Bem-vindos a Ella, talvez a cidadezeta mais turística do Sri Lanka, um vilarejo em plenas colinas na área mais elevada do país, aquilo que chamam aqui de hill country.
Country, a saber, não significa apenas “país” em inglês; quer dizer também algo como “interior” no sentido geográfico da coisa — daí countryside. Então, estamos aqui no interior de colinas do Sri Lanka (Sri Lanka’s Hill Country), um lugar bastante distinto do litoral de praias que vos mostrei no post anterior em Galle.
É por aqui que estão as famosas plantações de chá, assim como a maior quantidade de trilhas do país. E se você já viu fotos do trem lento do Sri Lanka, com as pessoas do lado de fora dependurados na porta, também é por aqui.
Ella fica de juntinho da ponte de nove arcos que os britânicos construíram no século XIX, talvez o monumento mais fotografado do Sri Lanka, e nem tão distante assim está o Pico de Adão (Adam’s Peak), a montanha mais famosa do país, ainda que não seja a mais alta. Venhamos. É uma região diferenciada do Sri Lanka.


Colinas místicas: Por detrás do Pico de Adão
Permitam-me iniciar esta pelo tal do Adam’s Peak, do qual se ouve falar a todo momento quando se é turista pelo Sri Lanka. Ele é quase que o Santo Graal dos trilheiros que cá vêm. E mesmo que você não seja trilheiro, ainda assim ouvirá falar dele.
Eu já lhes disse que o budismo é a religião predominante aqui desde os idos do século III a.C. Os budistas creem que Buda (“o desperto”, alcunha dada ao príncipe Sidarta Gautama, de onde hoje é o Nepal, no sopé dos Himalaias) de fato veio cá ao Sri Lanka, e que aqui teriam ficado relíquias suas: fios de cabelo, dentes, e a tigela com que recebia doações de alimentos.
Há quem sugira que Buda tenha deixado ainda mais nesta ilha: teria, a pedido de um rei, deixado a sua pegada impressa numa rocha, como evidência da sua vinda ao Sri Lanka. Os Tâmil, povo hindu que vive no sul da Índia (aqui do lado) e também no norte do Sri Lanka, diz que aquela na verdade é a pegada do deus Shiva ou do deus Hanuman.
Quando os mercadores árabes aqui vieram na Idade Média, não gostaram muito dessas versões. Acharam melhor dizer era a pegada de Adão, o primeiro homem nas tradições abraâmicas, quando “caiu” do Jardim do Éden para a Terra. (Adoro a imaginação humana.)



O famoso Marco Polo, que teria vindo aqui ao Sri Lanka no fim do século XIII, falou sobre este lugar — e tirou um certo sarro do nome que os árabes lhe deram.
Isso também porque parece que havia um pequeno mausoléu aqui, e se chegou a dizer que era o sepulcro de Buda, o que os árabes então resolveram sugerir que seria o túmulo de Adão.
Leia o que traduzi do texto do relato de Marco Polo aqui no século XIII:
Além disso, você precisa saber que na Ilha de Seilan há uma montanha excessivamente alta; ela se ergue tão íngreme que ninguém poderia ascender, não fosse eles terem pegado e fixado no chão maciças correntes de ferro, postas de tal forma pela ajuda desses homens que se pode chegar ao topo. E eu lhe conto que eles dizem que nesta montanha está o sepulcro de Adão nosso primeiro progenitor; ao menos é o que os sarracenos dizem. Mas os idólatras dizem que é o sepulcro de SAGAMONI BORCAN, antes do qual não havia ídolos. Eles o têm como tendo sido o melhor dos homens, de fato um grande santo, de acordo com seu costume, e o primeiro em nome do qual os ídolos foram feitos.
“Sagamoni” é como o italiano Marco Polo acabou se referindo à outra alcunha de Buda: Shakyamuni. Borcan é o termo mongol para “divindade”, e vale lembrar que foi com a corte dos Khan mongóis que o veneziano conheceu a Ásia.
Os sarracenos são os árabes muçulmanos, a quem desconhece a alcunha; e aqueles a quem Marco Polo chama de “idólatras” são os budistas, certamente pelos altares não-cristãos que estes tinham (e têm). Ele prossegue, no seu relato publicado nos idos de 1300,
Os idólatras vão lá em peregrinação de distâncias bastante grandes e com grande devoção, da mesma forma que os cristãos vão ao santuário de Santiago [de Compostela] na Galícia. E eles sustentam que o monumento na montanha é aquele do filho do rei, de acordo com a história [de Buda] que lhe contei; e que os dentes, e o cabelo, e o prato que estão lá eram aqueles do mesmo filho do rei, cujo nome era Sagamoni Borcan, ou Sagamoni o Santo. Mas os sarracenos também vão lá em peregrinação em grande número, e eles dizem que é o sepulcro de Adão o nosso primeiro progenitor, e que os dentes, o cabelo, e o prato são aqueles de Adão.
De quem são eles na verdade, Deus sabe; seja como for, de acordo com a Sagrada Escritura da nossa Igreja, o sepulcro de Adão não fica naquela parte do mundo.” — Marco Polo (1254-1324), Livro 3, Capítulo 15.

Marco Polo depois conta que o grande Kublai Khan (neto de Gênghis Khan e em cuja corte ele serviu), o qual era interessado em misticismo e ficou famoso na História por, de fato, promover debates públicos entre monges budistas, missionários cristãos e sacerdotes muçulmanos para ver quem fazia mais sentido, havia achado tão interessantes essas relíquias que mandou buscá-las para si.
Segundo Marco Polo, o Khan de fato obteve o que queria — ou pelo menos dois dentes molares e o prato.
É claro que não há evidência histórica de nada disso, mas são “causos” equivalentes nestas partes do mundo àqueles feitos com as coisas de Cristo no Ocidente, seja o Sudário ou o Graal.
Vocês agora sabem que estas colinas cá do Sri Lanka também reservam dessas simbologias e histórias. Cheguemos mais.


As três formas de chegar a Ella
Viajar de trem é preciso, e esta é a forma mais usada para se chegar até Ella, mas não necessariamente.
Ella é um vilarejo, destes de beira de pista e onde você vê basicamente turistas e pessoas que trabalham no turismo. Ela está ligada à cidade de Kandy (esta, sim, uma cidade de maior porte), e é entre uma e outra que está essa famosa linha de trem que eu depois mostrarei em detalhes.
A maioria dos turistas estrangeiros chega pelo Aeroporto de Colombo e, de lá, já segue direto para Kandy e daí então aqui a Ella. No entanto, esse trem lota — e lota bonitinho mesmo. Se você quer mais sossego, vale fazer a rota no sentido contrário: chegando primeiro a Ella, e indo daqui de trem até Kandy. Foi o que eu fiz e recomendo, mas vai depender do seu itinerário.
Chegar a Ella vindo de Galle ou outro lugar no litoral sul, que foi o que eu fiz, só de ônibus ou de carro. De ônibus, é preciso ir trocando — e nem sempre os ônibus aparecem, esteja avisado. De carro, leva cerca de 3h30 de percurso desde Galle até Ella se for pela via com pedágio (400 rúpias [USD 2]). Se for pela estrada normal, pegará engarrafamento, e serão aí umas 5h de estrada.
O custo do transfer sai na casa de 14.000-16.000 rúpias (USD 50-60) pelo veículo (não por pessoa). Como tudo aqui pelo Sul da Ásia, barganhe, sobretudo se tentarem lhe cobrar mais que isso. O ideal é que você arranje isso comunicando-se com a sua acomodação em Ella. Comigo, o próprio dono veio me buscar por aquele preço, e eu posso passar o número a quem quiser. (É só me mandar uma mensagem através da página no Instagram ou Facebook.)



As Quedas de Ravana
Uma das cachoeiras mais populares de todo o Sri Lanka ficam bem aqui, as chamadas Quedas de Ravana (Ravana Falls). São uma parada que se pode fazer rapidamente já na entrada de Ella. Do contrário, pode-se vir de lá com um tuk-tuk. São cerca de 7 Km.
A cachoeira, é óbvio, não é exatamente Foz do Iguaçu. O Brasil talvez seja o país melhor servido de cachoeiras em todo o mundo, então os nossos padrões são deveras altos. Aqui, trata-se de uma queda de 25m, simples, porém bonita entre os rochedos.
Ravana teria sido um rei ancestral aqui no Sri Lanka, um dos grandes antagonistas no épico clássico Ramayana. A quem desconhece, o Ramayana é um poema indiano do primeiro milênio a.C., quase contemporâneo da Ilíada grega (a qual é alguns séculos mais antiga). Conta a história de Rama, que entre outras aventuras teria vindo cá salvar sua esposa Sita, quando contou com a ajuda do deus-macaco Hanuman. (Daí os hindus dizerem que a tal pegada lá seria de Hanuman.)
Ao lado, há também as Cavernas de Ravana (Ravana caves), que teriam sido o cativeiro de Sita. Isso foi no tempo mitológico, antes de o Sri Lanka se tornar budista. Pelo lado da ciência, os indícios são de presença humana aqui desde 23 mil anos antes de Cristo. Deu tempo para acontecer muita coisa.



Acomodando-se e passeando em Ella
Ali havia uns vendedores de pedras que saltam em você tão logo desça do carro — ou mesmo antes. Quem há viajou aqui pelo Sul da Ásia conhece a (oni)presença e insistência dos vendedores. Perseveram, coitados.
Saí sem comprar nada após um tempo ali, e paramos para um almoço tardio num restaurante de beira de pista antes de chegar a Ella. Daqueles com valor fixo em que você come à vontade — adoro. Lavei a égua depois de tantas horas no carro, no que já passava da 1h da tarde. (Eu almoço cedo.) Por sobre um prato ainda enrolado num saco plástico — como eles aqui fazem — com a comida srilanquesa que vos mostrei melhor no outro post, tirei a barriga da miséria.
Wasantha, que tanto era motorista quando o dono da pousada, levaria-nos depois à acomodação — uma pousada de avarandados e degraus no terreno íngreme e cercada de verdume. Eu fiquei com a impressão de que quase todas as acomodações aqui em Ella são assim.
Estiquei as pernas como que num repouso temporário com a caneca de chá que Wasantha nos serviu, e preparei-me para breve pô-las em marcha outra vez. Conhecer Ella era preciso, assim como ver de perto a tal ponte dos nove arcos.



Sanguessugas? Oi?
O Sri Lanka pode não ter cobra coral nem cascavel mas tem sanguessugas, senhoras e senhoras. Sim, aquelas criaturas parentes das minhocas, que ficam no mato molhado esperando um mamífero passar (você) e se agarram à pele para engordar com o vosso sangue.
Perdoem a crueza ou o quebra-clima, mas o faço por duas razões. Primeiro, porque é um alerta importante para quem pretende passear por aqui, seja pelas trilhas ou pelas nem-tão-inocentes plantações de chá. A internet abunda com alertas, vídeos e comentários de viajantes que foram só ali no mato fazer uma selfie e encontraram um amigo.
É fundamental usar calças compridas e sapatos fechados. Não sei porque cargas d’água há quem faça trilha de sandália. Se alguma sanguessuga o pegar mesmo assim, há instruções sobre como removê-las da pele. (A minha favorita inclui utilizar o cartão de crédito para levantar a ventosa.)
A segunda razão pela qual trato disso é porque, como vocês hão de imaginar, é difícil não pensar a respeito quando se acaba de chegar aqui. E eu estava prestes a fazer a breve trilha de Ella à até a ponte dos nove arcos.

Indo assim mesmo: de Ella à ponte dos nove arcos
Ella se revelaria menos que uma cidade; é mais uma beira de pista, como vos disse antes.
Afora a estrada que aqui passa, com árvores e campos às margens e as colinas mais atrás, há basicamente ruas de asfalto velho ou de chão, onde cachorros deitam à revelia do perigo, e onde tuk-tuks estacionam à espreita e à espera de turistas. Lojas de chá, de lembranças ou de fast food fazem as honras aos visitantes. Tudo gira em torno do turismo, aqui neste interior molhado do Sri Lanka.
Fala-se que o risco maior de ser pego pelas sanguessugas é na estação úmida, quando o mato está molhado. O tempo até que vinha firme, mas foi só eu chegar e choveu. Pegou-me já na rua, dirigindo-me da pousada para a trilha, mas a esta altura eu não voltaria mais.
Você pode ir à ponte dos nove arcos de tuk-tuk pela estrada ou a pé cortando caminho pelas colinas, numa curta trilha de 2 Km (ainda que com bastante sobe e desce). Um tuk-tukeiro arranjado pela pousada teve o desplante de me oferecer 1.500 rúpias pela corrida (o equivalente a 8 dólares na ocasião, pouco para nós, mas um acinte para os preços daqui), e foi o suficiente para eu decidir ir a pé.






É quando você adentra o lamaçal e o mato molhado que vem aquela injeção de adrenalina. Ainda que eu estivesse de calça comprida e botas, tampouco me vesti de apicultor. Havia sempre aquele frisson quando era impossível passar sem se esfregar nas plantas maiores que eu que invadiam a “trilha”.



Chuviscou, parou, o sol abriu, e depois voltaria a chuviscar, naquela irregularidade típica de certos dias de verão em certos trópicos.
Deparei-me com um e outro russo voltando, por vezes com guias srilanqueses — algumas mulheres brancas de sandálias e com os pés já enlameados por entre os dedos.
A bem da verdade, é uma trilha fácil e curta, mas com sua dose básica de sobes e desces no chão lamacento.
Quarenta minutos depois de começar, lá estava eu avistando a tal ponte dos nove arcos, afinal, esta obra britânica do tempo colonial e que acabou virando pitoresca nestes tempos do Instagram.




Um senhor srilanquês perguntou de onde eu era, ao que me alcançou neste mirante do fim da trilha.
Eram uma família de srilanqueses expatriados em Londres, o que não é raro encontrar. Ficaram algo impressionados com alguém do Brasil cá nestas paragens distantes, mas não se demoraram muito. O pai, naquele típico estilo sul-asiático de classe média com meias, tênis e óculos, logo convocou a esposa e os dois filhos a seguirem-no até a ponte para ir “tomar um coco-rei”. Os cocos aqui são predominantemente amarelos, e não se chama simplesmente de coco, mas coco-rei (king coconut).
Eu tomei o mesmo caminho, ainda que no momento não estivesse interessado em coco.
Da trilha, é possível descer mais um pouquinho para chegar à ferrovia que passa pela ponte.



Vim, vi, e venci, mas era preciso retornar o caminho inteiro pela mesma trilha, o que achei por bem fazer antes que escurecesse.
Algumas pessoas saem daqui e vão direto fazer a trilha do Pequeno Pico de Adão (Little Adam’s Peak), uma colina aqui perto e que acharam de corresponder à montanha mais famosa. É factível, requer apenas mais uma hora, mas acabei por não ir até lá.
Em vez disso, voltei a Ella e por ali fiquei. Comi kottu, bati papo com vendedores em algumas lojas, e adquiri (mais um) Buda de madeira para a minha coleção oriunda de países budistas diversos.
Ella não tem lá muito o que ver; é mais um ponto de parada de onde visitar estes arredores e tomar o trem pitoresco que viaja entre aqui e Kandy — o que eu faria no dia seguinte. Meu sangue, ninguém sugou.






Interessante a povoação. Simples e simpática. Mais bonita à noite, com essas luzes todas.
Parece esses povoados que beiram as estradas brasileiras, sobretudo no NE do Brasil.
No NE à vezes tomam o nome do Km. ”No 70”, ”no 100”, ou de alguém conhecido na região como , ”no Magalhães”, ou numa fazenda como ”no Jacu”.
Uau, que espetáculo essa ponte. Magnífica. E que altura. Eita povo maluco, sentado na borda e sem segurança.
Os inocentes cachorrinhos, São Francisquinho toma conta.
Belissimas paisagens, lindas e verdejantes colinas.E que viagem !… enorme o trem. Mais gente sem juízo . Oh coragem!…
Amei as plantações de chá. Lembram as da Tailândia.
Belíssimo o verde das charmosas plantações de arroz. Que beleza. E que elegantes colinas. Amei. Linda viagem.
Essa cachoeirinha é um encanto. Lindas águas serpenteando nas pedras vistosas. Dá uma paz!… Maravilhosa. Adoro cachoeiras e cascatas. Acho belas, purificadoras e energizantes. A Natureza me alegra, me fortalece , me inspira. Uma bênção!…
Tem muito de Brasil nesse país, pelo visto. Vendo essas barraquinhas com as frutas conhecidas aqui no Brasil, parece que estamos no NE. Muito interessantes essas semelhanças.
Ave maria. Que altura esse tal Pico de Adão!… Corajoso esse povo todo ai subindo. Inclusive o senhor naquela ponte. hhahah. Jesus. Ainda bem que se livrou dos sanguessugas, haha Deus me livre. Amo os animais, mas desses tais e uns outros, eu quero distância hahah.
Comilança bonita. Pelo visto boa.
Lindinha essa acomodação. Cercada de verde. Uma belezinha.
Vilgen que o viajante se esparramou na cadeira de lona. hahaha haja cansaço. O repouso do guerreiro hahaha
E por falar em guerreiro, gostei muito das histórias. Muito Interessantes. O senhor se parece um pouco com esse Marco Polo hahah
Lindas flores. E que alfabeto hahaha intrincado parece com os senguessugas hahah
Pois é. Mais uma bela viagem com o senhor, meu jovem amigo viajante e com um saborzinho de quero mais, nessa linda, exuberante e secular Ásia.
Amei, a viagem e a postagem.
Valeu.
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