as escadarias e vê-lo bem de perto se desejar. Já no interior das Casas Armênias, um museu (o Museu de Zamosc) pode mostrar-lhe como eram aqueles lugares por dentro.
Eu dali seguiria ao oeste da cidade, a ver onde está enterrado o idealizador desta cidade, Jan Zamoyski.



Os restos mortais de Jan Zamoyski encontram-se na Catedral de Zamosc, uma linda edificação renascentista desenhada pelo próprio Bernardo Morando e construída entre 1587 e 1598.
Com 45m de comprimento e 30m de largura (novamente com dimensões proporcionais), ela é dedicada à ressurreição de Cristo e a São Tomé apóstolo. O interior foi ricamente decorado ao longo dos séculos.
No século XVIII, adicionaria-se uma torre barroca fisicamente separada para não alterar a edificação original da igreja.



Já Bernardo Morando viria a se tornar prefeito desta própria cidade que ele desenhou para o governador polonês. (Já imaginou que jogo de SimCity real life, você desenhar a cidade, vê-la efetivamente construída, e depois se tornar o prefeito?)
O italiano casaria-se com uma polonesa e terminaria seus dias aqui. Também seu filho, Gabriel Morando, iria estudar em Pádua para retornar a Zamosc e também ser prefeito, e depois professor na Academia de Zamosc, cujo prédio original infelizmente não sobreviveu às subsequentes guerras.
A Polônia seria invadida pelos suecos, depois atacada por austríacos de um lado e russos do outro. Zamosc, contudo, segue aqui quase inteira, demonstrando o que a Polônia um dia foi — e, de certa forma, ainda é: um país eslavo e centro-europeu, porém de fortes relações com as artes e cultura latina.

Eu, gradualmente, faria o meu caminho de retorno a Lublin via uma das estações de trem. Um vento da moléstia soprava no escurecer, ao que uma polonesa com cachorro me indicou que não havia área abrigada do lado de dentro onde esperar — e aquele sorriso de “tamo lascado”.
As coisas que a gente não passa… Ao menos o trem chegou no horário. Ao que o vento de -10 graus — levando a sensação térmica a -17 — me lambia até as botas, vi contente o apitar e as luzes amarelas do trem regional polonês despontarem no horizonte. Viajar era preciso.