Eis aí o cenário meio que de Velho Oeste em que eu me encontrava. Naturalmente, eu não me encontrava no Egito. Estamos em Pátzcuaro, a cidade michoacana fundada em 1324 aqui no México.
1324? Sim, a cidade antecede a chegada dos espanhóis. Por vezes, temos a má-compreensão que os indígenas não tinham cidades — que eram só gente nua “parte da natureza”, na visão animalesca que os europeus passaram e que se mantêm até hoje entre muitos —, mas eles tinham, e eram cidades que impressionaram mesmo os mais viajados dos primeiros visitantes europeus, como cheguei a detalhar na Tenochtitlán dos astecas (atual Cidade do México) e também nos Andes.
Bem-vindos a Pátzcuaro, portanto, a cidade mais antiga deste estado de Michoacán. Aos idos dos século XIV-XVI, quando aqui chegaram os espanhóis, nesta região do México imperavam os tarascos — vizinhos dos astecas. Hoje, utiliza-se mais o nome Purépecha tanto para o povo quanto para o idioma que centenas de milhares ainda falam, mas não faltam referências a coisas “tarascas” na linguagem popular. Eu reproduzo abaixo o mapa da época que mostrei no post anterior.
Após as voltas que ali relatei pela bela capital estadual Morélia, venhamos agora conhecer este que é um dos mais pitorescos — e, sem dúvida, dos mais antigos — pueblos mágicos do México. A magia vai mesmo desde à arte à psicodelia.


Os Purépecha em poucas palavras
Os Purépecha não desapareceram — esta é a primeira coisa a ter em conta. Mesmo no próprio México, não é raro que as pessoas mais brancas das cidades creiam que os mayas e as demais civilizações indígenas desapareceram, que se foram, deixando para trás apenas suas edificações em pedra, um tanto como no Antigo Egito.
Isso é fruto do esforço consciente que os colonizadores ibéricos fizeram para suprimir a herança indígena, e posteriormente dos Estados Unidos liderando — de fato — as (re)descobertas arqueológicas mayas, astecas e incas (e de tantos outros) como se fossem “o Egito das Américas”, para fazer frente aos europeus que lideravam expedições no rio Nilo.
Mais de 140 mil pessoas ainda falam a língua purépecha, mas na prática são milhões os que carregam seu sangue e vivenciam a sua realidade cultural (as comidas, etc.). É claro que hoje há um avanço quase inevitável do espanhol entre as comunidades, e que a religião é um catolicismo misturado com tradições locais; mas, a depender de como você olhar, poderia até dizer que se trata mais de tradições locais com uma roupagem de catolicismo.

Hoje, há uma diáspora Purépecha noutras partes do México e até nos Estados Unidos, e há todo um esforço de revitalização cultural. Pátzcuaro, ela própria, foi restabelecida como uma cidade de legado indígena (com esforços dedicados de conservação) somente após a Revolução Mexicana (1910-1920), que trouxe ao poder as forças mais oprimidas da sociedade por um tempo.

Quando os europeus chegaram, ela já não era mais a capital purépecha; esta aqui havia sido transferida ao centro religioso de Tzintzuntzan, cujas ruínas podem ainda ser visitadas aqui perto.
Dom Vasco de Quiroga, o primeiro bispo de Michoacán, faria de Pátzcuaro um centro de gente local cristianizada, ao lado de conventos franciscanos do século XVI aqui perto. Trouxeram até oliveiras de longe plantadas aqui para fazer os rituais católicos com óleo.
Seguem assim, na mescla cultural que a América Latina é. Os michoacanos fazem as suas comunhões ao mesmo tempo em que organizam seus rituais de Ano Novo, agora em fevereiro, com fogo a festejar os princípios criadores do mundo, masculino (Curicaheri) e feminino (Cuerahuáperi), que se combinam num sopro divino mensageiro (Curitacaheri). O pai, a mãe, e o novo ser. Querem distância daquela narrativa hiper-masculina oriunda do Oriente Médio.

Pelos tempos de Tzintzuntzan e dos franciscanos
Eu chegaria aqui a Pátzcuaro vindo desde Morélia, a capital do estado. Se lá eu tinha visto as belezas que os colonos espanhóis construíram trazendo da Renascença europeia e do barroco às Américas, agora no interior do estado eu buscava a herança indígena, a outra metade cultural de Michoacán.
Há vários tours que se organizam (a partir de qualquer acomodação) de um dia para o outro desde Morélia até estes interiores históricos. É a forma mais prática de vir aqui. Porém, se você gozar de tempo, eu recomendaria vir a Pátzcuaro para pernoitar e poder ver tudo com mais calma.

Eu vim num roteiro típico rumo a Pátzcuaro passando antes pelas antigas missões franciscanas daqui. Vim com Francisco, obviamente não o santo, mas o motorista, um sujeito de seus 55 anos, com aquele perfil conversador de tio taxista. (Não é dos meus favoritos, mas nem sempre a gente sabe ao certo onde se meteu antes de já ter se metido.)
Iniciamos por uma parada completamente desnecessária no povoado de Capula, uma cidadezinha conhecida na região por suas cerâmicas e artesanias. Faz aquele estilo atacadão popular, como certas partes dos centros de tantas cidades brasileiras. Há trabalhos bonitos, mas a maioria deles é impossível de trazer. Eu recomendo deter-se pouco ou nada aqui — o tempo é bem melhor utilizado na própria Pátzcuaro.

Antes de seguirmos a Pátzcuaro, porém, vale espiar a antiga Tzintzuntzan, ela que foi a capital Purépecha nos tempos de Hernán Cortés.
Como lhes disse no post anterior, os Purépecha, já sabendo do fado dos astecas nas mãos dos espanhóis, resolveram render-se a estes sem grandes guerras. Foram vítima da perfídia dos conquistadores europeus e de sua opressão escravagista da mesma forma, mas se evitou a quase completa destruição que acometeu os resistentes astecas.
Aqui, o centro religioso que era a capital Tzintzuntzan — que na língua purépecha significa “lugar de beija-flores” — foi então mais abandonada que destruída.
É possível tanto visitar as ruínas (que não são muito grandes) quanto o povoado atual de Tzintzuntzan, que se formou em redor das missões franciscanas estabelecidas aqui com o Convento de Santa Ana de Tzintzuntzan no século XVI.


Ao lado daqui, no que é hoje o povoado de Tzintzuntzan, o primeiro bispo de Michoacán, Dom Vasco de Quiroga — que os nativos viriam a ter como uma bondosa figura anciã e que apelidariam afetuosamente de Tata Quiroga — organizou a primeira missão franciscana do estado, ainda no século XVI.
Ele chegou a viver quase 100 anos, tornando-se realmente uma figura venerável aqui. Defendeu os índios diante da exploração de conquistadores espanhóis como Nuño de Guzmán, e organizou junto com eles ofícios familiares, permitindo-lhes manter parte de sua organização social e política. É muito bem-quisto até hoje pelas pessoas aqui da região pela mescla cultural que promoveu.
Uma das curiosidades foi ter trazido oliveiras para plantar aqui, para que tivesse óleo com que fazer os ritos católicos. Essa população de oliveiras segue viva.
Você caminha pelo lugar onde ficava esse Convento de Santa Ana de Tzintzuntzan e imagina como teria sido aquele ambiente lá atrás, no século XVI.




Pátzcuaro, a entrada para o céu
Estamos a mais de 2.000m de altitude, nas serras deste ocidente do México. Aqui, às margens do Lago de Pátzcuaro, os purépecha no século XIV fundaram esta cidade como uma das suas primeiras.
Seu nome, que se traduz por algo como “entrada para o paraíso” ou para “mundo celestial”, tem a ver com a crença purépecha de que os lagos são lugares de transcendência, portas para um outro mundo.
A cidade, hoje com 60 mil habitantes, não fica exatamente à margem do lago, mas perto dele. Toda em vermelho, preto e branco pelas cores do Sagrado Coração de Jesus, seu padroeiro, Pátzcuaro é o lugar mais pitoresco de Michoacán.

Pátzcuaro tem aquele ar das cidades históricas do interior do Brasil — um pouco o das cidades barrocas do interior de Minas. Porém, há um colorido mais vivaz aqui, com o vermelho nas paredes, e um reboliço comunal indígena que nem sempre se encontra por tais cidades no Brasil.
Não é que haja índios fazendo fogueira no meio da rua (essa seria uma visão estereotipada e longe da realidade). Os índios e muitos mestiços com sangue purépecha aqui são simplesmente os moradores da cidade, com seus carros, crianças a tira-colo quando vão fazer supermercado, etc. Se os espanhóis andam hoje de carro e não mais se vestem como no tempo de Colombo, o mesmo se aplica ao Purépecha.
O que há, sim, são as coisas típicas aqui da região, o jeitoso ar histórico da cidade, e uma certa pobreza e humildade perceptíveis entre as pessoas — pois não estamos numa zona rica do México, ao menos não rica de dinheiro. Rica em cultura, sempre.



Eu cheguei a Pátzcuaro tomando aquele frescor no ar da altitude desta cidade. Nada de males comparáveis aos Andes, já que aqui estamos a meros 2.000m, mas é o suficiente para aplacar o calor. O sol, portanto, era bem-vindo como um beijo caloroso de fim da manhã.
As pessoas circulavam pelas ruas. Havia carros demais para o meu gosto, fruto de uma mistura entre gente local sem acesso a transporte público de qualidade (e, assim, também sujeito à cultura da glorificação do automóvel, como por todas as Américas) e de estrangeiros que resolvem viver aqui. Eu acho que vi mais gringos radicados em Pátzcuaro que em Morélia.
Francisco, o motorista, foi cuidar da própria vida e eu, da minha, a explorar a cidade por algumas horas.
No centro, você tem a Praça Vasco de Quiroga, com uma estátua do primeiro bispo de Michoacán, e dali um entorno histórico com algumas ruas íngremes coloniais e várias igrejas de época em redor. No miolo da cidade, há um bafafá comercial onipresente, enquanto que nas paragens mais afastadas do centro você respira aquele tranquilo ar de colina e olha as gentes que passam, e que timidamente olham de volta para você.



Não há nada de muito requintado aqui em Pátzcuaro (exceto pelos interiores de algumas igrejas). É uma beleza colonial rústica, onde as gentes de hoje misturam-se às paisagens urbanas de antigamente. N’alguns lugares, veem-se até as rochas de alguma edificação antiga formando as paredes de escolas públicas e outras construções atuais.
As crianças, no fim daquela manhã, saíam da escola nos seus uniformes, e eram apanhadas pelos adultos a pé ou de carro tal qual no Brasil. Aqui, quase todas elas carregam o nome de algum santo e remontam aos colégios religiosos aqui fundados pelos franciscanos para os índios.
Entrei num restaurante estilo buffet — mas destes buffets populares, em que só tem seis coisas e é a pessoa quem lhe serve, fazendo uma espécie de “prato feito” com preço fixo. Neste caso, estamos no México e portanto sempre envolve tortilhas em vez de arroz, na companhia do feijão.
A mulher que regia o lugar era mais branca que índia, e no jeito era uma espécie de Neuzão do já consagrado filme Ó Paí, Ó (2007) — uma daquelas mulheres com ar um tanto masculino e que, se bobear, responde na medida a cliente homem que se meta a besta. Respondia-me algo mecanicamente, sempre terminando as frases com “joven“. Sem muita emoção, mas cordial. Não demorou a entrar um quarteto de agro-boys (do tipo baixa renda), e ela ali parecia estar no seu elemento. Eu terminava o meu feijão, que estava muito bom.



O que há de mais histórico e antigo para se ver aqui em Pátzcuaro são as igrejas. Algumas me lembram os vetustos templos coloniais de parede já encardida pela chuva que se encontra no Nordeste do Brasil.





É uma riqueza histórica e tanto, este lugar.
Seu ponto mais alto, tanto literal quanto figurativamente, é a Basílica de Nossa Senhora da Saúde. As missões franciscanas aqui construíram muitos hospitais populares, daí a devoção. Lá, estão os restos mortais de Dom Vasco de Quiroga, e numa simpática praça há barracas com toda sorte de coisas à venda — umas até um tanto estranhas.



Estas barracas à porta da igreja aqui vendem de tudo, de imagens de Nossa Senhora de Guadalupe, a veneno de cascavel (supostamente com propriedades benéficas para a saúde), a cacto alucinógeno, dentre outros.
Se vocês me permitem uma breve digressão, posso tratar um pouco do que você encontrará aqui.
Cacto alucinógeno?
É menos louco e menos “modinha” do que talvez pareça — só é preciso cuidado.
Há muito, muito tempo, nesta terra não muito distante, os indígenas utilizam plantas sagradas para chegar a estados alternativos de consciência. Abrem-se — e por vezes escancaram-se — as chamadas “portas da percepção”, como disse o escritor inglês Aldous Huxley, o célebre autor de Admirável Mundo Novo (1932).

Foi numa correspondência com esse autor que o também inglês Humphrey Osmond cunhou, em 1957, a palavra “psicodélico” (pysche-delein, do grego algo como “manifestação da alma”, já que o conceito de mente como sendo algo dissociado de espírito é uma leitura europeia moderna).
O homem branco tentava fazer sentido daquilo que para as civilizações ameríndias nunca careceu de tê-lo: certas coisas na natureza catalisam o contato com um outro mundo. Para alguns (brancos), um mundo meramente fantasioso, da imaginação. Para índios e brancos outros — como o próprio Aldous Huxley e outros como o pensador novaiorquino William James — uma forma de experiência mística com a qual muito ainda há para se aprender.
Pois bem: desta região vem o mais antigo dos psicodélicos do mundo, o cacto Peyote (Lophophora williamsii), de uso verificado há mais de 5.000 anos. Pátzcuaro foi a primeira vez que eu o encontrei.

Você não esbarra em Peyote assim crescendo em qualquer lugar — ao menos não aqui.
Ele é nativo das zonas secas deste México central e do norte, assim como do sul dos Estados Unidos. Ganhou notoriedade na contracultura dos anos 60, e muitos já leram sobre ele no clássico Os Ensinamentos de Don Juan (1968), do autor Carlos Castañeda. (Se não leram ainda, eu recomendo. Puseram um título algo sensacionalista na versão em português do livro, mas ele é dissertação de mestrado em antropologia do autor com base nas suas conversas com um ancião indígena, muito interessante.)
Os espanhóis o chamavam de “planta do diabo” nos tempos da Inquisição. Hoje, há certa ressurgência dos psicodélicos para lidar com a depressão e outros males do mundo moderno, e sabendo disso eles aqui vendem produtos supostamente feitos com peyote aos turistas — mas recomendo atenção.
A regra básica para essas substâncias, como ocorre também com a ayahuasca (do Santo Daime) no Brasil, é que seu contexto e estado mental ditam a experiência. Você pode ficar bem doidinho (ab)usando disso fora de um contexto ritualístico ou terapêutico adequado.


Voltando a Pátzcuaro…
Este é o México, com a sua mescla de culturas. Juntando-se a essa raiz milenar indígena, as tradições católicas e tantas outras. Por exemplo, segundo me contaram aqui, os comerciantes em Pátzcuaro se benzem com o dinheiro recebido na primeira venda da manhã. Dizem ser uma tradição árabe adaptada pelos espanhóis ao catolicismo e trazida para cá, onde fez raiz. De fato, quem já viajou pelo Oriente Médio ou pela Índia sabe o quanto aqueles comerciantes devotam atenção à primeira venda do dia.
Sobre o peyote, não experimentei. (Quem tiver curiosidade sobre os efeitos dele, vá ler Carlos Castañeda, que ele conta direitinho.) Tampouco provei do veneno de cascavel.
O interesse era ver o lugar e sentir desta cultura — dentro de certos limites.



Há bastante de típico aqui em Pátzcuaro, ainda que no le gusten los cactus alucinógenos. Você pode provar da chamada sopa tarasca, feita tipicamente com massa de feijão, tomates, e pimentas leves. (Antes que você ache que eles importaram o uso de tomate dos europeus, saiba que os tomates são nativos das Américas, e os europeus — italianos aí inclusos — é que os adotaram dos ameríndios.)
Ou, se quiser algo mais leve, vai encontrar por toda parte os gazpachos michoacanos, que nada tem a ver com a sopa de tomate espanhola chamada gazpacho (nem com a Gestapo, como confundiu este mês a deputada republicana estadunidense que foi criticar Biden e disse que ele estava transformando o governo numa gazpacho — e acabou virando meme.)


É… Pátzcuaro e todo Michoacán têm mesmo umas loucuras. Mas, ao menos, são loucuras muito originais deles.
Eu os deixo com mais algumas imagens desta cidade que tanto me lembrou cenário daquelas obras de Jorge Amado do início do século XX. Aqui, porém, com mais picância.



É impressionante como o México consegue conservar tão bem seu passado histórico, suas preciosas cidades que parecem saídas do medievo. E com que reverência e alegria saúdam essa passado, seja de glorias, lutas ou penas.
Salta aos olhos o cuidado em preservar o legado cultural.
Esta cidade é a prova disso. Vetusta, bem conservada e habitada. Continua com vida. A pobreza é visível, claro. Mas sua sobrevivência e conservação são de impressionar.
Muito bonitinha na sua simplicidade, e charmosa nos seus bonitos templos e arquitetura colonial.
Que exemplo que los hermanos dão. Estou muito impressionada com esse investimento em conservação dos sítios históricos do governo mexicano.
Lindinha esta cidadezinha. Um verdadeiro tesouro.
Muito bonitos também os círculos religiosos do Império dos antigos habitantes da região.
Apreciei também o espaço e igrejinha do antigo convento franciscano
Interessante isso de trazer oliveiras para fazer e usar o óleo.
Gostei muito da saber que os antigos primeiros moradores da região sobrevivem e ai continuam suas vidas.