Janítzio na língua indígena purépecha quer dizer “lugar de poucos”. Os livros — e a internet afora — reproduzem outras significações (“flor de milho” seria uma delas), mas as pessoas aqui discordam. Janítzio era, e de certa maneira ainda é, um lugar sagrado que nos tempos antigos era acessível apenas aos sacerdotes. Ao povo comum não era permitido vir.
O povo Purépecha, o principal deste Estado de Michoacán, tem os lagos tradicionalmente como espaços especiais. Creem que, nos lagos e suas ilhas, o filme que nos separa do mundo espiritual é mais fino, daí esses lugares lhes terem grande valor religioso e serem especialmente almejados no Dia dos Mortos mexicano.
Janítzio é maior das ilhas do Lago de Pátzcuaro, ao lado da histórica cidade homônima que lhes apresentei no post anterior. A quem leu e ficou a se perguntar sobre o lago, ei-lo aqui agora, este que é o terceiro maior lago de todo o México.
Não é difícil se dirigir ao porto (embarcadero) em algum veículo — pois ele fica algo afastado do centro da cidade histórica — e tomar os 20-30 minutos de embarcação até a ilha, que segue sendo ainda hoje uma terra indígena protegida e habitada exclusivamente por eles, mas visitável por qualquer um. Então, lá vamos nós.

No Lago de Pátzcuaro, portal para o outro mundo
Pátzcuaro quer dizer “entrada para o paraíso”, como lhes disse no post anterior. Assim viam (e veem) os Purépecha, que durante a colonização ganharam o apelido de tarascos, que na sua língua quer dizer “genro” ou “cunhado”.
É curioso que aqui se tenha visto do mesmo “cunhadismo” de que nos fala Darcy Ribeiro acerca da História do Brasil, com a prática dos indígenas de abraçar os homens ibéricos dentro de suas famílias — como genros ou cunhados —, aqui chamando-os então de tarascos, e dando origem à população mestiça que tanto caracteriza a América Latina.
Praticamente todos os michoacanos, portanto, invocam ascendência purépecha, têm provavelmente do seu sangue, e compartem desta herança cultural. No entanto, há as comunidades indígenas propriamente ditas, onde se fala a língua purépecha no dia-dia e que, desde a Revolução Mexicana (1910-1920) contam com certos direitos coletivos de propriedade.
Isso significa dizer que as pessoas não podem simplesmente vender uma casa a um estrangeiro na Ilha de Janítzio — o lugar é de propriedade comunitária.

Na ocasião das festas de 1 e 2 de novembro, dizem haver grandes celebrações aqui — com barquetas iluminadas à noite — para o Dia dos Mortos. Fica a dica a quem não tiver medo de assombração.
Como eu já descrevi noutro post, a festa mexicana de Dia dos Mortos é inigualável e das melhores épocas para visitar este país.
No restante do ano, ainda que não haja de tais festas, a ilha segue atraindo visitantes. Sua vinda aqui não será nada inusitada: eles estão mais que habituados a receber turistas, e fica óbvio que esta é uma das principais receitas deles, que de outra maneira vivem da subsistência da pesca no lago e de fabricar artesanias. A pobreza é presente e visível.
Quem tampouco vai muito bem é o ambiente. As paisagens seguem belas, mas cá embaixo a urbanização desordenada em redor do lago tem feito com que a poluição se torne um problema.


Eu cheguei ao embarcadero de Pátzcuaro com Francisco, o motorista coroa que me trazia. Cidadão conversador, ele fazia um tanto o estilo taxista. Não aquele que critica tudo e crê ter respostas prontas para todos os males da sociedade, mas o taxista do tipo que está lhe apresentando o lugar e fica, basicamente, louvando tudo o tempo todo, perfazendo cada coisa que lhe mostra. Tudo são elogios per-feitos e nada de crítica.
“Este lago tiene pH alto, entonces es muy limpio“, dizia ele com o sorriso daquele contador que se enfeitiça pela própria história. Estou vendo, Francisco.
Ele, depois, viria a exaltar como o lago não tem mau odor, o que não é de todo verdadeiro.
Na margem, uma quantidade de lojas e barracas vendem lembrancinhas, voltada aos muitos turistas (domésticos e estrangeiros) que aqui vêm. Como estamos no México, há sempre também a zoeira.

Eram meados de tarde quando cheguei, e as coisas já estavam relativamente quietas. O movimento maior parece ser pela manhã, quando por aqui passam os turistas que vão curtir o dia em Janítzio e voltar ao final.
Há embarcações saindo no estilo lotação (zarpa quando enche) até o último retorno da ilha às 18h (19h no fim de semana). Eu recomendo dispor de pelo algumas horas em Janítzio, mas passar lá o dia inteiro pode ser demais.
Ao que caminhávamos pelo cais do lago com seus embarcadouros de concreto rodeados de baronesa, Francisco falava brevemente a acenar para um e outro que conhecia de outros carnavais. Entrávamos, finalmente, num barco para umas 20 pessoas — quase todos gente daqui mesmo. Janítzio se revelaria com um ar bastante “povo”.
Este trajeto custa 100 pesos (R$ 25) ida e volta, valor que costuma ser pago à parte por pessoa mesmo em tours.




Francisco, apesar de conversador, não me pareceu mentiroso. Perguntado, admitiu — algo pesaroso — que há, mesmo, problemas ambientais por aqui. O lago está não apenas algo poluído como também está secando.
O Lago de Pátzcuaro não recebe rios; ele é preenchido pelo escoamento natural de água da chuva, que com a urbanização descontrolada do seu entorno já não chega mais tanto. Das nove ilhas que antes havia, hoje restam apenas quatro. Na parte norte, mais funda, a profundidade do lago chega a 22m, mas noutras áreas apenas 3m restam. Janítzio arrisca-se a deixar de ser uma ilha dentro de algumas gerações.
Por ora, baleiros com aquelas caixas a tiracolo circulavam no interior do barco antes de partirmos. Um sorveteiro ambulante deu-me a experimentar do produto num copinho — coisa simples, daqueles sorvetes de esquina de bairro no interior.
Ao que nos preparávamos para zarpar, os vendedores saíram. Duas mulheres de feições indígenas cobriam-se feito a Virgem Maria, não sei se pelo vento ou pelos mosquitos que circulavam.

Vinte minutos depois, naquela paisagem lacustre, avistávamos mais de perto a ilha que parece um morro das periferias do Brasil, só que circundado de água, e com uma imagem no topo. Lá está a figura de José Maria Morelos y Pavón — maior que o Cristo Redentor.
A estátua foi erigida nos anos 1930 por ordem do presidente Lázaro Cárdenas em honra ao filho de Michoacán herói da Guerra de Independência do México (1811-1821). Como eu lhes disse em Morélia, esta capital estadual, cujo nome anterior era Valladolid, deve seu nome atual também à figura de José Maria Morelos (1765-1815). Os mexicanos todos aqui o têm com muito orgulho.
Uma música latina daquelas melosas estilo anos 90 (me lembrando Raça Negra) competia no rádio do barco com o barulho do motor ao que as pessoas tentavam conversar. O vento batia na minha cara, fazendo rendez-vous no meu cabelo alinhado, até que nós finalmente chegamos.

Visitando Janítzio
Desembarcando, você tem diante de si um pátio portuário com muitas vendas, lojas e restaurantes de letreiros grandes nada tímidos. É um ambiente bem “povão”, porém pacato, onde morenas senhoras punham-se a vender comidas em banquinhas. Havia um pouco de tudo — mas, o que quer que fosse, seria com pimenta.
O jeitão geral do lugar tem um quê favelesco, mas com segurança. Seu dinheiro será visado exclusivamente pelas crianças que, quase mecanicamente, correm na direção de qualquer visitante a vir estender a mão pedindo dinheiro.
Cheguei a supor que fossem os adultos tipicamente aproveitando-se das crianças, mas Francisco discordou. Disse que são as próprias crianças atrás de trocados que os pais não lhes dão para comprar doces, etc.
Todos aqui falam espanhol, caso você esteja a se perguntar, embora saibam e usem também a língua purépecha entre si.



A subida rumo à estátua de José Maria Morelos — a apoteose do visitante no alto da ilha — vai lhe rendendo vistas cada vez mais belas do lago e das serras no seu entorno.
Se você tiver boa condição física, em 20 minutos estará lá no alto, mas vale a pena ir parando.





Lá no alto, o turista para 10 pesos (R$ 2,50) para ter acesso à área dos arredores da estátua de Morelos. Há todo um amplo espaço calçado — basicamente uma praça — rodeada de restaurantes com vista, e onde alguns adolescentes com cara de mexicanos visitantes conversavam.


Claro que aceita cartão de crédito. Afinal, ser purépecha não significa não usar bancos. Os samurais japoneses também não tinham, e hoje têm.


A estátua de José Maria Morelos, afinal, o que tem de bonita e interessante por dentro tem de feia por fora.
Meio rechonchuda, mal dá para lhe discernir a face. Que seja questão de estilo, podem dizer alguns, mas continuo achando feia.
Não deixe de entrar, porém. Você se equivoca se pensa que lá há apenas um oco. É oco, e você pode subir por rampas em espiral até seu alto pelo interior, mas as paredes são totalmente recobertas de murais pintados sobre a vida de Morelos.
Neste religioso México, fizeram praticamente uma hagiografia de Morelos nas paredes internas da gigante estátua aqui em Janítzio.




À minha saída, ainda estavam ali as moças, adolescentes a circular, pessoas da comunidade, e senhoras a vender comidas — de milho cozido (elote) e outras coisas.
Compre o que quiser, mas tenha ciência de que aqui em Janítzio vi vendedores inflarem os preços até de garrafa d’água. Não pague mais que 20 pesos numa de 600ml. Queriam me vender por 35, eu ri, e disse que só pagaria 20, ao que ele então me fez por esse preço. Olho vivo, pois notei uma certa usura por aqui. Janítzio, nos tempos de hoje, pareceu-me ter mais da modernidade que do seu espírito antigo, de quando era “lugar de poucos”.
O mal, a meu ver, em qualquer lugar do mundo onde vejo dessas práticas, está sempre num apartheid entre pessoas de dentro e de fora. Onde se vê o turista como alguém muito distinto (ainda mais se for tipicamente mais rico), esse tipo de comportamento infelizmente tende a aparecer. Os males da atualidade não se limitam à poluição do lago.
Eles aqui não vendem nada de muuuito diferente do que você encontra em Pátzcuaro ou mesmo em Morélia, então basta já ter uma noção do preço das coisas antes de chegar a Janítzio.

Na volta, o barco por sorte já estava por sair. Eu me despedia da breve visita a Janítzio e, infelizmente, já também de Michoacán e do México nesta viagem. Até a próxima, é claro.


Que interessante essa visita meu jovem amigo viajante.
Um belo lago e uma linda serra. Muito bonitas a paisagem e o espelho d’água, apesar das baronesas, hahah
Vê-se ser uma região vulnerável, de gente simples e empobrecida, porém rica de vida, cultura, história e significado. Prova da existência e resiliência de um povo, de uma civilização que, a despeito de tudo, permanece viva.
Um povo simpático, trazendo no rosto as marcas das dificuldades passadas, mas também da bravura, que não dá espaço para o abatimento. Gente de garra e coragem, como aquel’outra de muitas partes do NE do Brasil e de outras tantas regiões desse mundão de Deus.
Impressionante a altura dessa estátua e que maravilhoso inusitado interior. Pura arte e criatividade.
Muito bonitinha a pracinha e gostoso ver o movimento das pessoas.
Que coragem desse povo com essas lojinhas até o alto. Viver é preciso.
Habilidosas essas mulheres que conseguem bordar com a lancha em movimento.
Adorável o bom humor de los hermanos hahaha.
Lindo entardecer no lago
Curiosos os cantantes do barco hahaha
Os murais são um espetáculo à parte. Espetaculares. Incríveis pela localização e forma como estão dispostos, e, ao mesmo tempo, de rara beleza e bom gosto. Belíssimo colorido, belas motivações e representações.
Muito interessantes, tanto a visita quanto a postagem.
Valeu, meu jovem.
Importante a visibilidade dada a esse povo indígena, um dos formadores desse país diverso e cativante que é o México.